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sexta-feira, 10 de abril de 2015

Uma triste nulidade

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Fábio Konder Comparato*
 
Uma triste nulidade
 
É impossível decifrar os objetivos atuais do Partido dos Trabalhadores
 
Hipócrates, o Pai da Medicina, denominou krisis o momento preciso em que o olhar experiente do médico observa uma mudança súbita no estado do paciente, o instante em que se declaram nitidamente os sintomas da moléstia, ensejando o diagnóstico e o prognóstico.
 
Seremos capazes de fazer um juízo hipocrático da recente piora apresentada no estado mórbido, no qual se encontra, há muito tempo, a vida política brasileira? Creio que o diagnóstico deve ser feito em razão da realidade substancial de nossa sociedade, caracterizada pela estrutura de poder e pela mentalidade coletiva predominante.
 
No Brasil, desde os tempos coloniais, o poder supremo sempre pertenceu a dois grupos intimamente associados: os potentados privados e os grandes agentes estatais. Cada um deles exerce um poder ao mesmo tempo, em seu próprio benefício e complementar ao do outro. Os agentes do Estado dispõem da competência oficial de mando. Os potentados privados, da dominação econômica, agora acrescida do poder ideológico, com base no controle dos principais veículos de comunicação de massa.
 
Trata-se da essência do regime capitalista, pois, como bem advertiu o grande historiador francês Fernand Braudel, “o capitalismo só triunfa quando se alia ao Estado; quando é o Estado”. Quanto à mentalidade coletiva predominante, isso é, o conjunto das convicções e preferências valorativas que influenciam decisivamente o comportamento social, ela foi entre nós moldada por quase quatro séculos de escravidão legal.
 
Essa herança maldita acarretou, em ambos os grupos soberanos acima nomeados, um status de completa irresponsabilidade política, pois desde sempre eles se acharam, tais como os senhores de escravos, superiores à lei e isentos de todo controle. De onde o fato de a corrupção, nas altas esferas do poder público e no setor paraestatal, ter sido até agora tacitamente aceita como costume consolidado e irreformável.
 
Quanto às classes pobres, o longo passado escravocrata nelas inculcou uma atitude de permanente submissão. O pobre não quer exercer poder algum, prefere, antes, ser bem tratado pelos poderosos. Na verdade, o conjunto dos pobres jamais teve consciência dos seus direitos, por eles confundidos com favores recebidos dos que mandam.
 
No tocante à classe média, seus integrantes procuram em regra atuar como clientes dos grandes empresários, proclamando-se, a todo o tempo, defensores da lei e da ordem. Eles sempre desprezaram a classe pobre, ou temeram sua ascensão na escala social.
 
Para completar esse triste quadro, e seguindo a velha prática do mundo capitalista, nossos grupos dominantes aqui forjaram, desde o início, uma duplicidade de ordenamentos jurídicos: o oficial e o real. No Brasil colônia, as ordenações do rei de Portugal mereciam respeito, mas não obediência. O direito efetivo era o que os administradores oriundos da metrópole combinavam com os senhores de engenho e grandes fazendeiros. A partir da Independência, as Constituições aqui promulgadas seguiram o modelo dos países culturalmente adiantados, para melhor dissimular a primitiva realidade oligárquica, vigorante na prática.
 
A Constituição de 1988 não faz exceção à regra. Ela declara solenemente, logo em seu primeiro artigo, que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente”. Na prática, os ditos representantes do povo são eleitos, em sua quase totalidade, mediante financiamento empresarial. E o Congresso Nacional dispõe de competência exclusiva para “autorizar referendo e convocar plebiscito” (art. 49, inciso XV). Ou seja, o povo não exerce poder algum, nem direta nem indiretamente. Ele é simples figurante no teatro político.
 
Acontece que no centro da organização oficial do Estado brasileiro acha-se o seu chefe, isto é, o presidente da República. É de sua habilidade pessoal que depende o funcionamento, sem sobressaltos, desse sistema político de dupla face. Cabe-lhe manter, sob a aparência de respeito à Constituição e às leis, um bom relacionamento com os soberanos de fato, sem esquecer de agradar ao “povão”, dispensando-lhe módicas benesses.
 
