quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Tempos de educação, ética e participação

Por Maria Alice Setubal*
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Vivemos no segundo semestre um momento político de grande potencial para a educação, em que as campanhas municipais dividem o espaço da mídia com o julgamento do mensalão. De um lado, a sociedade tem a oportunidade de discutir suas cidades. Ao mesmo tempo, debates sobre o julgamento apontarão referências importantes para os brasileiros, especialmente em termos da ética e dos valores que devem embasar decisões fundamentais para o desenvolvimento da política no país. Por outro lado, dados divulgados recentemente descortinam um triste cenário que nos impulsiona para ações urgentes na educação.
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Os resultados do Índice de Alfabetismo Funcional (Inaf) apontam uma melhoria em relação aos dados do analfabetismo absoluto e da alfabetização rudimentar. Mas a proporção dos que atingem um nível pleno de habilidades de leitura, escrita e matemática manteve-se praticamente inalterada entre 2001 e 2011, em torno de apenas 25%.
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No ensino médio, só 35% dos alunos são plenamente alfabetizados. Diariamente nos deparamos com casos ou relatos da baixa qualificação da nossa mão de obra.
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Neste início da corrida pelas eleições municipais, é com satisfação que muitos educadores comprometidos com uma educação de qualidade para todos destacam nas chapas que concorrem em São Paulo três nomes que fizeram parte de administrações públicas em cargos diretamente ligados à educação.
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Nossa surpresa, porém, está na constatação de que a educação figura nas plataformas políticas só como um dos temas ditos prioritários, porém sem propostas efetivas, em discursos tão eloquentes quanto vazios, como geralmente fazem os políticos.
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Temos uma oportunidade nessa eleição de mostrar para todo o país o significado de colocar a educação como eixo central das políticas, para começarmos a reverter esses dados de forma mais expressiva e de repensarmos a formação da sociedade, com ética e a justiça social.
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Tornar São Paulo uma cidade educadora, em que o conhecimento seja o instrumento capaz de empoderar a todos e a cada um, crianças, jovens e adultos, na direção da construção de uma sociedade mais justa e democrática, é o desafio possível. É um desafio a ser alcançado na medida em que ampliarmos os espaços pedagógicos e oportunidades educativas para toda a população.
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Nesse contexto, de um lado, as instâncias da gestão pública podem ser um espaço importante de ações pedagógicas ao implementar políticas relativas ao trânsito, aos resíduos sólidos, ao ambiente, à segurança - é possível construirmos um enfoque formador de cidadania no cotidiano das ações públicas.
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De outro lado, a escola é o lugar fundamental para uma articulação com os diferentes espaços da comunidade relacionando educação com nosso potencial cultural e esportivo, com possibilidades para o ensino e aprendizagem da convivência, da importância do coletivo, do respeito, da diversidade e do diálogo. Trata-se de uma proposta educativa não com ações isoladas, mas integrada ao currículo escolar.
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A complexidade do mundo contemporâneo exige cidadãos que saibam se expressar, buscar, analisar e relacionar conhecimentos, participar de forma crítica das diferentes instâncias da sociedade cuidando das pessoas e do meio ambiente.
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Há uma demanda por uma educação que ofereça a cada um a possibilidade de leitura em seu sentido literal e amplo como leitura do mundo. Não podemos desperdiçar este momento fértil para uma educação para o resgate da ética e dos valores democráticos.
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MARIA ALICE SETUBAL, doutora em psicologia da educação pela PUC-SP, é presidente dos Conselhos do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária e da Fundação Tide Setubal e membro do Conselho do Instituto Democracia e Sustentabilidade.
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Fonte: Folha de São Paulo (SP)

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Aluno branco de escola privada tem nota 21% maior que negro da rede pública

Recorte inédito de dados de desempenho no Exame Nacional do Ensino médio (Enem) de 2010 nas capitais do País, além de confirmar a distância entre as notas médias dos estudantes de colégios particulares e os de Escolas públicas, revela o abismo que separa estudantes brancos e negros das duas redes.
