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domingo, 11 de maio de 2014

O tempo das utopias mínimas

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Por Leonardo Boff*
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Não é verdade que vivemos tempos pós-utópicos. Aceitar esta afirmação é mostrar uma representação reducionista do ser humano. Ele não é apenas um dado que está ai fechado, vivo e consciente, ao lado de outros seres. Ele é também um ser virtual. Esconde dentro de si virtualidades ilimitadas, que podem irromper e concretizar-se. Ele é um ser de desejo, portador do princípio esperança (Bloch), permanentemente insatisfeito e sempre buscando novas coisas. No fundo, ele é um projeto infinito, à procura de um obscuro objeto que lhe seja adequado.
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É desse transfundo virtual que nascem os sonhos, os pequenos e grandes projetos e as utopias mínimas e máximas. Sem elas o ser humano não veria sentido em sua vida, e tudo seria cinzento. Uma sociedade sem uma utopia deixaria de ser sociedade, não teria um rumo, pois afundaria no pântano dos interesses individuais ou corporativos. O que entrou em crise não são as utopias mas certo tipo de utopia, as utopias maximalistas vindas do passado.
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Os últimos séculos foram dominados por utopias maximalistas. A utopia iluminista que universalizaria o império da razão contra todos os tradicionalismos e autoritarismos. A utopia industrialista de transformar as sociedades com produtos tirados da natureza e da invenções técnicas. A utopia capitalista de levar progresso e riqueza para todo mundo. A utopia socialista de gerar sociedades igualitárias e sem classes. As utopias nacionalistas sob a forma do nazifascismo que, a partir de uma nação poderosa, com “raça pura”, redesenharia a humanidade, impondo-se a todo mundo. Atualmente, a utopia da saúde total, gestando as condições higiênicas e medicinais que visam a imortalidade biológica ou o prolongamento da vida até a idade das "céculas" (cerca de 130 anos). A utopia de um único mundo globalizado sob a égide da economia de mercado e da democracia liberal. A utopia de ambientalistas radicais que sonham com uma Terra virgem e o ser humano totalmente integrado nela e outras.
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Essas são as utopias maximalistas. Propunham o máximo. Muitas delas foram impostas com violência ou geraram violência contra seus opositores. Temos hoje distância temporal suficiente para nos confirmar que estas utopias maximalistas frustraram o ser humano. Entraram em crise e perderam seu fascínio. Dai falarmos de tempos pós-utópicos. Mas o pós se refere a este tipo de utopia maximalista. Elas deixaram um rastro de decepção e de depressão, especialmente, a utopia da revolução absoluta dos anos 60-70 do século passado, como a cultura hippy e seus derivados.
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Mas a utopia permanece porque pertence ao ânimo humano. Hoje, a busca se orienta pelas utopias minimalistas, aquelas que, no dizer de Paulo Freire, realizam o “possível viável” e fazem a sociedade “menos malvada e tornam menos difícil o amor”. Nota-se por todas as partes a urgência latente de utopias do simples melhoramento do mundo. Tudo o que nos entra pelas muitas janelas de informação nos leva a sentir: assim como o mundo está, não pode continuar. Mudar e, se não der, ao menos melhorar.
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Não pode continuar a absurda acumulação de riqueza como jamais houve na história (85 mais ricos possuem rendas correspondentes a 3,57 bilhões de pessoas, como denunciava a ONG Oxfam intermón em janeiro deste ano em Davos). Para esses, o sistema econômico-financeiro não está em crise; ao contrário, oferece chances de acumulação como nunca antes na história devastadora do capitalismo. Há que se pôr um freio à verocidade produtivista que assalta os bens e serviços da natureza em vista da acumulação, produz gases de efeito estufa que alimenta o aquecimento global, que, ao não ser detido, poderá produzir um armagedon ecológico.
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As utopias minimalistas, a bem da verdade, são aquelas que vêm sendo implementadas pelo governo atual do PT e seus aliados com base popular: garantir que o povo coma duas ou três vezes ao dia, pois o primeiro dever de um Estado é garantir a vida dos cidadãos; isso não é assistencialismo mas humanitarismo em grau zero. São os projetos “minha casa-minha vida”, “luz para todos”, o aumento significativo do salário mínimo, o “Prouni”, que permite o acesso aos estudos superiores a estudantes socialmente menos favorecidos, os “pontos de cultura” e outros projetos populares que não cabe aqui elencar.
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A nível das grandes maiorias, são verdadeiras utopias mínimas viáveis: receber um salário que atenda às necessidades da família, ter acesso à saúde, mandar os filhos à escola, conseguir um transporte coletivo que não lhe tire tanto tempo de vida, contar com serviços sanitários básicos, dispor de lugares de lazer e de cultura, e com uma aposentadoria digna para enfrentar os achaques da velhice.
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A consecução destas utopias minimalistas cria a base para utopias mais altas: aspirar a que os povos se abracem na fraternidade, que não se guerreiem, se unam todos para preservar este pequeno e belo planeta Terra, sem o qual nenhuma utopia maximalista ou minimalista pode ser projetada. O primeiro ofício do ser humano é viver livre de necessidades e gozando um pouco do reino da liberdade. E por fim poder dizer “valeu a pena”.
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* Leonardo Boff escreveu 'Virtudes para um outro mundo possivel', 3 vol. (Vozes, 2005).

domingo, 26 de janeiro de 2014

Os rolezinhos nos acusam: somos uma sociedade injusta e segregacionista

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Leonardo Boff*
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O fenômeno dos centenas de rolezinhos que ocuparam shoppings centers no Rio e em São Paulo suscitou as mais disparatadas interpretações. Algumas, dos acólitos da sociedade neoliberal do consumo que identificam cidadania com capacidade de consumir, geralmente nos jornalões da mídia comercial, nem merecem consideração. São de uma indigência analítica de fazer vergonha.
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Mas houve outras análises que foram ao cerne da questão como a do jornalista Mauro Santayana do JB on-line e as de três especialistas que avaliaram a irrupção dos rolês na visibilidade pública e o elemento explosivo que contém. Refiro-me à Valquíria Padilha, professora de sociologia na USP de Ribeirão Preto:”Shopping Center: a catedral das mercadorias”(Boitempo 2006), ao sociólogo da Universidade Federal de Juiz de Fora, Jessé Souza,”Ralé brasileira: quem é e como vive (UFMG 2009) e de Rosa Pinheiro Machado, cientista social com um artigo”Etnografia do Rolezinho”no Zero Hora de 18/1/2014. Os três deram entrevistas esclarecedoras.
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Eu por minha parte interpreto da seguinte forma tal irrupção:
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Em primeiro lugar, são jovens pobres, das grandes periferias, sem espaços de lazer e de cultura, penalizados por serviços públicos ausentes ou muito ruins como saúde, escola, infra-estrutura sanitária, transporte, lazer e segurança. Veem televisão cujas propagandas os seduzem para um consumo que nunca vão poder realizar. E sabem manejar computadores e entrar nas redes sociais para articular encontros. Seria ridículo exigir deles que teoricamente tematizem sua insatisfação. Mas sentem na pele o quanto nossa sociedade é malvada porque exclui, despreza e mantém os filhos e filhas da pobreza na invisibilidade forçada. O que se esconde por trás de sua irrupção? O fato de não serem incluidos no contrato social. Não adianta termos uma “constituição cidadã” que neste aspecto é apenas retórica, pois implementou muito pouco do que prometeu em vista da inclusão social. Eles estão fora, não contam, nem sequer servem de carvão para o consumo de nossa fábrica social (Darcy Ribeiro). Estar incluído no contrato social significa ver garantidos os serviços básicos: saúde, educação, moradia, transporte, cultura, lazer e segurança. Quase nada disso funciona nas periferias. O que eles estão dizendo com suas penetrações nos bunkers do consumo? “Oia nóis na fita”; “nois não tamo parado”;”nóis tamo aqui para zoar”(incomodar). Eles estão com seu comportamento rompendo as barreiras do aparheid social. É uma denúncia de um país altamente injusto (eticamente), dos mais desiguais do mundo (socialmente), organizado sobre um grave pecado social pois contradiz o projeto de Deus (teologicamente). Nossa sociedade é conservadora e nossas elites altamente insensíveis à paixão de seus semelhantes e por isso cínicas. Continuamos uma Belíndia: uma Bélgica rica dentro de uma India pobre. Tudo isso os rolezinhos denunciam, por atos e menos por palavras.
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Em segundo lugar, eles denunciam a nossa maior chaga: a desigualdade social cujo verdadeiro nome é injustiça histórica e social. Releva, no entanto, constatar que com as políticas sociais do governo do PT a desigualdade diminiui, pois segundo o IPEA os 10% mais pobres tiveram entre 2001-2011 um crescimento de renda acumulado de 91,2% enquanto a parte mais rica cresceu 16,6%. Mas esta diferença não atingiu a raíz do problema pois o que supera a desigualdade é uma infraestrutura social de saúde, escola, transporte, cultura e lazer que funcione e acessível a todos. Não é suficiente transferir renda; tem que criar oportunidades e oferecer serviços, coisa que não foi o foco principal no Ministério de Desenvolvimento Social. O “Atlas da Exclusão Social” de Márcio Poschmann (Cortez 2004) nos mostra que há cerca de 60 milhões de famílias, das quais cinco mil famílias extensas detém 45% da riqueza nacional. Democracia sem igualdade, que é seu pressupsto, é farsa e retórica. Os rolezinhos denunciam essa contradição. Eles entram no “paraíso das mercadorias” vistas virtualmente na TV para ve-las realmente e senti-las nas mãos. Eis o sacrilégio insuportável pelos donos do shoppings. Eles não sabem dialogar, chamam logo a polícia para bater e fecham as portas a esses bárbaros. Sim, bem o viu T.Todorov em seu livro “Os novos bárbaros”: os marginalizados do mundo inteiro estão saindo da margem e indo rumo ao centro para suscitar a má consciência dos “consumidores felizes” e lhes dizer: esta ordem é ordem na desordem. Ela os faz frustrados e infelizes, tomados de medo, medo dos próprios semelhantes que somos nós.
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Por fim, os rolezinhos não querem apenas consumir. Não são animaizinhos famintos. Eles tem fome sim, mas fome de reconhecimento, de acolhida na sociedade, de lazer, de cultura e de mostrar o que sabem: cantar, dançar, criar poemas críticos, celebrar a convivência humana. E querem trabalhar para ganhar sua vida. Tudo isso lhes é negado, porque, por serem pobres, negros, mestiços sem olhos azuis e cabelos loiros, são desperezados e mantidos longe, na margem.
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Esse tipo de sociedade pode ser chamada ainda de humana e civilizada? Ou é uma forma travestida de barbárie? Esta última lhe convem mais. Os rolezinhos mexeram numa pedra que começou a rolar. Só parará se houver mudanças.
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* É escritor