Foi o que fez brilhantemente Lula durante oito anos. E é o que Dilma, por patente inabilidade, revelou-se incapaz de compreender e realizar, numa fase de prolongado desfalecimento da economia, no Brasil e no mundo. Ela entrou em choque com o Congresso Nacional, desconsiderou o Supremo Tribunal Federal (até hoje não nomeou o sucessor do Ministro Joaquim Barbosa, aposentado em 31 de julho de 2014) e acabou por se indispor com o empresariado, a baixa classe média e até a classe pobre, ao implementar a política de ajuste fiscal.
 
E o PT no bojo dessa crise?
 
Ele revelou-se uma triste nulidade política, decepcionando todos os que, como eu, se entusiasmaram com a sua fundação, em 1980. A nulidade é bem demonstrada pela leitura de seu atual estatuto, aprovado em 2013. Nele, por incrível que pareça, não há uma só palavra, ainda que de simples retórica, sobre os objetivos do partido. Todo o seu conteúdo diz respeito à organização interna, à qual, aliás, pode ser adotada por qualquer outra legenda.
 
Se esse diagnóstico é acertado, o que se há de fazer não é simplesmente aliviar a crise, mas atacar as causas profundas da moléstia.
 
Para tanto, a via cirúrgica, do tipo impeachment da presidenta ou golpe militar, não só é ineficaz como deletéria.
 
O que nos compete é iniciar desde logo a terapêutica adequada, consistente em quebrar a soberania oligárquica e reformar nossa mentalidade coletiva. Tudo à luz dos princípios da República (supremacia do bem comum do povo sobre os interesses particulares), da democracia autêntica (soberania do povo, fundada em crescente igualdade social), e do Estado de Direito, com o controle institucional de todos os poderes, inclusive o do povo soberano.
 
Bem sei que se trata de caminho longo e difícil. Não se pode esquecer que na vida política o essencial é fixar um objetivo claro para o bem da comunidade, e lutar por ele. Não é deixar as coisas como estão, para ver como ficam.
 
Fábio Konder Comparato é jurista e professor emérito da USP
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sábado, 9 de junho de 2012

"Anomia avassaladora"

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Por Marcos Coimbra*


Anomia significa ausência de leis, de normas, regras de organização, falta de consenso moral e de controles normativos na Sociedade, resultante do colapso da autoridade tradicional. Émile Durkhein analisou o fato nas Ciências Sociais, observando a desintegração dos controles sociais da Sociedade que passava por grandes transições. Em seu estudo clássico Suicídio (1857) afirma que esta desintegração do Contrato Social leva à insegurança, à alienação, e, em condições extremas, ao suicídio.


Poucas vezes na história de um país tivemos, como agora no Brasil, um predomínio tão avassalador da mediocridade e da corrupção generalizada, ocasionando um processo flagrante de anomia. E o fenômeno espalha-se por todos os setores da sociedade brasileira. E não existe uma reação à altura das forças vivas da Nação.


Não há setor invulnerável. Todos são atingidos, em menor ou maior proporção, pela epidemia avassaladora. A premissa básica de um regime democrático consiste justamente no respeito à harmonia, autonomia e independência dos três poderes da República, o Executivo, o Judiciário e o Legislativo. E é exatamente o que inexiste no Brasil hodierno.


Como admitir um Executivo que interfere ostensivamente nos demais poderes? E, pior. Quando um ex-presidente interfere absurdamente não apenas nas escolhas de candidatos de seu partido, cassando quem não aprecia e impondo seus protegidos, como, por exemplo, em SP e no Recife, de uma forma ditatorial, como também procura intimidar integrantes dos Poderes Legislativo e Judiciário, pressionando-os abusivamente, objetivando impor sua vontade, ao arrepio da lei.


O recente episódio da precoce propaganda eleitoral feita no programa de um popular apresentador de programas de TV, no SBT, pertencente, "por coincidência", é claro, a um ex-proprietário de um banco, salvo graças ao apoio decisivo da autoridade monetária, é revelador. O grupo Panamericano foi socorrido. O Banco Cruzeiro do Sul sofreu intervenção do Banco Central.


No Judiciário a intervenção é feita através da indicação dos membros das mais altas cortes do país. Na administração petista, foram nomeados, pelo antigo presidente, mais da metade dos ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e mais de 2/3 dos integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF). Recentemente, a atual presidente nomeou mais dois. O Legislativo apenas aprova, sem tergiversar, as ordens recebidas.