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Os números mostram que as notas tiradas pelos Alunos brancos de Escolas particulares no exame são, em média, 21% superiores às dos negros da rede pública - acima da diferença de 17% entre as notas gerais, independentemente da cor da pele, dos estudantes da rede privada e os da rede pública. O levantamento também aponta distorções entre os Estados. De acordo com especialistas, esse cenário é o reflexo da desigualdade social e também da diferença dos níveis de qualidade das redes estaduais.
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A reserva de vagas por cor de pele está na Lei de Cotas aprovada no Senado na semana passada (mais informações nesta página). O projeto, que precisa ser sancionado pela presidente Dilma Rousseff, prevê que 50% das vagas das universidade federais sejam reservadas para Alunos da Escola pública - respeitando critérios de renda e reservas proporcionais por Estado para pretos, pardos e indígenas.
Como a maioria das federais adota o Enem como critério de seleção, o levantamento indica um cenário aproximado sob a nova Lei das Cotas.
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Vantagem da Escola paga. Por sua vez, a nota média de negros que estudam em Escola privada é 15% superior às dos negros da rede pública - próxima dos 17% entre todos os estudantes da rede particular e da rede pública. Embora em menor dimensão, a variação de desempenho entre negros e brancos dentro da Escola pública também é desvantajosa para o primeiro grupo. Na média, os brancos têm médias 3% maiores que os negros. O fato de os negros terem rendimento menor do que os brancos, mesmo dentro da rede pública, tem explicações econômicas e pedagógicas, segundo a diretora do Todos Pela Educação, Priscila Cruz.
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Na questão econômica, segundo ela, a explicação é que "entre os pobres, os negros são os mais pobres". O lado pedagógico refletiria a baixa expectativa. "Em uma sala de aula, se uma criança negra começa a apresentar dificuldade, a Professora desiste de ensiná-la muito mais rapidamente do que desistiria de um estudante branco."
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O presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE), José Fernandes Lima, ressalta que há um "acúmulo de desigualdades". "Fica claro que temos dois tipos de desigualdade: a social e racial. É a soma de dificuldades", afirma ele, que defende a combinação do fator racial com a cota cujo princípio é a Escola pública. "Se os Alunos da Escola pública entram em desvantagem com a rede privada, os Alunos negros da Escola pública têm uma desvantagem ainda maior."
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Abismos. Segundo Lima, há outros fatores importantes para entender os dados, como a qualidade das redes públicas - principalmente estaduais -, índices de reprovação e até realidades culturais locais. Essa complexidade de fatores fica clara ao analisar os dados por capitais. O mapa do desempenho pelo fator racial mostra verdadeiros abismos. O negro de Belo Horizonte que estuda em Escola pública, por exemplo, tem nota 12% superior à do negro da mesma rede em Manaus. As duas cidades têm os extremos de notas desse grupo: 521,03 e 463,85, respectivamente.
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Vitória, capital capixaba, tem uma média de 502,59 nas provas objetivas (sem a redação) dos estudantes negros, a sexta maior entre as capitais. Mas na comparação com os Alunos brancos de Escolas particulares, a diferença é a maior de todas: os brancos da rede privada têm média 27% superior à dos negros das públicas. Não por acaso, os negros de Escolas públicas de Vitória têm o pior desempenho na comparação com os brancos da mesma rede: nota 8% inferior, demonstrando que as diferenças raciais se reforçam até na mesma realidade Escolar daquele Estado. Os negros das Escolas particulares não têm o mesmo sucesso em notas que os brancos da mesma rede.
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A proporção de negros por Estado, que vai servir como critério para a reserva de vagas nas universidades e Escolas técnicas federais, influencia as médias. Salvador, por exemplo, tem uma das maiores proporções de negros na sua população. Apesar da participação maciça desse grupo na Escola pública, a diferença de nota para os brancos de Escolas privadas bate em 25% - só perde para Vitória.
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Textos. Em geral, as diferenças de desempenho entre negros e brancos sempre são menores nas notas das redações. Em Florianópolis, considerando a parte objetiva do Enem, há uma distância de 20% entre a nota média de negros de Escolas públicas e a de brancos das particulares. Na redação, essa diferença cai para 8%.