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Causas da erosão atual dos direitos humanos

Ao invés de avançarmos no respeito da dignidade humana e dos direitos das pessoas, dos povos e dos ecossistemas estamos regredindo a níveis de barbárie
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Leonardo Boff*
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Vivemos num mundo no qual os direitos humanos são violados, praticamente em todos os níveis, familiar, local, nacional e planetário. O Relatório Anual da Anistia Internacional de 2013 com referência a 2012 cobrindo 159 países faz exatamente esta dolorosa constatação.
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Ao invés de avançarmos no respeito da dignidade humana e dos direitos das pessoas, dos povos e dos ecossistemas estamos regredindo a níveis de barbárie. As violações não conhececem fronteiras e as formas desta agressão se sofisticam cada vez mais.
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A forma mais convarde é a ação dos “drones”, aviões não pilotados que a partir de alguma base do Texas, dirigidos por um jovem militar diante de uma telinha de televisão, como se estivesse jogando, consegue identificar um grupo de afegãos celebrando um casamento e dentro do qual, presumivelmente deverá haver algum guerrilheiro da Al Qaida. Basta esta suposição para com um pequeno clique lançar uma bomba que aniquila todo o grupo, com muitas mães e criançasinocentes.
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É a forma perversa da guerra preventiva, inaugurada por Bush e criminosamente levada avante pelo Presidente Obama que não cumpriu as promessas de campanha com referência aos direitos humanos, seja do fechamento de Guantânamo, seja da supressão do “Ato Patriótico”(antipatriótico) pelo qual qualquer pessoa dentro dos USA pode ser detida por suspeita de terrorismo, sem necessidade de avisar a família.
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Isso significa sequestro ilegal que nós naAmérica Latina conhecemos de sobejo. Verifica-se em termos econômicos e também de direitos humanos uma verdadeira latinoamericanização dos USA no estilo dos nossos piores momentos da época de chumbo das ditaduras militares. Hoje, consoante o Relatório da Anistia Internacional, o país que mais viola direitos de pessoas e de povos são os Estados Unidos.
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Com a maior indiferença, qual imperador romano absoluto, Obama nega-se a dar qualquer justificativa suficiente sobre espionagem mundial que seu Governo faz a pretexto da segurança nacional, cobrindo áreas que vão detrocas de e-mails amorosos entre dois apaixonados até dos negócios sigilosos e bilionários da Petrobrás, violando o direito à privacidade das pessoas e à soberania de todo um país. A segurança anula a validade dos direitos irrenunciáveis.
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O Continente que mais violações sofre, é a África. É o Continente esquecido e vandalizado. Terras são compradas (land grabbing) por grandes coroporações e pela China para nelasproduzirem alimentos para suas populações. É uma neocolonização mais perversa que a anterior. Os milhares e milhares de refugiados e imigrantes por razões de fome e de erosão de suas terras são os mais vulneráveis. Constituem uma sub-classe de pessoas, rejeitadas por quase todos os países, “numa globalização da insensibilidade” como a chamou o Papa Francisco. Dramática, diz o Relatório da Anistia Internacional, é a situação das mulheres. Constituem mais da metade da humanidade, muitísssimas delas sujeitas a violências de todo tipo e em várias partes da Africa e da Ásia ainda obrigadas à mutilação genital.
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A situação de nosso pais é preocupante dado o nível de violência que campeia em todas as partes. Diria, não há violência: estamos montados sobre estruturas de violência sistêmica que pesa sobre mais da metade da população afrodescendente, sobre os indígenas que lutam por preservar suas terras contra a voracidade impune do agronegócio, sobre os pobres em geral e sobre os LGBT, discriminados e até mortos.
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Porque nunca fizemos uma reforma agrária, nem política, nem tributária assistimos nossas cidades se cercarem de centenas e centenas de “comunidades pobres”(favelas) onde os direitos à saúde, educação, à infra-estrutura e à segurança são deficitariamente garantidos.
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O fundamento último do cultivo dos direitos humanos reside na dignidade de cada pessoa humana e no respeito que lhe é devido. Dignidade significa que ela é portadora de espírito e de liberdade que lhe permite moldar sua própria vida. O respeito é o reconhecimento de que cada ser humano possui um valor intrínseco, é um fim em si mesmo e jamais meio para qualquer outra coisa. Diante de cada ser humano, por anônimo que seja, todo poder encontra o seu limite, também o Estado.
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O fato é que vivemos num tipo de sociedade mundial que colocou a economia como seu eixo estruturador. A razão é só utilitarista e tudo, até a pessoa humana, como odenuncia o Papa Francisco é feita “um bem de consumo que uma vez usado pode ser atirado fora”. Numa sociedade assim não há lugar para direitos, apenas para interesses. Até o direito sagrado à comida e à bebida só é garantido para quem puder pagar. Caso contrário, estará ao pé da mesa, junto aos cães esperando alguma migalha que caia da mesa farta dos epulões.
 
Neste sistema econômico, político e comercial se assentam as causas principais, não exclusivas, que levam permanentemente à violação da dignidade humana. O sistema vigente não ama as pessoas, apenas sua capacidade de produzir e de consumir. De resto, são apenas resto, óleo gasto na produção.
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A tarefa além de humanitária e ética é principalmente política: como transformar este tipo de sociedade malvada numa sociedade onde os humanos possam se tratar humanamente e gozar de direitos básicos. Caso contrário a violência é a norma.
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*Escritor e professor
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quinta-feira, 27 de junho de 2013

