sexta-feira, 10 de abril de 2015

Estado Mascarado



Por 
 
Sábado fui no Rio de Janeiro, no protesto contra as mortes no Morro do Alemão. Querendo falar e desisto. Desesperança completa. A sensação mais viva é de que nada disso vai ter fim.
 
Política de drogas hipócrita, mas não só hipócrita, afinal é exatíssima no intento porque lucrativa demais pra gente poderosa demais e morte de quem não tem dinheiro tá tudo certo pra esse esquema aterrador. O Estado mata, a imprensa diz ok, a sociedade diz amém e seguimos como se nada. E, ironias da vida, nunca se falou tanto em Deus.
 
Uma criança leva um tiro de fuzil na nuca, disparado por um policial, na porta de casa. Como dizia um cartaz na caminhada “tiro na cabeça não é despreparo”. Minha cabeça rodando, o corpo dói de tristeza, nojo da forma como a gente se organiza pra viver, pra que uns vivam e outros não.
 
Sol de outono gritando, às 10:30 da manhã de 4 de abril, na entrada da Grota, pé do Morro do Alemão. Um microfone ligado no ponto de táxi. Muita gente vai lá e fala de dores coletivas, em discurso emocionado, poesia, música, enquanto outros grafitam uma parede, outros observam, uns com cartazes, outros não, todos com rostos cúmplices da mesma ideia. Gente do morro e do lado de baixo também. Todo mundo era irmão de algum jeito ali e só ali. Uma força coesa que dava até a ilusão de vitória. São bonitos demais esses momentos. Gente pedindo a mesma coisa, mesmo com pontos de vista diferentes, discursos diferente às vezes: PAZ. Não uma paz subjetiva, mas um pedido muito concreto, pela dor ainda vivíssima das mortes das últimas décadas, últimos anos, meses, dias, mortes sem fim, incluindo a de Eduardo de Jesus.
 
Alguém falava no microfone “bala perdida” e alguém gritava de longe “bala achada!”, alguém gritava “fora rede Globo!” e alguém gritava de volta “é importante todas as TVs estarem aqui!”…
E fomos nós no solão…
 
Às vezes fecho os olhos enquanto vou devagar nessas turbas de andada, em protestos por isso e aquilo, nessa cidade e naquela outra e na outra de lá. Faço isso faz tempo e sempre que abro os olhos me pegam de jeito os olhares dos policiais. Os olhares deles dizem em que parte da cidade você está. Eles olham te dando segurança (ou achando que te dão isso) ou te inspirando medo e apenas medo.
Um carro de apelido Caveirão já é por si uma aberração. E dentro da caveira o Estado mascarado, armado até os dentes, fuzis pra fora das janelas, imponentes, lataria com tinta bonita, preto fosco, pneus robustos e ameaçadores. Pra quem mora ali normal. Não poderia ser. Mas é. Normal.
 
O inimigo é a população numa praça, chorando seus mortos.
 
A última andada que tinha ido por morte foi na Vila Sabrina, São Paulo, a de Douglas, morto por um PM porque ouvia som alto no carro. “Douglinhas”, cantavam os amigos, com foto dele na camiseta e também gritavam “Luciano, assassino! Luciano, assassino!” olhando nos olhos dos policiais que acompanhavam o trajeto. Douglas foi aquele que olhou pro policial que tinha acabado de dar um tiro no peito dele e perguntou “por que o senhor atirou em mim?”.
 
E, do mesmo jeito do Rio, um monte de mães com foto de filho assassinado.
 
Dói o motivo da andada e mais ainda os olhares da grande maioria dos policiais ali naquela quebrada e naquela outra ali também. Em Recife, São Paulo, Rio, Salvador…Nossas favelas, nossas Palestinas. Nosso Quênia.
 
Dias antes moradores já tinham descido, querendo justiça, dizendo não pra essas mortes, querendo liberdade, ir e vir, querendo poder celebrar, nas suas próprias casas, no seu próprio bairro e receberam do Estado bombas de gás .
 
Muitos não vão. Medo justíssimo. Outros querem ir e são impedidos. Alguém no microfone, pouco antes da saída, falou que tinha polícia lá em cima com gás de pimenta, impedindo muita gente de descer.
 
No protesto de Douglas alguém, acho que da Anistia, ou da Secretaria de Direitos Humanos, não lembro bem agora, me falou que Emicida ia falar logo mais e me pediu pra falar também. Não consegui. Digo aqui o que falaria lá se não estivesse com o juízo tão tremido.
 
Emicida falou que estava ali porque aquilo podia ter acontecido com ele. Isso me deu mais certeza de não ir lá falar nada. Mas tive vontade de dizer que estava ali porque não poderia ter acontecido comigo e que isso me doía tão fundo e mais fundo…Os dois motivos nos ligavam e isso era importante. Queria falar que nós todos precisávamos estar juntos, que essa era a minha certeza na vida. Precisamos estar juntos, é a única saída possível. Mas não, eu não falei nada disso ali.
 
