por Salomão Ferreira*
Há sinal de tempestade no ar. Os ventos e nuvens carregadas anunciam maus tempos, mas as pessoas, convenientemente alienadas, buscam no conforto dos shoppings o isolamento da realidade externa que incomoda e dá medo. Com essa figura de linguagem alertamos para a falta de afeto que contamina as sociedades de consumo e subtrai o sujeito da coletividade, isolando-o no mundinho de sua particular leitura de si por si e para si, como verdadeiro “eu” cartesiano, forjado em si mesmo e pela própria ação do sujeito, como se fosse possível ler e nomear o mundo pela eficiência dos olhos que captam as imagens das coisas. Esquecemos que ver não é só enxergar, é interpretar e para isso contamos com a intermediação do outro, pois as coisas adquirem sentido pela convenção coletiva e cultural que as nomeiam e é nela que construímos nossa identidade pessoal, nosso “eu” ético, pessoal e dinâmico, impregnado de alteridade..
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O professor Aluísio Pimenta (1), citando o geógrafo e professor Milton Santos, afirma que “está perto de acontecer, espero que aconteça, uma reação muito grande e violenta por parte dos negros em relação à situação em que eles se encontram.” Pensamos ser conveniente acrescentar que não só os negros, mas toda população excluída que povoa a periferia das grandes economias mundiais.
Enquanto apagamos da memória as coisas que, por conveniência ou por medo, preferimos esquecer, tendemos a conservar aquelas que nos agradam e nos dão prazer ignorando a realidade que salta aos olhos e que nos faz, como em Lispector (2) , “trancar a porta, esquecendo que ao primeiro temporal voará uma porta trancada pelos ares”. Ainda retomando Lispector (1999), é como sonsos essenciais que esquecemos essa casa construída sobre um terreno onde outra casa pode ser erguida. Mas é como sonsos que desacreditamos na possibilidade do terreno e negamos a viabilidade de demolir a velha casa e construir sobre o terreno novos alicerces, cimentado com a lógica do humano, do “eu” impregnado de alteridade, desse outro que nos nomeia e nos ensina a ler o mundo, esse que nos instiga a curiosidade e à vontade de enfrentar os risco de projetarmos no mundo, assumindo os perigos advindos dessa tentadora empreitada. Esse “eu” edificado na alteridade é bem diferente da concepção cartesiana do sujeito individualizado, submergido da lama por suas próprias mãos, como se fosse possível um “eu” parido de si mesmo por seu próprio projeto de gestação e escolhas.
Enquanto apagamos da memória as coisas que, por conveniência ou por medo, preferimos esquecer, tendemos a conservar aquelas que nos agradam e nos dão prazer ignorando a realidade que salta aos olhos e que nos faz, como em Lispector (2) , “trancar a porta, esquecendo que ao primeiro temporal voará uma porta trancada pelos ares”. Ainda retomando Lispector (1999), é como sonsos essenciais que esquecemos essa casa construída sobre um terreno onde outra casa pode ser erguida. Mas é como sonsos que desacreditamos na possibilidade do terreno e negamos a viabilidade de demolir a velha casa e construir sobre o terreno novos alicerces, cimentado com a lógica do humano, do “eu” impregnado de alteridade, desse outro que nos nomeia e nos ensina a ler o mundo, esse que nos instiga a curiosidade e à vontade de enfrentar os risco de projetarmos no mundo, assumindo os perigos advindos dessa tentadora empreitada. Esse “eu” edificado na alteridade é bem diferente da concepção cartesiana do sujeito individualizado, submergido da lama por suas próprias mãos, como se fosse possível um “eu” parido de si mesmo por seu próprio projeto de gestação e escolhas.
Paul Ricouer (3) nos fala do esquecimento e do perdão: o esquecimento daquilo que nos incomoda, que nos tira do conforto de nossa casa e do velho terreno e o perdão à ilimitada simetria, àquela do dano feito a outrem, o assassinato, a morte não sofrida, mas infligida ao outro, em suma, esse mal que o homem faz a outro homem. Mas é esse mesmo mal que, em nossa consideração, não nos afetará e essa impossibilidade de afetação nos aliena até o instante em que batemos de frente com ele e, já acostumados, não damos por fé ou simplesmente vamos às compras onde deixamos, além do limite do cartão de crédito, as dores de nossas desavenças e o perdão por nossa falta de humanidade. Convenientemente depositada no balcão das lojas deixamos os valores éticos e a moeda que condiciona esse esquecimento e perdão.
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Assim, o assassinato brutal e covarde de um professor, a violação do direito às escolhas sexuais dos sujeitos que resultam em ataques homofóbicos e assassinatos na Afonso Pena, o descaso do Estado que provoca exclusões e culmina em execuções na Serra (4) e, porque não, os acidentes trágicos que mutilam e tiram vidas nas principais rodovias. Tudo isso só pode confirmar o extermínio do outro como uma banalidade, algo que só serve para alimentar as manchetes de jornais e não nos afeta, pois, é como “sonsos essenciais” que acreditamos que o terreno é um só e a casa não se abalará com as tempestades.
Para além da realidade apresentada nas manchetes de jornais, o mercado segue diluindo a perversidade da exclusão. A mídia, grande fabricante de certo pó mágico, que torna invisível as mais contraditórias situações, cuida dos lançamentos diários de produtos que, como garante, são a única possibilidade de existência e felicidade. Nessa esteira da mídia, a tradição combina com a modernidade; o consumo de medicamentos de controle da pressão arterial e/ou reposição de cálcio nos portadores de osteoporose sinalizam beleza, poder e boa saúde.
Fica evidente, portanto, que se alastra em nossa sociedade de consumo, uma grave epidemia - como aquela anunciada por Saramago. Ficamos cegos, não por falta de eficiência dos olhos - órgão dos sentidos que possibilitam a captura de imagens visíveis e que nos instiga na busca do invisível –, mas pela falta de capacidade de reter as imagens e processá-las em nossas leituras e análises do mundo. Somos os “cegos essenciais” porque recusamos a ver as evidências ou porque nos isolamos em nosso mundo de conforto, fugindo da afetação dos acontecimentos mundanos. Acreditamos - em nosso individualismo crônico - que estamos sozinhos e só nos importa o limite do cartão de crédito e os últimos lançamentos do mercado nos quais refugiarmos do outro, como se fugir do outro não fosse fugir de si mesmo. Esquecemos que somos o outro e que o “eu” é um sujeito constituído no outro e com o outro. Vale lembrar que o outro não é um objeto exposto em vitrines, um lançamento novo Apple. O outro é aquele que está dentro e fora dos shoppings e que amplia as possibilidades do “eu” para além dos limites financeiros e do poder pessoal de compra implícito nas bandeiras de nossos cartões de crédito.
Notas
PIMENTA, Aloízio. Texto publicado no Jornal Diário da Tarde em 2 de junho de 2001, página 2.
LISPECTOR,Clarice. Para não esquecer. Ed. Rocco, 1999.
RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas. SP: Editora Unicamp, 2007
(4) Não estamos considerando as condições legais em que se deu os assassinatos. Queremos apenas chamar atenção para a ausência do Estado e a eminência social de se criar códigos e leis que possam reger as sociedades e que levam, na ausência daquele, ao aparecimento desses, o que resulta na instituição de “estados” paralelos onde a voz do Estado de direito há muito se fez ausente, omissa ou ineficiente.
* Salomão Ferreira - Estudante do 4º período da FAE (Faculdade de Educação / BH / UEMG).
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