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Segundo o Professor Francisco Platão Savioli, da USP e do Anglo, a explicação envolve os tipos de competências que a redação consegue avaliar. "A redação não mede um conhecimento momentâneo, mas um conhecimento calcado na experiência de vida, até mesmo na luta contra as contrariedades", diz ele. "O texto avalia competências que outras matérias não avaliam."
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Cota nas federais divide estudantes beneficiados
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A estudante Luana Miranda, de 19 anos, fez todo o Ensino médio no período noturno porque a Escola estadual onde estudava, em Itapevi, na Grande São Paulo, simplesmente não oferecia o ciclo pela manhã. Segundo ela, o horário era péssimo e o Ensino que recebia, precário. Negra, filha de profissionais autônomos que não cursaram o Ensino superior, Luana se prepara para o vestibular no Cursinho da Poli. Apesar de ser beneficiada pela lei, ela é contra as cotas raciais. "Os negros ainda sofre preconceito, a elite brasileira é branca. Mas isso não justifica as cotas. Não é a cor de pele que diz as dificuldades pelas quais você passou", diz ela. Mas Luana não descarta usar o benefício em uma federal para entrar em Letras ou Artes Cênicas. "Não acho um absurdo, é uma conquista."
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A colega Inaiá Regina Batista, de 17 anos, também sofreu com a precariedade do Ensino médio noturno, em Osasco, e apoia a lei. "Em 2011, prestei vários vestibulares, para ver como era, e vi que não tinha aprendido nada. Não dava para competir com Alunos de Escolas boas", diz ela, que é negra, vestibulanda de Direito, agora também no cursinho.
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Há dois anos, Marcelo Vinicius Domingos, de 20 anos, sofria da mesma falta de expectativa. Estudante de Escola pública durante a vida toda, ele só considerou a possibilidade de concorrer a uma vaga em universidade pública quando a prefeitura inaugurou um cursinho gratuito. Com o curso, passou em Engermagem na USP. "Se eu tivesse tido uma formação adequada, passaria direto. Ainda assim, acho que cotas é como tentar tapar um buraco mais profundo."
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Para Danielle Ferreira, diretora de Combate ao Racismo do Diretório Central de Estudantes da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a cota é um instrumento de reparação que permite o acesso à universidade de segmentos da sociedade até então alijados desse processo.
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"A ideia de que a qualidade do Ensino nas federais vai diminuir após a adoção das cotas é preconceituosa, para não dizer racista", afirma a estudante, que foi aprovada em Fonoaudiologia graças à reserva de vagas para negros oriundos de Escola pública, existente na UFBA desde 2004.
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'Diferença na nota não será mantida na faculdade'
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A desigualdade entre Alunos cotistas e não cotistas medida pelo Exame Nacional do Ensino médio (Enem) não vai definir a vida acadêmica, afirma o Professor João Feres Júnior, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). "A diferença na nota de entrada não significa que ela será mantida dentro da faculdade ou na saída." Para ele, prever a queda da qualidade das instituições como reflexo das cotas é um "exercício catastrófico de futurologia". Pesquisador de ações afirmativas, Feres Júnior cita o exemplo da própria Uerj, a primeira universidade do País a implementar uma política de reserva de vagas. A instituição elaborou um relatório de performance que avaliou os estudantes entre 2004, ano do início das cotas, e 2010, quando a primeira turma a entrar no novo modelo concluiu o curso.
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O trabalho mostrou que o grande desafio para os cotistas não está relacionado à defasagem, mas à evasão Escolar. "As cotas transformaram a Uerj. Ela ficou mais democrática e não houve impacto na qualidade." Ainda segundo o Professor, uma "consequência positiva" do projeto de lei aprovado no Senado pode ser a valorização do Ensino médio nas Escolas públicas. "Ficará mais interessante para famílias de classe média baixa matricular os filhos na rede pública", diz Feres Júnior. Outro efeito seria o crescimento de "ilhas de excelência" no Ensino superior privado, que atrairão "os filhos de uma faixa da classe média sem recursos para pagar por uma Escola mais cara".