O pai de Douglas falava “meu filho estava com documentos! Eu sempre falava, Douglas, levou a identidade? E ele sempre levava. A identidade e o cpf…ele era um menino trabalhador, responsável”.
Eu queria gritar enquanto ouvia aquilo! Gritar que qualquer pessoa podia andar sem documento, ser mal aluno, não ser trabalhador, ser farrista, dormir na rua, ouvir o som mais alto do bairro. Gritaria também, na cara do PM que me olhava feio, que nem fumar ou vender maconha, cheirar ou vender pó (pra gente de bairro rico cheirar tranquilo, pra políticos cheirarem tranquilos…)…que nada disso, absolutamente, poderia servir de argumento pra um policial matar ninguém. Mas, claro, eu não disse. Lógico que eu não disse!! E eu não poderia falar nada depois daquele pai. Nada. Meu grito foi pra dentro mesmo, onde ele deveria ficar. Tudo certo. Tudo errado.
 
Um fotógrafo falou “segura  a faixa ali junto com eles, pra eu registrar?”. Não fui. Só queria andar junto, gritar junto. Que eles aparecessem na foto com a dor deles e só deles, dor que eu apenas projeto, que eu apenas desconfio de como seja e nem me imagino suportando. Eu que já chorei meus mortos de outra guerra, em outros morros, de outro alemão…
 
Com Eduardo de novo a mesma coisa, “ele era um bom aluno, um menino de ouro…estava na porta de casa com um caderninho da escola”. Quero gritar de novo. Mas o que eu posso falar depois dessa mãe? Nada. Engole aí. Nova náusea.
 
Não tem fim. Não tem fim, inclusive, porque não é que estamos estagnados, estamos indo no sentido completamente inverso à solução. Vamos reprimir mais em vez de desmilitarizar. Vamos reduzir a maioridade penal, em vez de transformar essa política de drogas hedionda. Vamos botar mais polícia repressora em vez de escola, saúde e diversão pras crianças.
 
Em protesto na periferia a polícia te olha com fome. A polícia te dá medo, muito mais medo do que daquele lado onde se tem dinheiro. Sem falar nos lugares onde ela mete medo nenhum, muito pelo contrário, onde quem protesta tira selfie com policiais sorridentes, fazendo o legal com o dedão e emoji de coração.
 
Em protesto na perifa, irmão, caso você de lá não seja e lá nunca tenha ido e, logo, disso nunca tenha sabido na pele, a polícia te olha como uma infecção. Sim, tem exceção. Ela só não dá conta dessa demanda. Os que descem o morro pra protestar são heróis e heroínas, corajosos no limite. Olhar nos olhos de quem te rouba a naturalidade do dia a dia, a leveza na vida, no mínimo…ou um parente, amigo, vizinho, quando chega no seu máximo de eficiência é para os fortes, muito fortes (vale lembrar que alguns policiais filmavam tudo com celular). Sua festa você não vai poder fazer, mas alguém vai poder matar seu filho e isso vai gerar uma nota de jornal, ou matérias tratando o assunto como corriqueiro.
 
Parênteses pra lembrar que nesse mesmo dia teve entrega de ovos de Páscoa e de gibis pelos guerreiros do Voz da Comunidade. Coisa linda danada que eles fazem.
 
Um tiro de fuzil na nuca de uma criança no Leblon, em Copacabana…dado por um agente do Estado, geraria jornais inteiros por meses, novelas e longas metragem, leis seriam mudadas, quem sabe a polícia desmilitarizada, a família pararia o trânsito da cidade inteira e seria aplaudida por toda sociedade emocionada e generosa. Seria uma Páscoa lembrada como um 11 de Setembro. Flores, fontes e monumentos. Nome de rua mudado, instituto com o sobrenome da criança, altar monetado na praça, o nome do personagem da nova minissérie.
 
No Morro a família e vizinhos descem pra protestar e levam bomba de gás na cara. Sim, já sabemos. Sim, isso é praxe. O tiro de fuzil tratado como um acidente de percurso, uma fatalidade no combate a o que mesmo? Ao mal?
 
Tinha uma criança bebê, no colo da mãe, com um riso tão aceso e que todo mundo ali queria que continuasse a existir sempre, querendo só “é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci e poder me orgulhar…”. E essa música, a mais bonita de todas naquela quentura fastiosa, a poesia maior de todas, o maior fundamento de liberdade.
 
E aquela coisica pequena, tão linda e aquele olharzinho tão olharzão, que eu cruzava hora e outra, no meio da multidão e que me dava gotinhas de alegria nesse dia de Rio tão choro.
 
As crianças ali todas certeiras, completas de vontades, com cartazes fortes e seguros. Olhavam pras câmeras, rostos sérios, encarando qualquer coisa que essas câmeras (às vezes câmeras abutres…) tivessem a dizer, a corresponder, nem que fosse só com dor dividida, nem que fosse só com culpa.
 
Saí de lá me sentindo estranhamente culpada, cabeça abaixada, desmerecedora de qualquer coisa que eu já tenha, até de verdade, merecido. Isso também passa e depois dá até pra fazer música amena.
Com a dúvida se fazemos tão pouco porque somos impotentes no sistema ou se somos impotentes no sistema justamente por fazermos tão pouco.
 
E a vida passa.
 
E o Rio, que semana passada não me deixou dormir de cachaça, no Sábado de Aleluia não me dorme de tristeza.
 
P. S. Depois de tantas mortes, o governador Pezão deu a notícia que a PM vai ~reocupar~ o Alemão. “Vamos entrar mais fortes, fazer uma reocupação. Segurança continua sendo nossa política mãe”.
Segurança de quem, governador?
 
A mãe de quem?
 

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