Outro absurdo é flagrar a indecente disputa pela nomeação de cargos de todos os escalões do Executivo por parte de membros do Legislativo. É patética a briga entre os partidos da base aliada pelo botim. Não possuem sequer vergonha na cara.


Como pressupor a isenção dos comandos dos partidos políticos no cumprimento de suas respectivas funções constitucionais, se vivem a mendigar a nomeação de seus apadrinhados para cargos importantes, dotados do poder de nomear centenas de acólitos para cargos comissionados e com capacidade para decidir sobre dezenas de licitações de valores astronômicos. Caso não votem de acordo com as ordens emanadas do Planalto, seus indicados serão decapitados, com as consequências lógicas de ameaça à reeleição de nossos congressistas.


Em países mais democráticos, como os EUA, países europeus etc., é comum haver um presidente de um partido convivendo com uma maioria oposicionista em uma das casas do Congresso, ou até mesmo nas duas. Esta é a essência da Democracia. Cada decisão importante deverá ser negociada passo a passo, em função dos superiores interesses nacionais, e não por causa da nomeação do presidente de uma estatal.


O povo, inebriado pelo pão e circo, suporta tudo, sem protesto. Não há lideranças mais. As Instituições Nacionais vão sendo cooptadas uma a uma. Quase todos têm um preço. Passa a ser uma questão de atender ao que é imposto, seja na área financeira, ou em outra qualquer.


A omissão, a covardia, a cumplicidade, a leniência imperam. Inexiste oposição. Caso houvesse, com um mínimo de competência, o Brasil teria pelo menos o contraditório e a possibilidade de uma alternativa com propostas diferentes. O PT, caso fosse oposição neste momento, já teria levado não só esta administração como a anterior a nocaute. Por que ela não age? Afinal, a presidente atual foi eleita sem aprovação da maioria dos eleitores existentes, considerando-se as abstenções, votos brancos, nulos e no candidato derrotado no segundo turno.


A infra-estrutura econômico-social padece de graves carências, em especial nos importantes segmentos da saúde, da educação, da segurança e dos transportes. Como sonhar em ser a quinta economia do mundo (agora, com a alta do dólar, voltou a ser a sétima, teoricamente), com o baixo nível de qualidade da nossa força de trabalho, em todos os níveis? Com a falta de seriedade com a coisa pública? Com a inexistência de um Projeto Nacional de Desenvolvimento?


E ainda com o grau de corrupção predominante em praticamente todos os setores da sociedade? Com o nó logístico? Com o péssimo exemplo transmitido pelas nossas "autoridades" e pelos meios de comunicação, interessados apenas em audiência e lucro, inteiramente descompromissados com os princípios morais e éticos de nossa civilização judaico-cristã? Com o revolver do passado, ignorando os "mal feitos" atuais?


Infelizmente, não temos a solução para esta problemática apresentada, mas julgamos ser nosso dever expor nossa opinião sobre esta anomia reinante, objetivando buscar a correção dos graves erros existentes, com o auxílio de todos aqueles insatisfeitos, como nós, com este estado de coisas e que ainda são possuidores de amor à Pátria, realmente comprometidos com os valores de nossos antepassados e com o bem estar de nossos descendentes.


Nosso Brasil não merece este triste e melancólico destino. Vamos combater o bom combate, enquanto ainda é tempo. Os tristes e graves exemplos provenientes do Oriente Médio são contundentes. A intervenção externa de potências estrangeiras em países soberanos, provocando a fragmentação deles, a desagregação social e o caos, com a irrupção de guerras civis, levando a "balcanização" de Estados antes autônomos, é preocupante para países como m Brasil, ricos em recursos naturais escassos no mundo e desprovidos de meios adequados de defesa.


*Conselheiro diretor do Cebres, titular da Academia Brasileira de Defesa e da Academia Nacional de Economia e autor do livro Brasil Soberano.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A barreira da desigualdade


Por Fábio Konder Comparato (Revista Carta Capital – 03 de janeiro de 2011)

A ligação entre democracia e direitos humanos é visceral, pois trata-se de realidades intimamente correlacionadas. Sem democracia, os direitos humanos, notadamente os econômicos e sociais, nunca são adequadamente respeitados, porque a realização de tais direitos implica a redução substancial do poder da minoria rica que domina o País. Como ninguém pode desconhecer, sem erradicar a pobreza e a marginalização social, com a concomitante redução das desigualdades sociais e regionais, como manda a Constituição (art. 3º, III), é impossível fazer funcionar regularmente o regime democrático, pois a maioria pobre é continuamente esmagada pela minoria rica.