O caráter das novas manifestações

Leonardo Boff*
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"Estou fora do pais, na Europa a trabalho e constato o grande interesse que todas as mídias aqui conferem às manifestações no Brasil. Há bons especialistas na Alemanha e França que emitem juízos pertinentes. Todos concordam nisso, no caráter social das manifestações, longe dos interesses da política convencional. É o triunfo dos novos meios e congregação que são as mídias sociais.
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O grupo da libertação e a Igreja da libertação sempre avivaram a memória antiga do ideal da democracia, presente, nas primeiras comunidades cristãs até o século segundo pelo menos.Repetia-se o refrão clássico:"o que interessa a todos, deve poder ser discutido e decidido por todos". E isso funcionava até para a eleição dos bispos e do Papa. Depois se perdeu esse ideal nas nunca foi totalmente esquecido. O ideal democrático de ir além da democracia delegatícia ou representativa e chegar à democracia participativa, de baixo para cima, envolvendo o maior número possível de pessoas, sempre esteve presente no ideário dos movimentos sociais, das comunidades de base,dos Sem Terra e de outros. Mas nos faltavam os instrumentos para implementar efetivamente essa democracia universal, popular e participativa.
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Eis que esse instrumento nos foi dado pelas várias mídias sociais. Elas são sociais, abertas a todos. Todos agora têm um meio de manifestar sua opinião, agregar pessoas que assumem a mesma causa e promover o poder das ruas e das praças. O sistema dominante ocupou todos os espaços. Só ficaram as ruas e as praças que por sua natureza são de todos e do povo. Agora surgiram a rua e a praça virtuais, criadas pelas mídias sociais.
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O velho sonho democrático segundo o qual o que interessa a todos, todos tem direito de opinar e contribuir para alcançar um objetivo comum, pode em fim ganhar forma. Tais redes sociais podem desbancar ditaduras como no Norte da África, enfrentar regimes repressivos como na Turquia e agora mostram no Brasil que são os veículos adequados de revindicações sociais,sempre feitas e quase sempre postergadas ou negadas: transporte de qualidade (os vagões da Central do Brasil tem quarenta anos), saúde, educação, segurança, saneamento básico. São causas que tem a ver com a vida comezinha, cotidiana e comum à maioria dos mortais. Portando, coisas da Política em maiúsculo.
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Nutro a convicção de que a partir de agora se poderá refundar o Brasil a partir de onde sempre deveria ter começado, a partir do povo mesmo que já encostou nos limites do Brasil feito para as elites. Estas costumavam fazer políticas pobres para os pobres e ricas para os ricos. Essa lógica deve mudar daqui para frente. Ai dos políticos que não mantiverem uma relação orgânica com o povo. Estes merecem ser varridos da praça e das ruas. Escreveu-me um amigo que elaborou uma das interpretações do Brasil mais originais e consistentes, o Brasil como grande euforia e empresa do Capital Mundial, Luiz Gonzaga de Souza Lima. Permito-me citá-lo: "Acho que o povo esbarrou nos limites da formação social empresarial, nos limites da organização social para os negócios. Esbarrou nos limites da Empresa Brasil. E os ultrapassou. Quer ser sociedade, quer outras prioridades sociais, quer outra forma de ser Brasil, quer uma sociedade de humanos, coisa diversa da sociedade dos negócios. É a Refundação em movimento".
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Creio que este autor captou o sentido profundo e para muitos ainda escondido das atuais manifestações multitudinárias que estão ocorrendo no Brasil. Anuncia-se um parto novo. Devemos fazer tudo para que não seja abortado por aqueles daqui e de lá de fora que querem recolonizar o Brasil e condená-lo a ser apenas um fornecedor de commodities para os países centrais que alimentam ainda uma visão colonial do mundo, cegos para os processos que nos conduzirão fatalmente à uma nova consciência planetária e a exigência de uma governança global. Problemas globais exigem soluções globais. Soluções globais pressupõem estruturas globais de implementação e orientação. O Brasil pode ser um dos primeiros nos quais esse inédito viável pode começar a sua marcha de realização. Dai ser importante não permitirmos que o movimento seja desvirtuado. Música nova exige um ouvido novo. Todos são convocados a pensar este novo, dar-lhe sustentabilidade e fazê-lo frutificar num Brasil mais integrado, mais saudável, mais educado e melhor servido em suas necessidades básicas.
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* Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também escritor. É dele ''O destino do homem e do mundo' (Vozes, 2000). - lboff@leonardoboff.com
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Fonte: Jornal do Brasil (RJ)
 

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O resgate da categoria “espírito”

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Leonardo Boff *
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Na cultura atual a palavra “espírito” é desmoralizada em duas frentes: na cultura letrada e na cultura popular.
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Na cultura letrada dominante, “espírito” é o que se opõe à matéria. Materia sabemos mais ou menos o que é, pois pode ser medida, pesada, manipulada e transformada, enquanto “espírito” cai no campo do intangível, indefinido, e até nebuloso. A matéria é a palavra-fonte de valores axiais da experiência humana dos útimos séculos. A ciência moderna se construiu sobre a investigação e a dominação da matéria. Penetrou até as suas últimas dimensões, às partículas elementares, até o campo Higgs no qual se teria dado a primeira condensação da energia originária em matéria: os tão buscados bósons e hádrions e a chamda “partícula de Deus”. Einstein comprovou que matéria e energia são equipolentes. Matéria não existe. É energia altamente condensada e um campo riquíssimo de interações.
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Os valores espirituais, na acepção moderna convencional, situam-se na super-estrutura e não cabem nos esquemas científicos. Seu lugar é o mundo da subjetividade, entregues ao arbítrio de cada um ou a grupos religiosos. Exprimindo-o de uma maneira um tanto grotesca, mas nem tanto, podemos dizer com José Comblin, grande especialista no tema:“quando se fala em ‘valores espirituais’, todo mundo imagina que está falando um burguês numa reunião do Rotary ou dos Lions Club depois de uma abundante ceia regada a bons vinhos e servida com comidas finas; para o povo em geral ‘valores espirituais’ equivale a ‘palavras belas mas ocas”. Ou então pertence ao repertório do discurso eclesiástico moralizante, espiritualizante e em relação hostil com o mundo moderno.
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Em razão disso, a expresão “valores espirituais” surge com mais frequência na boca de padres e de bispos de viés conservador. Deles se ouve amiúde que a crise do mundo contemporâneo reside fundamentalmente no abandono do mundo espiritual: a não frequência da missa ou de qualquer referência explícita à Igreja hierárquica.
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Mas com os escândalos havidos nos últimos tempos com os padres pedófilos e com os escândalos financeiros ligados ao Banco do Vaticano, o discurso oficial dos “valores espirituais” se desmorlizou. Não perdeu valor, mas a instância oficial que os anuncia conta com muito pouca audiência.
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Na cultura popular, a palavra “espírito” possui grande vigência. Ela traduz certa concepção mágica do mundo à revelia da racionalidade aprendida na escola. Para grande parte do povo, especialmente os influenciados pela cultura afrobrasileira e indígena, o mundo é habitado por bons e maus espíritos que afetam as distintas situações da vida como a saúde e as doenças, a vida afetiva. os sucessos e os fracassos, a boa ou a má sorte. O espiritismo, codificou esta visão de mundo pela vida da reencarnação. Possui mais adeptos do que se suspeita.
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No entanto, os últimos decênios nos demos conta de que o excesso de racionalidade em todas as esferas e o consumismo exacerbado geraram saturação existencial e também muita decepção. A felicidade não se encontra na materialidade das coisas mas em dimensões ligadas ao coração, ao afeto, às relações de amor, de solidariedade e de compaixão.
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Por toda as partes, buscam-se experiências espirituais novas, quer dizer, sentidos de vida que vão além dos interesses imediatos e da luta cotidiana pela vida. Eles abrem uma perspectiva de iluminação e de esperança no meio do mercado de idéias e de propostas convencionais, veiculadas pelos meios de comunicação e também pelas assim chamadas “instituições do sentido” que são as religiões, as igrejas e as filosofias de vida. Elas ganharam força através dos programas de TV e dos grande shows religiosos que obedecem à lógica da espetacularização massiva e que, por isso mesmo, se afastam do caráter reverente e sagrado de toda religiosidade. Numa sociedade de mercado, a religião e a espiritualidade se transformaram também em mercadorias à disposição do consumo geral. E rendem muito dinheiro.
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Não obstante a referida mercantilização do religioso, o mundo espiritual começou a ganhar fascínio embora, na maioria das vezes, na forma de exoterismo e de literatura de auto-ajuda. Mesmo assim ele abriu uma brecha na profanidade do mundo e no caráter cinzento da sociedade de massa. Nos meios cristãos emergiram as Igrejas pentecostais, os movimentos carismáticos e a centralidade da figura do Espírito Santo.
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Estes fenômenos supõem um resgate da categoria “espírito” num sentido positivo e até anti-sistêmico. O “espírito” constitui uma referência consistente e não mais colocada sob suspeita pela crítica da modernidade que somente aceitava o que passava pelo crivo da razão. Ocorre que a razão não é tudo nem explica tudo. Há o irracional e aracional. No ser humano há o universo da paixão, do afeto e do sentimento que se expressa pela inteligência cordial e emocional. O espírito não se recusa à razão, antes, precisa dela. Mas vai além, englobando-a num patamar mais alto que tem a ver com a inteligência, a contemplação e o sentido superior da vida e da história. Em termos da nova cosmologia ele seria tão ancentral quanto o universo, este tambem portador de espírito. A era do espírito?
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A sair pela Vozes, do autor: Fogo do céu: o Espirito Santo no universo, na humanidade, nas Igrejas e religiões 2013.
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* Leonardo Boff - é teólogo, professor, escritor e cronista

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Balanço anual no micro: brotos no deserto