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Na opinião da consultora de Educação Ilona Becskeházy, haverá uma "fuga de cérebros" para universidades privadas, o que seria um "erro de estratégia". "Nossa necessidade mais premente é criar uma população economicamente ativa capacitada para aumentar a renda per capita e consolidar a posição de relevância do Brasil. Se você tira o componente da atração das melhores cabeças das universidades públicas, acaba desconcentrando esse esforço", diz.
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Para ela, no entanto, o projeto de lei é "legítimo". "Até hoje, o Brasil não tinha tomado a decisão de popularizar o Ensino superior público, sobretudo cursos como Medicina, Engenharia e Direito." A consultora afirma que é hora de a sociedade pensar e se manifestar sobre as cotas. "A primeira impressão é de que essa lei é fruto de uma movimentação política para ganhar pontos com a população."
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Fonte: O Estado de São Paulo

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Epidemia de amor pelas crianças

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Por Contardo Calligaris*
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1) É habitual que, na infância e na adolescência, um jovem sonhe com vitórias e aplausos, sem pensar nos esforços necessários para merecê-los.
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Nestes dias, deparo-me com crianças ninadas por devaneios de glória olímpica. Sem querer, corto seu barato, explicando o que é indispensável fazer para que esses sonhos se transformem numa chance real de chegar lá.
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As crianças respondem que elas não têm a intenção de realizar o tal sonho: apenas querem o prazer de devanear em paz. Até aqui, tudo bem, mas os pais me acusam de estragar, além dos sonhos, o futuro dos filhos, os quais, segundo eles, para triunfar na vida, precisariam confiar cegamente em seus dotes.
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O problema é que os elogios incondicionais dos pais e dos adultos não produzem "autoconfiança", mas dependência: os filhos se tornam cronicamente dependentes da aprovação dos pais e, mais tarde, dos outros. "Treinados" dessa forma, eles passam a vida se esforçando, não para alcançar o que desejam, mas para ganhar um aplauso.
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Claro, muitos pais gostam que assim seja, pois adoram se sentir indispensáveis (no cinema, uma mãe enfia a cara embaixo de seu próprio assento para atender o telefone que vibrou no meio do filme e sussurrar um importantíssimo: sim, pode tomar refrigerante).
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2) Meu irmão, aos dez anos, quis que todos escutássemos uma música que ele acabava de "compor". Movimentando ao acaso os dedos sobre o teclado (não tínhamos a menor educação musical), ele cantou uma letra que começava assim: sou bonito e eu o sei. Minha mãe escutou, constrangida, e, no fim, declarou que a letra era uma besteira, e a música, inexistente. Mas, se meu irmão quisesse, ele poderia estudar piano --à condição que se engajasse a se exercitar uma hora por dia. Meu irmão (desafinado como eu) desistiu disso e se tornou um médico excelente.
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3) Os pais dos meus pais davam, no máximo, um beijo na testa de seus filhos. Já meus pais nos beijavam e abraçavam. Mesmo assim, não éramos o centro da vida deles, enquanto nossos filhos são facilmente o centro da nossa.
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Para a geração de meus avós e de meus pais, a vida dos adultos não devia ser decidida em função do interesse das crianças, até porque o principal interesse das crianças era sua transformação em adulto (criança tem um defeito, foi-me dito uma vez por um tio: o de ser ainda só uma criança).
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Lá pelos meus oito anos, eu tinha passado o domingo com meus pais, visitando parentes. A noite chegou, e eu não tinha nem começado meu dever de casa. Pedi uma nota assinada que me desculpasse. Meu pai disse: esta criança está com sono e deve trabalhar, façam um café para ele. Detestei, mas também gostei de aprender que, mesmo na infância, há coisas mais importantes do que sono e bem-estar.
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4) Na pré-estreia do último "Batman", em Aurora, Colorado, um atirador feriu 58 pessoas e matou 12. Um comentador da TV norte-americana (não sei mais qual canal) disse, de uma menina assassinada, que ela era "uma vítima inocente".
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Se só a menina era inocente, quer dizer que os outros 11, por serem adultos, eram culpados e mereciam os tiros?