Acontece que o nosso País continua a ostentar a faixa de campeão da desigualdade social na América Latina, e permanece há décadas entre os primeiros colocados mundiais nessa indecente competição. Em seu último relatório, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano (PNUD) mostrou que os setores de mais acentuada desigualdade social, no Brasil, são os de rendimento e educação.

É óbvio que essa realidade deprimente jamais será corrigida simplesmente com a adoção de programas assistenciais do tipo Bolsa Família. Trata-se de um problema global, ligado à estrutura de poder na sociedade. Para solucioná-lo, portanto, é indispensável usar de um remédio também global. Ele consiste na progressiva introdução de um autêntico regime republicano e democrático entre nós. Ou seja, no respeito integral à supremacia do bem comum do povo (a res publica romana) sobre o interesse próprio das classes e dos grupos dominantes e seus aliados. Ora, se a finalidade última do exercício do poder político é essa, fica evidente que ao povo, e a ele só, deve ser atribuída uma soberania efetiva e não meramente simbólica, como sempre aconteceu entre nós.

Para alcançar esse desiderato, é preciso transformar a mentalidade dominante, moldada na passiva aceitação do poder oligárquico e capitalista. O que implica um esforço prolongado e metódico de educação cívica.

Concomitantemente, é indispensável introduzir algumas instituições de decisão democrática em nossa organização constitucional. Três delas me parecem essenciais com esse objetivo, porque provocam, além do enfraquecimento progressivo do poder oligárquico, a desejada pedagogia política popular.

A primeira e mais importante consiste em extinguir o poder de controle, pelo oligopólio empresarial, da parte mais desenvolvida dos nossos meios de comunicação de massa. É graças a esse domínio da grande imprensa, do rádio e da televisão, que os grupos oligárquicos defendem, livremente, a sua dominação política e econômica.

O novo governo federal deveria começar, nesse campo, pela apresentação de projetos de lei, que deem efetividade às normas constitucionais proibidoras do monopólio e do oligopólio dos meios de comunicação de massa, e que exigem, na programação das emissoras de rádio e televisão, seja dada preferência a finalidades educativas, artísticas e informativas, bem como à promoção da cultura nacional e regional.

A esse respeito, já foram ajuizadas no Supremo Tribunal Federal algumas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão. É de se esperar que a nova presidente, valendo-se do fato de que o Advogado-Geral da União é legalmente “submetido à sua direta, pessoal e imediata supervisão” (Lei Complementar nº 73, de 1993, art. 3º, § 1º), dê-lhe instruções precisas para que se manifeste favoravelmente aos pedidos ajuizados. Seria, com efeito, mais um estrondoso vexame se a presidente eleita repetisse o comportamento do governo Lula, que instruiu a Advocacia–Geral da União a se pronunciar, no Supremo Tribunal Federal, a favor da anistia dos assassinos, torturadores e estupradores do regime militar.

As outras duas medidas institucionais de instauração da democracia entre nós são: 1. A livre utilização, pelo povo, de plebiscitos e referendos, bem como a facilitação da iniciativa popular de projetos de lei e a criação da iniciativa popular de emendas constitucionais. 2. A instituição do referendo revocatório de mandatos eletivos (recall), pelos quais o povo pode destituir livremente aqueles que elegeu, sem necessidade dos processos cavilosos de impeachment.

Salvo no tocante à iniciativa popular de emendas constitucionais, já existem proposições em tramitação no Congresso Nacional a esse respeito, redigidas pelo autor destas linhas e encampadas pelo Conselho Federal da OAB: os Projetos de Lei nº 4.718 na Câmara dos Deputados e nº 001/2006 no Senado Federal, bem como a proposta de Emenda Constitucional 073/2005 no Senado Federal. Recentemente, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a proposta de Emenda Constitucional nº 26/2006, apresentada pelo senador Sérgio Zambiasi, que permite a iniciativa popular de plebiscitos e referendos.

Mas não sejamos ingênuos. Todos esses mecanismos institucionais abalam a soberania dos grupos oligárquicos e, como é óbvio, sua introdução será por eles combatida de todas as maneiras, sobretudo pela pressão sufocante do poder econômico. Se quisermos avançar nesse terreno minado, é preciso ter pertinácia, organização e competência.

