Por Eugênio Bucci.*
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Morreu nesta
terça-feira, aos 90 anos, o militante comunista, historiador e intelectual
Jacob Gorender. A voz aguda, contida, quase delicada, não denunciava a
fortaleza moral e o texto destemido que marcaram seu caráter. Gorender não se
dobrou a nada – não se dobrou ao dinheiro, não se dobrou à pobreza, não se
dobrou às chantagens psicológicas dos camaradas patrulheiros, não se dobrou à
força bruta. É desses que deixam por biografia uma linha reta e austera. Seguiu
seu próprio pensamento, seu próprio juízo, e nos legou uma obra essencial.
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No final da década
de 80, quando fui editor da revista Teoria & Debate (uma publicação
trimestral ligada ao diretório paulista do Partido dos Trabalhadores), tive a
honra de me aproximar desse grande homem. A primeira lembrança que guardo dele
é o espírito crítico. Naquele tempo, quando a ortodoxia fanática ainda ditava –
por inacreditável que possa parecer – a postura da militância de esquerda, com
uma descabida reverência em relação a nomes de criminosos como Joseph Stalin,
Gorender ensinava a autonomia intelectual e a razão livre, atributos que
carregava pelo menos desde os anos 50 e que lhe cobraram um preço
demasiadamente alto.
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Em 1990, ele
concedeu a Alípio Freire e a Paulo de Tarso Venceslau uma entrevista que publicamos
com destaque na Teoria & Debate. Num trecho particularmente saboroso de seu
depoimento, Gorender contou um caso que ilustra muito bem a idolatria da
mentalidade que vicejava em certos ambientes comunistas. Na década de 50, fora
enviado pelo Partido Comunista à União Soviética (PCUS) para integrar um
programa de estudos marxistas. Estava em Moscou quando a cúpula bolchevique
começou a revelar os chamados “crimes de Stalin”, que dariam o tom dos debates
no 20.º Congresso do PCUS, em 1956. Em reação àquelas denúncias, facções de
stalinistas começaram a negar sistematicamente as barbaridades pelos próprios
dirigentes soviéticos.
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Passemos a palavra a
Jacob Gorender:
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“Durante o curso
[que fazia em Moscou], realizou-se o 20.º Congresso do PC da União Soviética. O
[Diógenes de] Arruda foi ao congresso como representante brasileiro, e a ele se
juntaram [Maurício] Grabóis e Jover Telles, participantes do curso em Moscou.
Para nossa surpresa, o jornal Pravda começou a publicar artigos e discursos de
vários dirigentes com críticas a Stalin. Depois, veio o famoso informe
confidencial de Kruchev. Não o lemos porque não nos foi distribuído. Só
circulava dentro do âmbito do próprio PCUS. Mas nós ouvimos conferências de
professores que nos transmitiram seu conteúdo. O informe fez a primeira
revelação oficial de parte dos crimes de Stalin. Esse congresso vai abalar o
PCB. Em maio de 1956, o informe foi publicado na íntegra pelo The New York
Times e pelos grandes jornais do mundo inteiro. Aqui no Brasil ele foi, a princípio,
declarado falso pelos comunistas. Porém, Arruda, ao regressar da viagem,
confirmou a autenticidade do documento.”
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Na ocasião, os
militantes do PCB liam aqui, neste jornal, as notícias que desmascaravam as
engrenagens genocidas da burocracia stalinista e achavam que tudo não passava
de uma campanha difamatória engendrada pelo imperialismo. Não era possível,
diziam. Aquilo só poderia ser uma falsificação, só poderia ser propaganda
anticomunista. Ficaram chocados quando os delegados brasileiros ao 20.º Congresso
começaram a voltar e confirmaram: o material que a imprensa burguesa publicava
era apenas a verdade. Foram tempos traumáticos para os marxistas, um mundo de
utopias desmoronava. Gorender teve, ainda, uma decepção extra. Em sua volta de
Moscou, fez escala na Hungria, onde viu a invasão dos tanques soviéticos
oprimindo a nação, que tentava se sublevar. Tornou-se ainda mais avesso aos
burocratas, mas não arredou pé do sonho de igualitarismo, pelo qual também
pagou muito caro.
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Em 1967 foi expulso
do PCB. Criou o PCBR. Em 1970 foi preso e condenado a cumprir pena de dois
anos. Como tantos outros, foi torturado. Durante o encarceramento, conseguiu
manter uma atividade profissional regular, que permaneceu em segredo até muito
recentemente. De dentro de sua cela na prisão, atuou como consultor e tradutor
das coleções Os Pensadores e Os Economistas, então publicadas pela Abril
Cultural, cujo diretor era Pedro Paulo Poppovic. Dona Idealina, esposa de
Gorender, servia de intermediária. Ela saía do presídio, após visitar o marido,
carregando uma dessas sacolas que as donas de casa usavam para ir à feira,
cheia de laudas. Eram textos traduzidos do alemão ou do francês que, depois, em
páginas de livro, abasteceriam a cabeça e a imaginação dos leitores.
Naturalmente, aquele trabalho, embora remunerado, não teve crédito, posto que
era feito na clandestinidade, mas uma das edições de O capital da Abril
Cultural, esta com o selo da coleção Os Economistas, teve a (longa) introdução
assinada por Jacob Gorender.
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Quando frequentava a
redação de Teoria & Debate, ainda se dizia comunista, sem a menor
hesitação, mas não pactuava com qualquer forma de opressão do pensamento.
Seguiu seu destino, em sua linha reta. Seu livro Combate nas Trevas, de 1987, que
reconstitui a saga das organizações de esquerda se esfacelando e se reagrupando
em siglas intermináveis durante os anos de repressão mais sangrenta,
inscreve-se como um marco inaugural na tentativa, ainda inconclusa, de desvelar
uma história sombria: a história das torturas e dos assassinatos praticados por
agentes públicos contra cidadãos desarmados, imobilizados e indefesos.
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Gorender encarou
trevas espessas: as do stalinismo, as da ditadura militar e as do fanatismo, do
mais comezinho ao mais totalizante. Deixa uma herança de luz. Foi generoso e
acolhedor com aqueles que eram menores, muito menores do que ele. Foi uma prova
de que a humanidade pode ser melhor do que é. Venceu seu combate, embora ainda
haja trevas a combater.
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* Artigo publicado
hoje, 13 de junho, no jornal O Estado de São Paulo.
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