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Tudo bem, estou sendo de má-fé: o comentador queria nos enternecer e supunha, com razão, que, para a gente, perder um adulto fosse menos grave do que perder uma criança, que tem sua vida pela frente e, como se diz, ainda é "um anjo". No entanto, eu não acredito em anjos e ainda menos acredito que crianças sejam anjos. Também não sei o que é mais grave perder: a esperança de um futuro ou o patrimônio das experiências acumuladas de uma vida? Você trocaria seus bens atuais por um bilhete da Mega-Sena de sábado que vem?
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5) Cuidado, não sonho com uma impossível volta ao passado. Essas notas servem para propor uma mudança preliminar na maneira de contabilizar as falhas que podem atrapalhar a vida de nossos rebentos. Explico.
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A partir do fim do século 18, no Ocidente, as crianças adquiriram um valor novo e especial. Únicas continuadoras de nossas vidas, elas foram encarregadas de compensar nossos fracassos por seu sucesso e sua felicidade. Desde essa época, em que as crianças começaram a ser amadas e cuidadas extraordinariamente, nós nos preocupamos com os efeitos nelas de uma eventual falta de amor. Agora, começo a pensar que nossa preocupação com os estragos produzidos pela falta de amor sirva, sobretudo, para evitar de encarar os estragos produzidos pelos excessos de nosso amor pelas crianças.
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* - Contardo Calligaris, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas na versão impressa de "Ilustrada".
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Fonte: Folha de São Paulo (SP)

Opinião: Educação de qualidade no Brasil

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Luiz Carlos Amorim, escritor.
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A TV mostrou incansavelmente o "discurso" da nossa presidente sobre a Educação no Brasil. Entre outras tantas coisas, ela disse, na 9 Conferência Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente, que "uma grande nação deve ser medida por aquilo que faz pelas suas crianças e seus adolescentes". Pergunto: quando o Brasil será uma grande nação? E ela continua: "O país precisa garantir Ensino de qualidade para todos, Ensino de padrão de Primeiro Mundo. Não é o Produto Interno Bruto que importa, é a capacidade do país, do governo, de proteger o presente e o futuro de nossas crianças e adolescentes". Se ela sabe de tudo isso, por que não faz acontecer?
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Ela não devia estar falando do Brasil, evidentemente, pois nossas Escolas públicas estão defasadas, abandonadas, muitas delas caindo aos pedaços, sem os equipamentos necessários, com os Professores ganhando menos do que deveriam para formar os nossos adultos de amanhã, que regerão os destinos do país. A Educação brasileira está jogada às traças, cada vez mais sucateada. O sistema de Ensino foi mudado para pior. A julgar pelo que a presidente disse, o que se pode dizer do Brasil, pelo que ele faz pelas suas crianças? Gostaria que a presidente respondesse.
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Uma coisa boa, no tal discurso, foi ela prometer que vai "aumentar o número de Escolas em tempo integral no país", dobrar o número de colégios de Ensino fundamental e do Ensino médio desse tipo, que hoje é de 33 mil estabelecimentos. "Nenhum país desenvolvido tem Escolas de período único." Eu não conheço nenhum colégio de Ensino integral, mas torço para que já exista o número que ela citou. Será que podemos acreditar numa promessa dessa em ano eleitoral? Aliás, não precisava ser ano eleitoral, a dúvida existiria.
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Seria muito bom se fosse verdade. Quero que ela me mostre que a minha descrença não tinha fundamento e implante todas as Escolas que prometeu, que as faça funcionar, com Professores qualificados, bem pagos, e que as Escolas sejam bem equipadas, funcionais. Mas e as Escolas públicas que estão aí, sem reformas há dezenas de anos, sendo desativadas, obrigando as que sobram a aumentar os turnos, diminuindo a carga horária dos estudantes? Ou então colocando em risco a vida de Alunos e Professores em salas com o teto quase caindo, com instalação elétrica oferecendo perigo, com a instalação hidráulica não funcionando, etc., etc? Se as "novas Escolas" apenas substituirão as que aí estão, não haverá aumento de Escolas.
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A presidente falou em disputar "economia do conhecimento", afirmou e reafirmou que o Brasil só vai ser um país desenvolvido quando todas as crianças e jovens tiverem acesso à Educação de qualidade". Ótimo, todos achamos isso. E onde está a Educação de qualidade? Por que o Brasil não providencia Ensino de qualidade para suas crianças e para seus jovens? Por que não recupera e investe na Educação para que ela volte a ter qualidade? Por que não há mais respeito pela Educação por parte dos donos do poder?