Está posto, aí, o grande desafio a ser enfrentado pelo futuro governo federal. Terá ele coragem e determinação para atuar em favor da democracia e dos direitos humanos, ou preferirá seguir o caminho sinuoso e covarde da permanente conciliação com os donos do poder?

É a pergunta que ora faço à presidente eleita.

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*Fábio Konder Comparato é jurista, doutor honoris causa da Universidade de Coimbra, doutor em Direito da Universidade de Paris, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e presidente da Comissão Nacional de Defesa da República e da Democracia da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

terça-feira, 30 de novembro de 2010

MEIOS E FINS: O SENTIDO CULTURAL DAS COISAS

Salomão Ferreira de Souza*

Falaram-me em homem, em humanidade.
Mas eu não tenho visto nenhum homem, nem humanidade.
Vi muitos homens assombrosamente diferentes entre si,
separados por um espaço sem homens.

Alberto Caieiro em Fernando Pessoa, 2001, p. 169.

É por meio da semeadura que os homens garantem o sustento biológico para o corpo. Mas o semear, na simbologia humana, tem um significado que vai além de lançar germes de vegetais sobre um solo preparado. Isso porque os homens, ao coletar frutos ou caçar animais numa floresta natural, não estão lançando sementes sobre o solo em sentido literal, mas cultivando um jeito, uma maneira própria de fazer a coleta e transportá-la, fabricar instrumentos de caça, usá-los de tal ou qual maneira criando, por meio dessas ações, um cultivo próprio cujo fim vai além de saciar a fome.

São nossos órgãos dos sentidos os primeiros instrumentos decodificadores do mundo, do espaço geográfico e das condições materiais e é por eles que cultivamos simbologias, criamos regras e estabelecemos fronteiras e divisões de poder, trabalho e gênero, determinante dos modos de resolver os problemas essenciais da sobrevivência coletiva. A cultura é, dessa forma, um modo particular de cada grupo garantir seu sustento dentro das determinações materiais e temporais dos mais diversos espaços geográficos.

Dessa maneira não é cabível dizer do culto e do não-culto. Por exemplo, dentro do espaço urbano, nas condições reais de seus diversos grupos, o sujeito se sustenta e se resolve, estabelecendo suas relações de poder e regulação próprias. Esse mesmo sujeito, com sua cultura forjada nesse ambiente, não seria capaz de resolver os problemas de sobrevivência e relações humanas dentro de uma floresta, coisa que um indígena resolveria com facilidade. Aquele sujeito urbano teria que semear outras sementes, novas ou híbridas, num campo de preparo difícil e colheita demorada. O tempo de semeadura e de colheita dependeria, diretamente, da capacidade do indivíduo ler e dar significados ao novo espaço.

Por fim, as relações de poder seriam estabelecidas dentro de regras e códigos numa condição totalmente nova, posto que a origem urbana do sujeito, ao adentrar outro espaço, levaria consigo alguma cultura que não o abandona totalmente. Esse sujeito, ao mudar de ambiente, traz consigo sementes que serão usadas de forma natural ou híbrida no campo novo.

Essa é a compreensão que devemos ter da cultura: que é diversa; que se acha em todo espaço das convivências humanas; que não tem a hierarquia metafísica aristotélica - objeto ideológico legitimador das hierarquias das ações -; que não é definitiva nem cristalizada; que não se faz igual nos diversos espaços temporais e geográficos; que são determinantes dos modos de vida de seus atores e, finalmente, que se dá no e pelo consenso entre os membros do grupo e desses com os outros por meio da assimilação onde a minoria fornece suas melhores sementes ao grupo dominante, no pluralismo cultural pela divisão de espaço e poder ou hibridismo das sementes culturais e na concepção multiétnica que pressupõe ensinar às minorias o cultivo da semente do grupo dominante.

Uma vez compreendido essa particularidade da cultura fica mais fácil entender as condições reais de cada grupo detro do espaço global, onde o exercício de poder está centrado no Norte e as condições de trabalho abaixo do Equador.

Historicamente, como podemos perceber na geografia global, temos para além dos limites simbólicos de cada território nacional, um outro limite imaginário cuja fronteira oscila nas proximidades do Equador, numa suposta divisão entre poder e não-poder, progresso e atraso, culta e não-cultura.