Leonardo Boff*
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Desde Santo Agostinho (“em cada homem há simultaneamente um Adão e um Cristo"), passando por Abelardo (“sic et non”), por Hegel e Marx, e chegando a Leandro Konder, sabemos que a realidade é dialética. Vale dizer, ela é contraditória, porque os opostos não se anulam mas se tencionam e convivem permanentemente gerando dinamismo na história. Isso não é um defeito de construção mas a marca registrada do real. Ninguém melhor o expressou que o pobrezinho de Assis ao rezar: ”Onde houver ódio que eu leve o amor, onde houver trevas que eu leve a luz, onde houver erros que eu leve a verdade...”. Não se trata de negar ou anular um dos polos mas de optar por um, o luminoso, e reforçá-lo a ponto de impedir que o outro, negativo, não seja tão destrutivo.
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A que vem esta reflexão? Ela quer dizer que o mal nunca é tão mau que impeça a presença do bem; e que o bem nunca é tão bom que tolha a força do mal. Devemos aprender a negociar com estas contradições. Num artigo anterior tentei um balanço do macro, negativo; assim como estamos, vamos de mal a pior. Mas dialeticamente há o lado positivo que importa realçar. Um balanço do micro nos revela que estamos assistindo, esperançosos, ao brotar de flores no deserto. E isso está ocorrendo por todas as partes do planeta. Basta frequentar os Fóruns Sociais Mundiais e as bases populares de muitas partes para notar que vida nova está explodindo no meio das vítimas do sistema e mesmo em empresas e em dirigentes que estão abandonando o velho paradigma e se põem a construir uma Arca de Noé salvadora. Anotamos alguns pontos de mutação que poderão salvaguardar a vitalidade da Terra e garantir nossa civilização:
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O primeiro é a superação da ditadura da razão instrumental analítica, principal responsável pela devastação da natureza, mediante a incorporação da inteligência emocional ou cordial que nos leva a envolvermo-nos com o destino da vida e da Terra, cuidando, amando e buscando o bem viver.
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O segundo é o fortalecimento mundial da economia solidária, da agroecologia, da agricultura orgânica, da bioeconomia e do ecodesenvolvimento, alternativas ao crescimento material via PIB.
O terceiro é o ecossocialismo democrático, que propõe uma forma nova de produção com a natureza e não contra ela, e uma necessária governança global.
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O quarto é o biorregionalismo, que se apresenta como alternativa à globalização homogeneizadora, valorizando os bens e serviços de cada região com sua população e cultura.
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O quinto é o bem viver dos povos originários andinos, o que supõe a construção do equilíbrio entre seres humanos e com a natureza à base de uma democracia comunitária e no respeito aos direitos da natureza e da Mãe Terra ou o Indice de Felidadade Bruta do governo do Butão.
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O sexto é a sobriedade condividida ou a simplicidade voluntária, que reforçam a soberania alimentar de todos, a justa medida e a autocontenção do desejo obsessivo de consumir.
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O sétimo é o visível protagonismo das mulheres e dos povos originários que apresentam um nova benevolência para com a natureza e formas mais solidárias de produção e de consumo.
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O oitavo é a lenta mas crescente acolhida das categorias do cuidado como pré-condição para realizar uma real sustentabilidade. Esta está sendo descolada da categoria desenvolvimento e vista como a lógica da rede da vida que garante as interdependências de todos com todos assegurando a vida na Terra.
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O nono é penetração da ética da responsabilidade universal, pois todos somos responsáveis pelo destino comum nosso e o da Mãe Terra.
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O décimo é o resgate da dimensão espiritual, para além das religiões, que consente nos sentirmos parte do Todo, perceber a Energia universal que tudo penetra e sustenta e nos faz os cuidadores e guardiães da herança sagrada recebida do universo e de Deus.
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Todas estas iniciativas são mais que sementes. Já são brotos que mostram a possível florada de uma Terra nova com uma Humanidade que está aprendendo a se responsabilizar, a cuidar e a amar, o que afiança a sustentabilidade deste nosso pequeno Planeta.
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*Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é escritor. - lboff@leonardoboff.com - Veja 'O tao da libertação: explorando a ecologia da transformação', de L.Boff e M.Hathaway (Vozes, 2012).
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segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Atitudes face à crise atual

Leonardo Boff*
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Ninguém face à crise pode ficar indiferente. Urge uma decisão e encontrar uma saída libertadora. É aqui que se encontram várias atitudes para ver qual delas é a mais adequada a fim de evitarmos enganos.
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A primeira é a dos catastrofistas: a fuga para o fundo: estes enfatizam o lado de caos que toda crise encerra. Veem a crise como catástrofe, decomposição e fim da ordem vigente. Para eles a crise é algo anormal que devemos evitar a todo custo. Só aceitam certosajustes e mudanças dentro da mesma estrutura. Mas o fazem com tantos senões que desfibram qualquer irrupção inovadora.
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Contra estes catastrofistas já dizia o bom Papa João XXIII referindo-se à Igreja mas que vale para qualquer campo: “A vida concreta não é uma coleção de antigui­dades. Não se trata de visitar um museu ou uma academia do passado. Vive-se para progredir, embora tirando proveito das experiências do passado, mas para ir sempre mais longe."
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A crise generalizada não precisa ser uma queda para o abismo. Vale o que escreveu um suíço que muito ama o Brasil, o filósofo e pedagogo Pierre Furter: “Caracterizar a crise como sinal de um colapso universal, é uma maneira sutil e pérfida dos poderosos e dos privilegiados de impedirem, a priori, as mudanças, desvalorizando-as de antemão”.
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A segunda atitude é a dos conservadores: a fuga para trás. Estes se orientam pelo passado, olhando pelo retrovisor. Ao invés de explorar as forças positivas contidas crise atual, fogem para o passado e buscam nas velhas fórmulas soluções para os problemas novos. Por isso são arcaizantes e ineficazes.
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Grande parte das instituições políticas e dos organismos econômicos mundiais como o FMI, o Banco Mundial, a OMC, os G-20 mas também a maioria das Igrejas e das religiões procuram dar solução aos graves problemas mundiais com as mesmas concepções. Favorecem a inércia e freiam soluções inovadores.
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Deixando as coisas como estão fatalmente nos levarão ao fracasso senão a uma crise ecológica e humanitária inimaginável. Como as fórmulas passadas esgotaram sua força de convencimento e de inovação, acabam transformando a crise numa tragédia.
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A terceira atitude é a dos utopistas: fuga para frente. Estes pensam resolver a situação-de-crise fugindo para o futuro Eles se situam dentro do mesmo horizonte que os conservadores apenas numa direção contrária. Por isso, podem facilmente fazer acordos entre si.
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Geralmente são voluntaristas e se esquecem que na história só se fazem as revoluções que se fazem. O último slogan não é um pensamento novo. Os críticos mais audazes podem ser também os mais estéreis. Não raro, a audácia contestatória não passa de evasão do confronto duro com a realidade.
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Circulam atualmente utopias futuristas de todo tipo, muitas de caráter esotérico como as que falam de alinhamento de energias cósmicas que estão afetando nossas mentes. Outros projetam utopias fundadas no sonho de que a biotecnologia e a nanotecnologia poderão resolver todos os problemas e tornar imortal a vida humana.
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Uma quarta atitude é a dos escapistas: fogem para dentro. Estes dão-se conta do obscurecimento do horizonte e do conjunto das convicções funda­mentais. Mas fazem ouvidos moucos ao alarme ecológico e aos gritos dos oprimidos. Evitam o confronto, preferem não saber, não ouvir, não ler e não se questionar. As pessoas já não querem conviver. Preferem a solidão do indivíduo mas geralmente plugado na internet e nas redes sociais.
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Por fim há uma quinta atitude: a dos responsáveis: enfrentam o aqui e agora. São aqueles que elaboram uma resposta; por isso os chamo de responsáveis. Não temem, nem fogem, nem se omitem, mas assumem o risco de abrir caminhos. Buscam fortalecer as forças positivas contidas na crise e formulam respostas aos problemas. Não rejeitam o passado por ser passado. Aprendem dele com um repositório das grandes expe­riências que não devem ser desperdiçadas sem se eximir de fazer as suas próprias experiências.
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Os responsáveis se definem por um a favor e não simplesmente por um contra. Também não se perdem em polêmicas estéreis. Mas trabalham e se engajam pro­fundamente na realização de um modelo que corresponda às necessidades do tempo, aberto à crítica e à autocrítica, dispostos sempre a aprender.
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O que mais se exige hoje são políticos, líderes, grupos, pessoas que se sintam responsáveis e forcem a passagem do velho ao novo tempo.
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* professor, escritor e teólogo
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segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Balanço anual do macro: estamos indo de mal a pior