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Fonte: Correio do Povo (RS)

sábado, 4 de agosto de 2012

Debates: Lições de Cocal dos Alves e de Brasília

José Francisco Soares*
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O Brasil acumulou, ao longo de sua história, um grande déficit educacional. Assim, a desigualdade educacional é tão prevalente em nosso país quanto a desigualdade de renda. O pagamento dessa dívida exige muitos investimentos em recursos humanos e materiais em todas as etapas da educação básica, geridos com o objetivo de cumprir a missão institucional dessas escolas, que é garantir o direito à educação, na forma prevista em nossa legislação.
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A pesquisa educacional internacional estabeleceu firmemente que três dimensões devem estar presentes concomitantemente para o bom funcionamento de uma escola: materiais, pessoas e pedagogia.
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Os recursos devem ser suficientes para garantir salários adequados e prover as materialidades necessárias, o que inclui merenda, horário de reforço, materiais educacionais de qualidade e quantidade suficientes, equipes de apoio técnico e afins.
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As pessoas que fazem a escola são seus professores, funcionários, alunos e respectivas famílias. Todos devem estar devem estar capacitados e comprometidos em fazer da escola um local de aquisição de aprendizados relevantes. E, finalmente, a pedagogia, a ciência da sala de aula, que para se materializar depende da existência dos outros meios.
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Em recente pesquisa que coordenei no Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais da Faculdade de Educação da UFMG, foi possível medir o efeito das escolas municipais de educação básica no aprendizado de cada um de seus alunos, independentemente de suas características socialdemocráticas, que cristalizam vantagens ou desvantagens educacionais.
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Ou seja, medimos o quanto a escola em si, por meio de suas políticas e práticas internas, contribui para o aprendizado de seus alunos, depois de descontadas as diferenças socioeconômicas entre eles que estão fora do controle da escola. Ao se correlacionar este efeito com o gasto municipal por aluno, observamos uma associação muito baixa. Ou seja, há escolas de municípios que gastam muito pouco e têm ótimos resultados.
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O melhor exemplo é Cocal dos Alves, uma pequena e agora famosa cidade do Piauí que tem garantido a seus alunos excelentes resultados.
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No outro extremo está Brasília, onde o gasto por aluno é equivalente ao de um aluno em uma escola privada, mas onde há muitos alunos que não aprendem o necessário. Essas evidências e muitas outras, já obtidas no Brasil e no exterior, mostram que a mera alocação de mais recursos ao sistema brasileiro de educação básica, mantida sua forma atual de uso desses recursos, não produzirá as mudanças que o país necessita.
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A redução da complexa questão do atendimento dos direitos educacionais dos brasileiros a uma única dimensão coloca a sociedade diante de uma falsa decisão.
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O Plano Nacional de Educação tem 19 outras metas. Elas não foram adequadamente debatidas pela sociedade. A sua implementação exigirá decisões difíceis, cujos contornos ainda não são completamente conhecidos. Não há nenhuma evidência sólida de que atingir a meta de recursos levará automaticamente ao atingimento das outras metas.
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A educação brasileira precisa de mais recursos a serem usados para o pagamento da dívida educacional. No entanto, embora a evidência empírica aqui apresentada trate apenas da educação básica, alocar 10% do PIB à educação não deve ser obrigatório até que se tenha mais clareza e consenso sobre como os novos recursos serão gastos.
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JOSÉ FRANCISCO SOARES, 60, doutor em estatística pela Universidade de Wisconsin em Madison (EUA), é professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais

Debates: 10% ainda é pouco

Ivan Valente*
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Depois de 18 meses de tramitação, a Comissão Especial do Plano Nacional de Educação na Câmara concluiu a votação do novo Plano Nacional de Educação.
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O texto, que ainda precisa passar pelo Senado, estabelece 20 metas que o país deve atingir no prazo de dez anos. Entre elas: fim do analfabetismo, aumento do atendimento em creches, ensino em tempo integral em ao menos 50% das escolas públicas e o crescimento da fatia da população com ensino superior.