Quando falamos dessa divisão de poder (Norte) e trabalho (Sul), estamos nos referindo à ideologia aristotélica e medieva que considera, na hierarquia dos quatro movimentos (qualitativo, quantitativo, locomoção e geração ou corrupção dos corpos), na visão grega ou nas quatro causas (material, formal, motriz ou eficiente e final) na visão filosófica medieval. Essa metafísica aristotélica coloca o desejo de ter algo hierarquicamente superior à ação de fabricar este algo desejado.

Dessa maneira, desejar um carro é mais importante que retirar todos os produtos naturais que o compõem e que estão dispersos pelo planeta de forma bruta. Colher esses elementos, purificá-los, transportá-los até um espaço geográfico determinado, dar-lhes a forma e as funções de um carro, nessa visão ideológica, tem pouco valor nas relações de poder. O iluminado é quem deseja, pois esse tem as idéias, o acesso à luz, ao divino e por vezes, para justificar essa proximidade, legitima-se religiões, alinham-se aos sacerdotes que são legitimados e legitimadores, numa clara troca de interesses. Enquanto isso, aqueles que produzem as condições materiais, sustentáculo daquelas condição de poder, são considerados o estamento inferior da sociedade, o lado obscuro do humano. A isso chamamos ideologia.

Todas as culturas estão impregnadas de ideologias e, sem que percebamos, usamos dos mesmos mecanismos nas relações com os outros: no trabalho há quem deseja fazer e quem faz. E isso, por sua vez, determina quem manda e quem obedece, quem pode e quem não pode e, por vezes, esconde uma outra relação que é a de quem supostamente sabe e aquele que não sabe, a quem só resta a ação, como se essa não tivesse um saber necessário.

Para além das ideologias somos humanos. Antes mesmo de sermos humanos, somos seres vivos. Ser vivo exige troca constante entre o biológico e o mineral. Esse fenômeno é primordial à reprodução e manutenção da vida em todos os estágios. Para haver trocas é necessário um afetamento ou seja, uma capacidade do organismo vivo ler, interpretar e agir sobre o mundo. A falta dessa capacidade imobiliza o organismo e inviabiliza a vida.

Essa é a determinação natural da vida na Terra. Vale lembrar que não dispomos de outro planeta: ele é único e finito e é aqui que devemos compartilhar espaços. A apartir dessa realidade fica fácil perceber que precisamos pensar nossas relações com o outro. Sabemos que os homens e as mulheres, como seres culturais que são, criaram novos sentidos para o afetamento, as leituras e as ações no mundo.

Embora a essência da vida dependa do afetamento, da leitura e da ação dos organismos sobre o ambiente, na cultura esse sentido se perde por meio do estabelecimento de instâncias de poder onde uns poucos podem usufruir das trocas e outros apenas agir no mundo por determinação ideológica daqueles que desejam. Dessa maneira, as transformações resultantes das ações dos homens sobre os elementos naturais, transformando-os em objetos de uso, na absurda maioria das vezes, serve ao desejo de poucos. Vejam a espantosa quantidade de seres que se deslocam diariamente das periferias para as áreas centrais das grandes metrópoles mundiais. De onde vem e para onde vai essa gente toda? No burburinho cotidiano a que acostumamos, ignoramos os rumos que essa gente toma e, pior que isso, não perguntamos pelo trabalho que elas produzem. Alguém, por acaso, ao entrar em um grande shopping center, pergunta quais as mãos que o construíram? Os enfeites, as luzes, as vitrines, tudo conduz ao consumo, à afloração de desejos os mais apurados e mais estravagantes possíveis. Mas a pergunta que se nega a fazer, talvez pelo ofuscamento daquela enorme quantidade de luzes, não é quem deseja tudo isso, mesmo porque os desejos são vários e distintos. Há aqueles que se realizam e muitos que se perdem na impossibilidade material e temporal porque os desejosos, uma vez ocupados com as ações cotidianas de atender o desejos dos outros, fica impossibilitada de realizar os seus. Dessa forma se perdem na sua própria condição alienada. A pergunta que se instala é: que mãos fizeram tudo isso? E no fim da tarde ou da noite uma enorme multidão volta calada para dormitórios distantes dos shoppings e dos grandes edifícios da cidade. Essa esquece as mãos que a construíram e que atende prontamente seus mais sofisticados desejos e vai dormir no sossego de sua alienação programada.

