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Por Flávia Oliveira*
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País forjado na chibata dos escravocratas e nos castigos físicos do jesuítas, o Brasil, além de bonito, é violento por natureza. O “salve, simpatia” só é visível no consenso. Pintou conflito, sobram grito, xingamento, sopapo, chute, facada, tiro. Passou da hora de mirar o espelho e encarar a imagem de uma sociedade envelhecida em barris de brutalidade. O brasileiro bate no filho e na mulher. Esmurra vizinho na reunião de condomínio e motorista em sinal de trânsito. Espanca LGBT em praça pública e torcida rival dentro de estádio de futebol. Tortura preso político e réu inconfesso. Esfaqueia universitário que discute preço em restaurante e ciclista em cartão postal. Lincha assaltante, adúltera e dona de casa vítima de boato na internet. Atira em morador de favela na porta de casa, em missionária religiosa no campo, em estudante em ponto de ônibus e em policial de folga. Degola traficante e jornalista. Chacina presidiário e suburbano.
A ONG americana Social Progress Imperative publica todo ano um ranking de qualidade de vida. Na edição 2015 do Índice de Progresso Social, divulgada mês passado, o Brasil aparece na 42ª posição entre 162 nações. Marcou, no geral, 70,89 pontos numa lista que a Noruega lidera com 88,36. Na dimensão segurança pessoal, que leva em conta taxa de homicídios e de crimes violentos, sensação de segurança, terror político e mortes no trânsito, dá-se o vexame. O país marcou míseros 35,55 pontos; é 122º em 133 avaliados. Entre os vizinhos de América do Sul, só ganha da Venezuela. No topo do rol, está a Islândia, com 93,57 pontos; no pé, o Iraque, com 21,91.
Semana passada, o sociólogo espanhol Manuel Castells, professor da Universidade da Califórnia, detonou a cordialidade nacional em entrevista à “Folha de S. Paulo”: “A imagem mítica do brasileiro simpático existe só no samba. Na relação entre as pessoas, sempre foi violento. A sociedade brasileira não é simpática, é uma sociedade que se mata”. Tem razão.
O recém-divulgado Mapa da Violência 2015, dedicado aos crimes cometidos com armas de fogo, estimou em 15,2 milhões de unidades o arsenal privado. Seriam 6,8 milhões de armas registradas, 8,5 milhões irregulares e 3,8 milhões nas mãos de criminosos. De 1980 a 2012, 880.386 brasileiros perderam a vida com tiros; 497.570 tinham de 15 a 29 anos. Em 2012, o país registrou 56.377 homicídios de todo tipo, alta de 13,4% sobre 2002, início da série. Dos mortos, 30.072 eram adolescentes e jovens; sete em dez, negros.
No Mapa da Violência 2012, que analisou agressões a crianças e adolescentes, o Sistema Único de Saúde registrou 39.281 atendimentos na faixa etária de zero a 19 anos em 2011. Mais de três mil ocorrências envolveram bebês de menos de 1 ano. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimou em 5.664 o total de mulheres assassinadas por ano, entre 2001 e 2011. É um homicídio a cada hora e meia. Não foi à toa que entrou em vigor, este ano, a Lei do Feminicídio. O Grupo Gay da Bahia informa que todo dia uma pessoa morre por LGBTfobia no país. Falta criminalizar os atos de ódio por orientação sexual.
A série de estatísticas da violência é menos para assustar e mais para lembrar que uma sociedade brutalizada não se desconstrói do dia para a noite. A semente nociva do desprezo pela integridade física do outro está em nós. Diante de um crime hediondo, a mais cândida das avós é capaz de propor técnicas de tortura de fazer corar agente do DOI-Codi. O Brasil precisa se confrontar com sua natureza bárbara e firmar um urgente pacto pela vida.
* Colunista de "O Globo"
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