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Ao longo de todo o debate na Câmara, no entanto, o maior embate foi sobre o aumento dos recursos para a educação. Atualmente, União, Estados e municípios aplicam, juntos, cerca de 5% do PIB no setor. De acordo com a proposta inicial do governo, a meta de financiamento do PNE seria de 7% do PIB em dez anos.
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Mas há muito tempo movimentos sociais, estudantes e profissionais da educação reivindicam um aumento significativo de recursos. Já no primeiro PNE (2001 - 2011), vetado por FHC, o Congresso tinha aprovado 7% do PIB para a educação. Dez anos depois, o governo Dilma propôs o mesmo índice para 2021, o que gerou protestos em todo o país. Durante a tramitação na Câmara, o valor foi sendo ampliado. Mas, para especialistas, continuava insuficiente para que a educação superasse o seu atraso histórico.
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Desde os anos 90, pesquisas apontam os 10% do PIB como patamar mínimo a ser investido, ao longo de vários anos, para garantir acesso, permanência e qualidade na educação e superar problemas estruturais. Após muita pressão dos movimentos e de partidos como o PSOL, um acordo feito entre governo e oposição garantiu a aprovação dos 10% na comissão especial. O governo se comprometeu a investir 7% do PIB na educação nos primeiros cinco anos de vigência do plano (até 2016) e 10% ao final de dez anos (até 2021). A aprovação de forma escalonada, no entanto, não garante por si só a melhoria dos problemas.
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Quando falamos em qualidade social da educação, é fundamental considerar o custo-aluno-qualidade e aspectos como a redução do número de alunos em sala de aula, valorização, salários dignos e formação continuada dos docentes. Para garantir tudo isso, é fundamental recursos suficientes. Países da OCDE que hoje investem entre 5 e 6% de seu PIB no setor já superaram aspectos como esse, sobretudo porque investiram, durante muito tempo, patamares bastante superiores a 10% do PIB na educação. O Brasil, portanto, ainda não fez sua lição de casa.
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O governo e setores contrários ao aumento do financiamento da educação dizem que destinar 10% do PIB ao setor é perdulário, num contexto em que faltam recursos.
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É preciso lembrar, no entanto, que os R$ 450 bilhões a mais que agora devem ser aportados à e
ducação, no período de dez anos, estão muito distantes do que o governo gastará no mesmo período com o pagamento de juros da dívida pública.
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Só em 2011, foram R$ 230 bilhões. Ou seja, o governo aceita gastar R$ 230 bilhões ao ano em juros da dívida, mas diz não ter R$ 450 bilhões em dez anos para a educação.
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A presidenta Dilma ainda ameaça levar a discussão do PNE para o plenário da Câmara e tentar mudar o texto no Senado. Ou seja, ainda há muita luta pela frente. Como o PNE não prevê sanção no caso de descumprimento de suas metas, somente a mobilização popular nas ruas e no Parlamento pode garantir a aplicação correta da porcentagem do PIB na educação.
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É necessário, assim, que os setores que se preocupam com a qualidade da educação continuem alertas. Do contrário, a conquista dos 10% do PIB pode não sair do papel.
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*IVAN VALENTE, 66, engenheiro mecânico, é deputado federal pelo PSOL-SP e presidente nacional do partido. Integrou a comissão especial do PNE na Câmara

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Coração ferido: a irracionalidade da razão

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Por Leonardo Boff*
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Não estamos longe da verdade se entendermos a tragédia atual da humanidade como o fracasso de um tipo de razão predominante nos últimos quinhentos anos. Com o arsenal de recursos de que dispõe, não consegue dar conta das contradições, criadas por ela mesma.
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Já analisamos nestas páginas como se operou, a partir de então, a ruptura entre a razão objetiva (a lógica das coisas) e a razão subjetiva(os interesses do eu). Esta se sobrepôs àquela a ponto de se instaurar como a exclusiva força de organização histórico-social.
