Maria Clara Bingemer*.
Contribui para isso, certamente, o outro nome dado ao mesmo amor que o cristianismo, notadamente o Novo Testamento, cunhou como a nomeação de Deus por excelência: ágape. O vocábulo grego ágape significa afeição, amor, ternura, dedicação. Seu equivalente latino é caritas, traduzido nas línguas latinas por caridade (charité, caridad, carità) e mesmo nas anglo-saxônicas (charity). Isso tanto em textos estoicos como cristãos. A força de ágape no texto cristão reside sobretudo no fato de ao longo de todo o NT não aparecer a palavra Eros. Aparece philia para designar o amor sobretudo feito de amizade. Mas, ao se tratar do Deus, de Jesus e do amor que devem viver seus discípulos, é ágape que predomina soberanamente. O mesmo ocorre para descrever e exortar os discípulos a imitar e seguir Jesus, e serem imitadores de Deus, que é misericordioso e não faz acepção de pessoas.
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Filhos do mesmo Pai, são todos irmãos e portanto o próximo não é somente o que está perto de mim mas o forasteiro, o desconhecido, o estrangeiro, o escravo, o inimigo. Os textos maiores que celebram a ágape cristã são o hino ao amor da primeira carta de Paulo aos Coríntios, capítulo 13, e toda a primeira Epístola de João. Portanto, se quisermos aqui definir como se situam Eros e ágape dentro do marco do cristianismo – e, portanto, da teologia cristã – poderíamos encontrar alguns pontos que aparecem nos textos paulino e joanino.
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Neles, o específico do amor agápico é seu caráter não provocado ou estimulado. Trata-se de um amor gratuito, independente do valor de seu objeto, desinteressado. Ágape é, pois, o primeiro exemplo de um amor sem apropriação nem cupidez, um amor que nada tem de egocêntrico. A fim de amar alguém agapicamente, não se espera que ele se torne amável ou que nos compraza. Deve-se amá-lo sem condição prévia. E porque se ama assim, cria-se uma abertura em direção a ele ou ela, abertura de certa maneira “pascal”. Abre-se uma “passagem” em direção ao outro ou outra, dá-se um esquecimento de si no outro.
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Essas são as verdadeiras nuances do amor cristão, considerado o “puro amor”. Em mais de vinte séculos de cristianismo, parece que a teologia e a mística cristãs não resolveram de maneira integradora e satisfatória seu problema com a integração do Eros com a ágape. Certa tradição cristã tem se caracterizado por colocar sob suspeita aquilo que diz respeito ao Eros. Ligado ao mundo das paixões e dos desejos transgressores e proibidos, vai na direção inversa da que leva ao amor de Deus, este sim, puro e elevado, que dignifica o ser humano e o faz merecedor da salvação eterna. O que, no entanto, parece que hoje se impõe como prioridade à teologia cristã é conseguir ultrapassar a dicotomia que se instaurou entre Eros e ágape, aliando um com o mal e o outro com o bem.
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Igualmente primordial é dissociar Eros de uma conotação meramente sexual num sentido genital, aliando-o portanto ao pecado e à transgressão do verdadeiro amor que estaria contido apenas na ágape. Eros e ágape se complementam e interagem mutuamente em fecunda tensão quando se trata do verdadeiro amor. Procurar sufocar o Eros só enfraquecerá e empobrecerá o amor e enrijecerá ágape, o que não é bom para ninguém.
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* Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de ‘Simone Weil – A força e a fraqueza do amor’ (Ed. Rocco). - mhpal@terra.com.br
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Fonte: Jornal do Brasil
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