Leonardo Boff*
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A realidade mundial é complexa. É impossível fazer um balanço unitário. Tentarei fazer um atinente à macrorrealidade e outro à micro. Se considerarmos a forma como os donos do poder estão enfrentando a crise sistêmica de nosso tipo de civilização, organizada na exploração ilimitada da natureza, na acumulação também ilimitada e na consequente criação de uma dupla injustiça – a social, com as perversas desigualdades em nível mundial, e a ecológica, com a desestruturação da rede da vida que garante a nossa subsistência – e se, ainda tomarmos como ponto de aferição a COP 18 realizada neste final de ano em Doha no Qatar sobre o aquecimento global, podemos sem exagero dizer: estamos indo de mal a pior. A seguir a este caminho encontraremos lá na frente, e não demorará muito, um “abismo ecológico”.
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Até agora não se tomaram as medidas necessárias para mudar o curso das coisas. A economia especulativa continua a florescer, os mercados cada vez mais competitivos – o que equivale a dizer – cada vez menos regulados e o alarme ecológico corporificado no aquecimento global posto praticamente de lado. Em Doha só faltou dar a extrema-unção ao Tratado de Kyoto. E por ironia se diz na primeira página do documento final que nada resolveu, pois protelou tudo para 2015: ”A mudança climática representa uma ameaça urgente e potencialmente irreversível para as sociedades humanas e para o planeta, e esse problema precisa ser urgentemente enfrentado por todos os países”. E não está sendo enfrentado. Como nos tempos de Noé, continuamos a comer, a beber e a arrumar as mesas do Titanic afundando, ouvindo ainda música. A Casa está pegando fogo, e mentimos aos outros dizendo que não.
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Vejo duas razões para esta conclusão realista, que parece pessimista. Diria com José Saramago: ”Não sou pessimista; a realidade é que é péssima; eu sou é realista”. A primeira razão tem a ver com a premissa falsa que sustenta e alimenta a crise: o objetivo é o crescimento material ilimitado (aumento do PIB), realizado na base de energia fóssil e com o fluxo totalmente liberado dos capitais, especialmente especulativos. Esta premissa está presente em todos os planejamentos dos países, inclusive no brasileiro. A falsidade da premissa reside na desconsideração completa dos limites do sistema-Terra. Um planeta limitado não aquenta um projeto ilimitado. Ele não possui sustentabilidade. Aliás, evita-se a palavra sustentabilidade, que vem das ciências da vida; ela é não linear, se organiza em redes de interdependências de todos com todos que mantêm funcionando todos os fatores que garantem a perpetuação da vida e de nossa civilização. Prefere-se falar em desenvolvimento sustentável, sem se dar conta de que se trata de um conceito contraditório porque é linear, sempre crescente, supondo a dominação da natureza e a quebra do equilíbrio ecossistêmico. Nunca se chega a nenhum acordo sobre o clima, porque os poderosos conglomerados do petróleo influenciam politicamente os governos e boicotam qualquer medida que lhes diminua os lucros e por isso não apoiam as energias alternativas. Só buscam o crescimento anual do PIB.
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Este modelo está sendo refutado pelos fatos: não funciona mais nem nos países centrais, como o mostra a crise atual, nem nos periféricos. Ou se busca um outro tipo de crescimento, que é essencial para o sistema-vida mas que por nós deve ser feito respeitando a capacidade da Terra e os ritmos da natureza, ou então encontraremos o inominável.
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A segunda razão é mais de ordem filosófica, e pela qual me tenho batido há mais de trinta anos. Ela implica consequências paradigmáticas: o resgate da inteligência cordial ou emocional para equilibrar o poderio destruidor da razão instrumental, sequestrada já há séculos pelo processo produtivo acumulador. Com nos diz o filósofo francês Patrick Viveret, “a razão instrumental sem a inteligência emocional pode perfeitamente nos levar à pior das barbáries” (Por uma sobriedade feliz, Quarteto 2012, 41); haja vista o redesenho da humanidade, projetado por Himmler e que culminou com a shoah, a liquidação dos ciganos e dos deficientes.
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Se não incorporarmos a inteligência emocional à razão instrumental-analítica, nunca iremos sentir os gritos da Mãe Terra, a dor das florestas abatidas e a devastação atual da biodiversidade, na ordem de quase cem mil espécies por ano (E.Wilson). Junto com a sustentabilidade deve vir o cuidado, o respeito e o amor por tudo o que existe e vive. Sem essa revolução da mente e do coração iremos, sim, de mal a pior. 
Veja meu livro: Proteger a Terra - cuidar da vida: Como escapar do fim do mundo (Record, 2010).
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* Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é escritor. - lboff@leonardoboff.com

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Reflexões sobre a tortura, torturados e torturadores

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Por Leonardo Boff*
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Com a instauração da Comissão Memória e Verdade, vem à tona, com toda a sua barbárie, a tortura como método sistemático do Estado ditatorial militar de enfrentar seus opositores. Já se estudaram detalhadamente os processos de desumanização do torturado e, também, do torturador. Este precisa reprimir sua própria humanidade. Muitos torturadores acabaram suicidando por não aguentarem tanta perversidade.
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Quero, entretanto, destacar um ponto nem sempre suscitado na discussão e que foi muito bem-analisado por psicanalistas, especialmente na Alemanha pós-nazista e, entre nós, por Hélio Peregrino, já falecido.
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O mais terrível da tortura política é o fato de que ela obriga o torturado a lutar contra si mesmo. A tortura cinde a pessoa ao meio. Coloca a mente contra o corpo.
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A mente quer ser fiel à causa dos companheiros, não quer entregá-los. O corpo, submetido a extrema intimidação e aviltamento, tende a fazer a vontade do torturador. Essa é a cisão.
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Mas há um ponto a ressaltar: o torturado pode ser vítima de mecanismos inconscientes de identificação com o agressor. Ao se identificar com ele, consegue, psicologicamente, exorcizar o pânico e sobreviver.
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O torturado que sucumbiu a essa desesperada contingência de autodefesa incorpora sinistramente a figura do torturador. Este consegue abrir uma brecha na alma do torturado, penetra lá onde moram os segredos mais sagrados e onde a pessoa alimenta seu mistério. Ultrapassa os umbrais da profundidade humana para possuir a vítima e fazê-la um outro, alguém que acaba reconhecendo ser de fato um elemento subversivo, inimigo da pátria e da humanidade.
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Os torturadores Albernaz e Fleury eram peritos nessa perversidade. Fleury disse a Frei Tito, como aparece no terrificante filme de Helvécio Ratton "Batismo de Sangue", baseado no livro de Frei Betto, que deixaria nele marcas que ele jamais esqueceria. Efetivamente, conseguiu cindir-lhe a mente e o corpo e penetrar na sua intimidade, a ponto de ele, no exílio na França, sentir a todo momento a presença de seu algoz. Deixou um bilhete: "Prefiro tirar minha vida a morrer".
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Esse tipo de tortura faz da desumanização o eixo de uma prática. Trata-se da completa subversão do humano e de suas referências sagradas. É seguramente um dos maiores crimes de lesa-humanidade que pode existir.
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Tais perversidades não podem obter nenhuma anistia. Por onde andarem os torturadores, a vida os acusará, porque violaram a sua suprema sacralidade.
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E há ainda a tortura dos desaparecidos, crucificando seus entes queridos. A guerrilha do Araguaia até hoje não foi reconhecida totalmente pelos militares. Lá se cometerem todos os excessos contra os guerrilheiros.
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Sumiram com seus cadáveres. Fizeram desaparecerem suas vidas e pretendem apagar suas mortes.
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Os torturadores e seus mandantes estão aí, agora, ameaçados pelo esculacho do movimento Levante Popular da Juventude, que não os deixa descansar a consciência.
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Poderá haver a anistia pactuada dos homens. Mas não haverá anistia perante a consciência e perante Aquele que se apresentou sob a figura de um preso, torturado e executado na cruz. Jesus, feito juiz supremo, julgará aqueles que violaram a humanidade mínima. Chegará o dia em que todos os desaparecidos aparecerão. Eles virão, como diz o Apocalipse, da grande tribulação da história. Então, será definitivamente verdadeiro: "Nunca mais uma ditadura. Nunca mais desaparecidos. Nunca mais a tortura".
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* É professor, teólogo e escritor
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Fonte: Jornal O Tempo (MG)

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Corrupto: quem tem o coração corrompido na origem