* - Salomão Ferreira de Souza - é escritor e graduando em pedagogia na FAE (Faculdade de Educação) - BH - UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais).

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

NÃO HAVERÁ VENCEDORES

MARCELO FREIXO

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Pode parecer repetitivo, mas é isso: uma solução para a segurança pública do Rio terá de passar pela garantia dos direitos dos cidadãos da favela
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Dezenas de jovens pobres, negros, armados de fuzis, marcham em fuga, pelo meio do mato. Não se trata de uma marcha revolucionária, como a cena poderia sugerir em outro tempo e lugar. Eles estão com armas nas mãos e as cabeças vazias. Não defendem ideologia. Não disputam o Estado. Não há sequer expectativa de vida. Só conhecem a barbárie. A maioria não concluiu o ensino fundamental e sabe que vai morrer ou ser presa.

As imagens aéreas na TV, em tempo real, são terríveis: exibem pessoas que tanto podem matar como se tornar cadáveres a qualquer hora. A cena ocorre após a chegada das forças policiais do Estado à Vila Cruzeiro e ao Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro.

O ideal seria uma rendição, mas isso é difícil de acontecer. O risco de um banho de sangue, sim, é real, porque prevalece na segurança pública a lógica da guerra. O Estado cumpre, assim, o seu papel tradicional. Mas, ao final, não costuma haver vencedores. Esse modelo de enfrentamento não parece eficaz. Prova disso é que, não faz tanto tempo assim, nesta mesma gestão do governo estadual, em 2007, no próprio Complexo do Alemão, a polícia entrou e matou 19. E eis que, agora, a polícia vê a necessidade de entrar na mesma favela de novo.

Tem sido assim no Brasil há tempos. Essa lógica da guerra prevalece no Brasil desde Canudos. E nunca proporcionou segurança de fato. Novas crises virão. E novas mortes. Até quando? Não vai ser um Dia D como esse agora anunciado que vai garantir a paz. Essa analogia à data histórica da 2ª Guerra Mundial não passa de fraude midiática.

Essa crise se explica, em parte, por uma concepção do papel da polícia que envolve o confronto armado com os bandos do varejo das drogas. Isso nunca vai acabar com o tráfico. Este existe em todo lugar, no mundo inteiro. E quem leva drogas e armas às favelas? É preciso patrulhar a baía de Guanabara, portos, fronteiras, aeroportos clandestinos. O lucrativo negócio das armas e drogas é máfia internacional. Ingenuidade acreditar que confrontos armados nas favelas podem acabar com o crime organizado. Ter a polícia que mais mata e que mais morre no mundo não resolve.

Falta vontade política para valorizar e preparar os policiais para enfrentar o crime onde o crime se organiza -onde há poder e dinheiro. E, na origem da crise, há ainda a desigualdade. É a miséria que se apresenta como pano de fundo no zoom das câmeras de TV. Mas são os homens armados em fuga e o aparato bélico do Estado os protagonistas do impressionante espetáculo, em narrativa estruturada pelo viés maniqueísta da eterna "guerra" entre o bem e o mal.

Como o "inimigo" mora na favela, são seus moradores que sofrem os efeitos colaterais da "guerra", enquanto a crise parece não afetar tanto assim a vida na zona sul, onde a ação da polícia se traduziu no aumento do policiamento preventivo. A violência é desigual. É preciso construir mais do que só a solução tópica de uma crise episódica. Nem nas UPPs se providenciou ainda algo além da ação policial. Falta saúde, creche, escola, assistência social, lazer.

O poder público não recolhe o lixo nas áreas em que a polícia é instrumento de apartheid. Pode parecer repetitivo, mas é isso: uma solução para a segurança pública terá de passar pela garantia dos direitos básicos dos cidadãos da favela. Da população das favelas, 99% são pessoas honestas que saem todo dia para trabalhar na fábrica, na rua, na nossa casa, para produzir trabalho, arte e vida. E essa gente -com as suas comunidades tornadas em praças de "guerra"- não consegue exercer sequer o direito de dormir em paz.

Quem dera houvesse, como nas favelas, só 1% de criminosos nos parlamentos e no Judiciário... "

Fonte: Folha de S. Paulo - 28 nov. 2010 - In: "TENDÊNCIAS/DEBATES