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Esta razão subjetiva se entendeu como vontade de poder e poder como dominação sobre pessoas e coisas. A centralidade agora é ocupada pelo poder do "eu", exclusivo portador de razão e de projeto. Ele gestará o que lhe é conatural: o individualismo como reafirmação suprema do "eu". Este ganhará corpo no capitalismo cujo motor é a acumulação privada e individual sem qualquer outra consideração social ou ecológica. Foi uma decisão cultural altamente arriscada a de confiar exclusivamente à razão subjetiva a estruturação de toda a realidade. Isso implicou numa verdadeira ditadura da razão que recalcou ou destruiu outras formas de exercício da razão como a razão sensível, simbólica e ética, fundamentais para a vida social.
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O ideal que o "eu" irá perseguir irrefreavelmente será um progresso ilimitado no pressuposto inquestionável de que os recursos da Terra são também ilimitados. O infinito do progresso e o infinito dos recursos constituirão o a priori ontológico e o parti pris fundador desta refundação do mundo.
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Mas eis que depois de quinhentos anos, nos damos conta de que ambos os infinitos são ilusórios. A Terra é pequena e finita. O progresso tocou nos limites da Terra. Não há como ultrapassá-los. Agora começou o tempo do mundo finito. Não respeitar esta finitude, implica tolher a capacidade de reprodução da vida na Terra e com isso pôr em risco a sobrevivência da espécie.
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Cumpriu-se o tempo histórico do capitalismo. Levá-lo avante custará tanto que acabará por destruir a sociabilidade e o futuro. A persistir nesse intento, se evidenciará o caráter destrutivo da irracionalidade da razão.
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O mais grave é que o capitalismo/individualismo introduziu duas lógicas que se conflitam: a dos interesses privados dos “eus” e das empresas e a dos interesses coletivos do “nós” e da sociedade. O capitalismo é, por natureza, antidemocrático. Não é nada cooperativo e é só competitivo.
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Teremos alguma saída? Com apenas reformas e regulações, mantendo o sistema, como querem os neokeynesianos à la Stiglitz, Krugman e outros entre nós, não. Temos que mudar se quisermos nos salvar.
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Para tal, antes de mais nada, importa construir um novo acordo entre a razão objetiva a a subjetiva. Isso implica ampliar a razão e assim libertá-la do jugo de ser instrumento do poder-dominação. Ela pode ser razão emancipatória. Para o novo acordo, urge resgatar a razão sensível e cordial para se compor com a razão instrumental.
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Aquela se ancora do cérebro límbico, surgido há mais de duzentos milhões de anos, quando, com os mamíferos, irrompeu o afeto, a paixão, o cuidado, o amor e o mundo dos valores. Ela nos permite fazer uma leitura emocional e valorativa dos dados científicos da razão instrumental. Esta emergiu no cérebro neocortex há apenas 5-7 milhões de anos. A razão sensível nos desperta o reencantamento e o cuidado pela vida e pela mãe-Terra.
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Em seguida, se impõe uma nova centralidade: não mais o interesse privado mas o interesse comum, o respeito aos bens comuns da Humanidade e da Terra destinados a todos. Depois a economia precisa voltar a ser aquilo que é de sua natureza: garantir as condições da vida física, cultural e espiritual de todas as pessoas.
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Em continuidade, a política deverá se construir sobre uma democracia sem fim, cotidiana e inclusiva de todos seres humanos para que sejam sujeitos da história e não meros assistentes ou beneficiários.
Por fim, um novo mundo não terá rosto humano se não se reger por valores ético-espirituais compartidos, na base da contribuição das muitas culturas, junto com a tradição judaico-cristã.
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Todos esses passos possuem muito de utópico. Mas sem a utopia afundaríamos no pântano dos interesses privados e corporativos. Felizmente, por todas as partes repontam ensaios, antecipadores do novo, como a economia solidária, a sustentabilidade e o cuidado vividos como paradigmas de perpetuação e reprodução de tudo o que existe e vive. Não renunciamos ao ancestral anseio da comensalidade: todos comendo e bebendo juntos como irmãos e irmãs na Grande Casa Comum.
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Leonardo Boff é teólogo e filósofo e autor de Virtudes para um outro mundo possível, 3 vol.Vozes 2009.