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Leonardo Boff*
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A indignação generalizada face à corrupção no Brasil e no mundo está dando lugar à resignação e ao descaso. Pois a impunidade é tão vulgarizada que a maioria já descrê de qualquer solução.
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Sobre esse fato, a teologia tem algo a dizer. Ela sustenta que a atual condição humana é dilacerada e decadente (infralapsárica, se diz no dialeto teológico), consequência de um ato de corrupção. Segundo a narrativa bíblica, a serpente corrompeu a mulher; a mulher corrompeu o homem; e ambos nos deixaram um legado de corrupções, a ponto de Deus "ter-se arrependido de ter criado o ser humano na Terra", como nos lembra o texto de Gênesis (6,6). Somos filhos e filhas de uma corrupção originária.
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Alegava-se, nos espaços cristãos, que todo mal deriva dessa corrupção originária, chamada de pecado original. Mas essa expressão se tornou estranha aos ouvidos modernos. Mesmo assim, ouso resgatá-la, pois contém uma verdade inegável, atestada pela reflexão filosófica de um Sartre e mesmo pelo rigorismo filosófico de Kant, segundo o qual "o ser humano é um lenho tão torto que dele não se podem tirar tábuas retas".
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Importa anotar que é um termo criado pela teologia. Não se encontra como tal na Bíblia. Foi santo Agostinho, em diálogo epistolar com são Jerônimo, que o inventou. Com a expressão "pecado original", não pretendia falar do passado. O "original" não tinha a ver com as origens da história humana. Com ela, santo Agostinho queria falar do presente: a atual situação do ser humano, em seu nível mais profundo, é perversa e marcada por uma distorção que atinge as origens de sua existência (daí "original"). Fez a sua filologia da palavra "corrupto": é ter um coração (cor) rompido (ruptus, de rompere).
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Somos portadores, portanto, de uma rachadura interna que equivale a uma dilaceração do coração. Em palavras modernas: somos diabólicos e simbólicos, sapientes e dementes, capazes de amor e de ódio. Mas, por curiosidade, perguntava santo Agostinho: quando ela começou? Ele mesmo responde: desde que conhecemos o ser humano; desde as "origens". Mas ele não confere importância a essa questão. O importante é saber que, aqui e agora, somos seres corruptos, corruptíveis e corruptores. E que cremos em alguém, o Cristo, que nos pode libertar.
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Mas onde se manifesta mais visivelmente esse estado de corrupção? Quem nos responde é o famoso e católico Lord Acton (1843-1902): é nos portadores de poder. Enfaticamente afirma: "Meu dogma é a geral maldade dos homens de poder; são os que mais se corrompem". E fez uma afirmação sempre repetida: "O poder tem a tendência a se corromper, e o absoluto poder corrompe absolutamente". Por que, exatamente, o poder? Porque é um dos arquétipos mais poderosos e tentadores da psique humana; dá-nos o sentimento de onipotência e de nós sermos um pequeno "deus". Por isso, Hobbes, no seu "Leviatã" (1651), nos confirma: "Assinalo, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e de mais poder, que cessa apenas com a morte; a razão disso reside no fato de que não se pode garantir o poder senão buscando ainda mais poder".
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Esse poder se materializa no dinheiro. Por isso, as corrupções a que estamos assistindo envolvem dinheiro. Diz um dito de Ghana: "A boca ri, mas o dinheiro ri melhor".
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Não achamos cura para essa ferida. Só podemos diminuir-lhe a sangria. Creio que vale o método bíblico: desmascarar o corrupto, deixando-o nu diante de sua corrupção, e a pura e simples expulsão do paraíso, quer dizer, tirar o corruptor e o corrompido da sociedade e metê-los na prisão.
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*Teólogo e escritor
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 Fonte: O Tempo (MG)

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Coração ferido: a irracionalidade da razão

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Por Leonardo Boff*
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Não estamos longe da verdade se entendermos a tragédia atual da humanidade como o fracasso de um tipo de razão predominante nos últimos quinhentos anos. Com o arsenal de recursos de que dispõe, não consegue dar conta das contradições, criadas por ela mesma.
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Já analisamos nestas páginas como se operou, a partir de então, a ruptura entre a razão objetiva (a lógica das coisas) e a razão subjetiva(os interesses do eu). Esta se sobrepôs àquela a ponto de se instaurar como a exclusiva força de organização histórico-social.
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Esta razão subjetiva se entendeu como vontade de poder e poder como dominação sobre pessoas e coisas. A centralidade agora é ocupada pelo poder do "eu", exclusivo portador de razão e de projeto. Ele gestará o que lhe é conatural: o individualismo como reafirmação suprema do "eu". Este ganhará corpo no capitalismo cujo motor é a acumulação privada e individual sem qualquer outra consideração social ou ecológica. Foi uma decisão cultural altamente arriscada a de confiar exclusivamente à razão subjetiva a estruturação de toda a realidade. Isso implicou numa verdadeira ditadura da razão que recalcou ou destruiu outras formas de exercício da razão como a razão sensível, simbólica e ética, fundamentais para a vida social.
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O ideal que o "eu" irá perseguir irrefreavelmente será um progresso ilimitado no pressuposto inquestionável de que os recursos da Terra são também ilimitados. O infinito do progresso e o infinito dos recursos constituirão o a priori ontológico e o parti pris fundador desta refundação do mundo.
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Mas eis que depois de quinhentos anos, nos damos conta de que ambos os infinitos são ilusórios. A Terra é pequena e finita. O progresso tocou nos limites da Terra. Não há como ultrapassá-los. Agora começou o tempo do mundo finito. Não respeitar esta finitude, implica tolher a capacidade de reprodução da vida na Terra e com isso pôr em risco a sobrevivência da espécie.
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Cumpriu-se o tempo histórico do capitalismo. Levá-lo avante custará tanto que acabará por destruir a sociabilidade e o futuro. A persistir nesse intento, se evidenciará o caráter destrutivo da irracionalidade da razão.
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O mais grave é que o capitalismo/individualismo introduziu duas lógicas que se conflitam: a dos interesses privados dos “eus” e das empresas e a dos interesses coletivos do “nós” e da sociedade. O capitalismo é, por natureza, antidemocrático. Não é nada cooperativo e é só competitivo.
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Teremos alguma saída? Com apenas reformas e regulações, mantendo o sistema, como querem os neokeynesianos à la Stiglitz, Krugman e outros entre nós, não. Temos que mudar se quisermos nos salvar.
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Para tal, antes de mais nada, importa construir um novo acordo entre a razão objetiva a a subjetiva. Isso implica ampliar a razão e assim libertá-la do jugo de ser instrumento do poder-dominação. Ela pode ser razão emancipatória. Para o novo acordo, urge resgatar a razão sensível e cordial para se compor com a razão instrumental.
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Aquela se ancora do cérebro límbico, surgido há mais de duzentos milhões de anos, quando, com os mamíferos, irrompeu o afeto, a paixão, o cuidado, o amor e o mundo dos valores. Ela nos permite fazer uma leitura emocional e valorativa dos dados científicos da razão instrumental. Esta emergiu no cérebro neocortex há apenas 5-7 milhões de anos. A razão sensível nos desperta o reencantamento e o cuidado pela vida e pela mãe-Terra.
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Em seguida, se impõe uma nova centralidade: não mais o interesse privado mas o interesse comum, o respeito aos bens comuns da Humanidade e da Terra destinados a todos. Depois a economia precisa voltar a ser aquilo que é de sua natureza: garantir as condições da vida física, cultural e espiritual de todas as pessoas.
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Em continuidade, a política deverá se construir sobre uma democracia sem fim, cotidiana e inclusiva de todos seres humanos para que sejam sujeitos da história e não meros assistentes ou beneficiários.
Por fim, um novo mundo não terá rosto humano se não se reger por valores ético-espirituais compartidos, na base da contribuição das muitas culturas, junto com a tradição judaico-cristã.
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Todos esses passos possuem muito de utópico. Mas sem a utopia afundaríamos no pântano dos interesses privados e corporativos. Felizmente, por todas as partes repontam ensaios, antecipadores do novo, como a economia solidária, a sustentabilidade e o cuidado vividos como paradigmas de perpetuação e reprodução de tudo o que existe e vive. Não renunciamos ao ancestral anseio da comensalidade: todos comendo e bebendo juntos como irmãos e irmãs na Grande Casa Comum.
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Leonardo Boff é teólogo e filósofo e autor de Virtudes para um outro mundo possível, 3 vol.Vozes 2009.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Economia verde versus Economia solidária

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Leonardo Boff *
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O Documento Zero da ONU para a Rio+20 é ainda refém do velho paradigma da dominação da natureza para extrair dela os maiores benefícios possíveis para os negócios e para o mercado. Através dele e nele o ser humano deve buscar os meios de sua vida e subsistência. A economia verde radicaliza esta tendência, pois como escreveu o diplomata e ecologista boliviano Pablo Solón “ela busca não apenas mercantilizar a madeira das florestas mas, também, sua capacidade de absorção de dióxido de carbono”. Tudo isso pode se transformar em bônus negociáveis pelo mercado e pelos bancos. Destarte o texto se revela definitivamente antropocêntrico como se tudo se destinasse ao uso exclusivo dos humanos e a Terra tivesse criado somente a eles e não a outros seres vivos que exigem também sustentabilidade das condições ecológicas para a sua permanência neste planeta.
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Resumidamente: O futuro que queremos, lema central do documento da ONU, não é outra coisa que o prolongamento do presente. Este se apresenta ameaçador e nega um futuro de esperança. Num contexto destes, não avançar é retroceder e fechar as portas para o novo.
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Há outrossim um agravante: todo o texto gira ao redor da economia. Por mais que a pintemos de marron ou de verde, ela guarda sempre sua lógica interna que se formula nesta pergunta: quanto posso ganhar no tempo mais curto, com o investimento menor possível, mantendo forte a concorrência? Não sejamos ingênuos: o negócio da economia vigente é o negócio. Ela não propõe uma nova relação para com a natureza, sentindo-se parte dela e responsável por sua vitalidade e integridade. Antes, move-lhe uma guerra total, como denuncia o filósofo da ecologia Michel Serres. Nesta guerra não possuímos nenhuma chance de vitória. Ela ignora nossos intentos. Segue seu curso, mesmo sem a nossa presença. Tarefa da inteligência é decifrar o que ela nos quer dizer (pelos eventos extremos, pelos tsunâmis etc), defender-nos de efeitos maléficos e colocar suas energias a nosso favor. Ela nos oferece informações mas não nos dita comportamentos. Estes devem ser inventados por nós mesmos. Eles somente serão bons caso estiverem em conformidade com seus ritmos e ciclos.
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Como alternativa a esta economia de devastação, precisamos, se queremos ter futuro, opor-lhe outro paradigma de economia de preservação, conservação e sustentação de toda a vida. Precisamos produzir, sim, mas a partir dos bens e serviços que a natureza nos oferece gratuitamente, respeitando o alcance e os limites de cada biorregião, destribuindo com equidade os frutos alcançados, pensando nos direitos das gerações futuras e nos demais seres da comunidade de vida. Ela ganha corpo hoje através da economia biocentrada, solidária, agroecológica, familiar e orgânica. Nela cada comunidade busca garantir sua soberania alimentar. Produz o que consome, articulando produtores e consumodres numa verdadeira democracia alimentar.
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A Rio+92 consagrou o conceito antropocêntrico e reducionista de desenvolvimento sustentável, elaborado pelo relatório Brundland de 1987 da ONU. Ele se transformou num dogma professado pelos documentos oficiais, pelos Estados e empresas sem nunca ser submetido a uma crítica séria. Ele sequestrou a sustentabilidade só para seu campo, e assim distorceu as relações para com a natureza. Os desastres que causava nela eram vistos como externalidades que não cabia considerar. Ocorre que estas se tornaram ameaçadoras, capazes de destruir as bases físico-químicas que sustentam a vida humana e grande parte da biosfera. Isso não é superado pela ecocomia verde. Ela configura uma armadilha dos países ricos, especialmente da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), que produziu o texto teórico do Pnuma, Iniciativa da economa verde. Com isso, astutamente descartam a discussão sobre a sustentabilidade, a injustiça social e ecológica, o aquecimento global, o modelo econômico falido e a mudança de olhar sobre o planeta que possa projetar um real futuro para a Humanidade e para a Terra.
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Junto com a Rio+20 seria um ganho resgatar também a Estocolmo+40. Nesta primeira conferência mundial da ONU de 5-15 de julho de1972, em Estocolmo, na Suécia, sobre o Ambiente humano, o foco central não era o desenvolvimento mas o cuidado e a responsabilidade coletiva por tudo o que nos cerca e que está em acelerado processo de degradação, afetando a todos e especialmente aos países pobres. Era uma perspectiva humanística e generosa. Ela se perdeu com a cartilha fechada do desenvolvimento sustentável e agora com a economia verde.
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* Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é autor de 'Sustentabilidade: O que é e o que não é' (Vozes, 2012) e membro da Comissão Iniciativa da Carta da Terra. - lboff@leonardoboff.com
Fonte: Jornal do Brasil

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Reinventando a educação

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Por Leonardo Boff (escritor e teólogo)
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Muniz Sodré, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é alguém que sabe muito. Mas o singular nele é que, como poucos, pensa sobre o que sabe. Fruto de seu pensar é um livro notável que acaba de sair: Reinventando a educação: diversidade, descolonização e redes (Vozes 2012).
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Nesse livro procura enfrentar os desafios colocados à pedagogia e à educação que se derivam dos vários tipos de saberes, das novas tecnologias e das transformações processadas pelo capitalismo. Tudo isso a partir de nosso lugar social que é o Hemisfério Sul, um dia colonizado e que está passando por um instigante processo de neodescolonização e de um enfrentamento com o debilitado neoeurocentrismo hoje devastado pela crise do Euro.
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Muniz Sodré analisa as várias correntes da pedagogia e da educação desde a paideia grega até o mercado mundial da educação que representa uma crassa concepção da educação utilitarista, ao transformar a escola numa empresa e numa praça de mercado a serviço da dominação mundial.
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Desmascara os mecanismos de poder econômico e político que se escondem atrás de expressões que estão na boca de todos como “sociedade do conhecimento ou da informação”. Melhor dito, o capitalismo-informacional-cognitivo constitui a nova base da acumulação do capital. Tudo virou capital: capital natural, capital humano, capital cultural, capital intelectual, capital social, capital simbólico, capital religioso…capital e mais capital. Por detrás se oculta uma monocultura do saber, aquele maquínico, expressso pela “economia do conhecimento” a serviço do mercado.
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Hoje projetou-se um tipo de educação que visa a formação de quadros que prestam “serviços simbólico-analíticos”, quadros dotados de alta capacidade de inventar, identificar problemas e de resolvê-los. Essa educação “distribui conhecimentos da mesma forma que uma fábrica instala componentes na linha de montagem”.
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A educação perde destarte seu caráter de formação. Ela cái sob a crítica de Hannah Arendt que dizia: “pode-se continuar a aprender até o fim da vida sem, no entanto, jamais se educar”. Educar implica aprender sim a conhecer e a fazer, mas sobretudo aprender a ser, a conviver e a cuidar. Comporta construir sentidos de vida, saber lidar com a complexa condition humaine e definir-se face aos rumos da história.
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O que agrava todo o processo educativo é a predominância do pensamento único. Os americanos vivem de um mito o do“destino manifesto”. Imaginam que Deus lhes reservou um destino, o de ser o “novo povo escolhido” para levar ao mundo seu estilo de vida, seu modo de produzir e de consumir ilimitadamente, seu tipo de democracia e seus valores de livre mercado. Em nome desta excepcionalidade, intervem pelo mundo afora, até com guerras, para garantir sua hegemonia imperial sobre todo o mundo.
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A Europa não renunciou ainda a sua arrogância. A Declaração de Bolonha de 1999 que reuniu 29 ministros da Educação de toda a Europa, afirmava que só ela poderia produzir um conhecimento universal, “capaz de oferecer aos cidadãos as competências necessárias para responder aos desafios do novo milênio”. Antes a imaginada universalidade se fundava nos direitos humanos e no próprio Cristianismo com sua pretensão de ser a única religião verdadeira. Agora a visão é mais rasteira: só a Europa garante eficácia empresarial, competências, habilidades e destrezas que realizarão a globalização dos negócios. A crise econômico-finaneceira atual está tornando ridícula esta pretensão. A maioria dos países não sabem como sair da crise que criaram. Preferem lançar inteiras sociedades no desemprego e na miséria para salvar o sistema financeiro especulativo, cruel e sem piedade.
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Muniz Sodré em seu livro traz para a realidade brasileira estas questões para mostrar com que desafios nossa educação deve se confrontar nos próximos anos. Chegou o momento de construirmo-nos como povo livre e criativo e não mero eco da voz dos outros. Resgata os nomes de educadores que pensaram uma educação adequada às nossas virtualidades, como Joaquim Nabuco, Anísio Teixeira e particularmente Paulo Freire. Darcy Ribeiro falava com entusiasmo da “reinvenção do Brasil” a partir da riqueza da mestiçagem entre todos representantes dos 60 povos que vieram ao nosso pais.
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A educação reinventada nos deve ajudar na descolonização e na superação do pensamento único, aprendendo com as diversidades culturais e tirando proveito das redes sociais. Deste esforço poderão nascer entre nós os primeiros brotos de um outro paradigma de civilização que terá como centralidade a vida, a Humanidade e a Terra que alguns também chamam de civilização biocentrada.
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sexta-feira, 4 de maio de 2012

O homem precisa de cuidados, mas quem cuida do cuidador?

Arte de Jia Lu  (in Fada do Mar)
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Por Leonardo Boff (Teólogo e escritor).
As primeiras cuidadoras são nossas mães e avós que, desde o início da humanidade, cuidaram de sua prole.
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Verdadeiros arquétipos do cuidador foram o médico suíço Albert Schweitzer (1875-1965) e a enfermeira inglesa Florence Nightingale (1820-1910).
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Schweitzer foi um dos maiores concertistas de Bach de seu tempo. Aos 30 anos, já com fama em toda a Europa, largou tudo, estudou medicina para cuidar dos mais pobres dos pobres, os hansenianos, em Lambarene, no Gabão. Numa de suas cartas confessa: "o que precisamos não é de missionários que queiram converter os africanos, mas de pessoas dispostas a fazer aos pobres o que deve ser feito, se é que o Sermão da Montanha e as palavras de Jesus possuem algum valor ".
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Foi dos primeiros a ganhar o prêmio Nobel da Paz. Formulou assim seu lema: "a ética é a responsabilidade ilimitada por tudo o que existe e vive".
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Humanista e profundamente religiosa, Nightingale decidiu melhorar os padrões da enfermagem em seu país. Em 1854, com outras 28 companheiras, se deslocou para o campo de guerra da Crimeia, na Turquia, onde se empregavam bombas de fragmentação que produziam muitos feridos. Em seis meses, reduziu de 42% para 2% o número de mortos. Esse sucesso granjeou-lhe notoriedade universal. De volta a seu país e, depois, nos Estados Unidos, criou uma rede hospitalar que aplicava o cuidado como eixo norteador da enfermagem e como sua ética natural. Florence Nightingale é uma referência inspiradora. O operador da saúde é, por essência, um curador. Cuida dos outros como missão e como opção de vida. Mas quem cuida do cuidador, título de um belo livro do médico Eugênio Paes Campos (Vozes, 2005)?
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O ser humano é, por sua natureza e essência, um ser de cuidado. Sente a predisposição de cuidar e a necessidade de ser ele também cuidado. Cuidar e ser cuidado são existenciais (estruturas permanentes) e indissociáveis.
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O cuidar é muito exigente e pode levar o cuidador ao estresse. Especialmente se o cuidado constitui, como deve ser, uma atitude permanente e consciente. Somos limitados, sujeitos ao cansaço e à vivência de pequenos fracassos e decepções. Sentimo-nos sós. Precisamos ser cuidados, caso contrário, nossa vontade de cuidar se enfraquece. Que fazer então?
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Logicamente, cada pessoa precisa enfrentar com sentido de resiliência (saber dar a volta por cima) essa situação dolorosa. Mas esse esforço não substitui o desejo de ser cuidado. É então que a comunidade do cuidado deve entrar em ação.
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O enfermeiro ou a enfermeira, o médico e a médica sentem necessidade de serem também cuidados. Precisam se sentir acolhidos e revitalizados, exatamente, como as mães fazem com seus filhos e filhas. Outras vezes sentem necessidade do cuidado como suporte, sustentação e proteção, coisa que o pai proporciona a seus filhos e filhas.
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Cria-se então o que o pediatra R. Winnicott chamava de "holding", quer dizer, aquele conjunto de cuidados e fatores de animação que reforçam o estímulo para continuarem no cuidado para com os pacientes.
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Quando esse espírito de cuidado reina, surgem relações horizontais de confiança e de mútua cooperação, e se superam os constrangimentos, nascidos da necessidade de ser cuidado.
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Feliz é o hospital e mais felizes são, ainda, aqueles pacientes que podem contar com um grupo de cuidadores. A boa energia que se irradia do cuidado corrobora na cura.
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Fonte: O Tempo (MG)               


sexta-feira, 23 de março de 2012

A felicidade humana não está em maximizar, mas em otimizar a vida

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Por Leonardo Boff (teólogo e escritor)
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No ponto de saturação, o efeito é o vazio existencial
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Há uma ética subjacente à cultura produtivista e consumista, hoje vastamente em crise por causa da pegada ecológica do planeta Terra, cujos limites foram ultrapassados em 30%. Nunca mais vamos ter a abundância de bens e serviços como até há pouco tempo dispúnhamos. A Terra precisa de um ano e meio para repor o que lhe extraímos durante um ano. E não parece que a fúria consumista esteja diminuindo. Pelo contrário, o sistema vigente, para salvar-se, incentiva mais e mais o consumo que, por sua vez, requer mais e mais produção, que acaba estressando ainda mais todos os ecossistemas e o planeta como um todo.
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A ética que preside esse modo de viver é a da maximização de tudo o que fazemos: maximizar a construção de fábricas, de estradas, de carros, de combustíveis, de computadores, de celulares; maximizar programas de entretenimento, novelas, cursos, reciclagens, produção intelectual e científica. A roda da produção não pode parar, caso contrário, ocorre um colapso no consumo e nos empregos. No fundo, é sempre mais do mesmo e sem o sentido dos limites suportáveis pela natureza.
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Imitando Nietzsche, perguntamos: quanto de maximização aguenta o estômago físico e espiritual humano? Chega-se a um ponto de saturação e o efeito direto é o vazio existencial. Descobre-se que a felicidade humana não está em maximizar, nem engordar a conta bancária, nem o número dos bens na cesta de produtos consumíveis. O fato é que o ser humano possui outras fomes: de comunicação, de solidariedade, de amor, de transcendência, entre outras.
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Essas, por sua natureza, são insaciáveis, pois podem crescer e se diversificar indefinidamente. Nelas se esconde o segredo da felicidade. Mas nas palavras do filósofo Ludwig Wittgenstein, citando santo Agostinho, "tivemos que construir caminhos tormentosos pelos quais fomos obrigados a caminhar com multiplicadas canseiras e sofrimentos, impostos aos filhos e filhas de Adão e Eva" para chegar a essa tão buscada felicidade.
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Logicamente, precisamos de certa quantidade de alimentos para sustentar a vida. Mas alimentos excessivos, maximizados, causam obesidade e doenças. Os países ricos maximizaram de tal maneira a oferta de meios de vida e a infraestrutura material que dizimaram suas florestas (a Europa só possui 0,1% de suas florestas originais), destruíram ecossistemas e grande parte da biodiversidade, além de gestar perversas desigualdades entre ricos e pobres.
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Devemos caminhar na direção de uma ética diferente, a da otimização. Ela se funda numa concepção sistêmica da natureza e da vida. Todos os sistemas vivos procuram otimizar as relações que sustentam a vida. O sistema busca um equilíbrio dinâmico, aproveitando todos os ingredientes da natureza, sem produzir lixo, otimizando a qualidade e inserindo a todos. Na esfera humana, essa otimização pressupõe o sentido de autolimitação e a busca da justa medida. A base material sóbria e decente possibilita o desenvolvimento de algo não material que são os bens do espírito, como a solidariedade para com os mais vulneráveis, a compaixão, o amor que desfaz os mecanismos de agressividade, supera os preconceitos e não permite que as diferenças sejam tratadas como desigualdades.
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Talvez a crise atual do capital material, sempre limitado, nos enseje viver a partir do capital humano e espiritual, sempre ilimitado e aberto a novas expressões. Ele nos possibilita ter experiências espirituais de celebração do mistério da existência e de gratidão pelo nosso lugar no conjunto dos seres. Com isso, maximizamos nossas potencialidades latentes, aquelas que guardam o segredo da plenitude tão ansiada.
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Fonte: O Tempo (MG)

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Pensamentos e sonhos sobre o Brasil


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Por: Leonardo Boff

1. O povo brasileiro se habituou a “enfrentar a vida” e a conseguir tudo “na luta”, quer dizer, superando dificuldades e com muito trabalho. Por que não iria “enfrentar” também o derradeiro desafio de fazer as mudanças necessárias, para criar relações mais igualitárias e acabar com a corrupção?

2. O povo brasileiro ainda não acabou de nascer. O que herdamos foi a Empresa-Brasil com uma elite escravagista e uma massa de destituídos. Mas do seio desta massa nasceram lideranças e movimentos sociais com consciência e organização. Seu sonho? Reinventar o Brasil. O processo começou a partir de baixo e não há mais como detê-lo.

3. Apesar da pobreza e da marginalização, os pobres sabiamente inventaram caminhos de sobrevivência. Para superar esta antirrealidade, o Estado e os políticos precisam escutar e valorizar o que o povo já sabe e inventou. Só então teremos superado a divisão elites-povo e seremos uma nação una e complexa.

4. O brasileiro tem um compromisso com a esperança. É a última que morre. Por isso, tem a certeza de que Deus escreve direito por linhas tortas. A esperança é o segredo de seu otimismo, que lhe permite relativizar os dramas, dançar seu Carnaval, torcer por seu time de futebol e manter acesa a utopia de que a vida é bela e que amanhã pode ser melhor. 

5. O medo é inerente à vida porque “viver é perigoso” e sempre comporta riscos. Estes nos obrigam a mudar e reforçam a esperança. O que o povo mais quer, não as elites, é mudar para que a felicidade e o amor não sejam tão difíceis.

6. O oposto ao medo não é a coragem. É a fé de que as coisas podem ser diferentes e que, organizados, podemos avançar. O Brasil mostrou que não é apenas bom no Carnaval e no futebol. Mas também bom na agricultura, na arquitetura, na música e na sua inesgotável alegria de viver.

7. O povo brasileiro é religioso e místico. Mais que pensar em Deus, ele sente Deus em seu cotidiano que se revela nas expressões “graças a Deus”, “Deus lhe pague”, “fique com Deus”. Deus para ele não é um problema, mas a solução de seus problemas. Sente-se amparado por santos e santas e por bons espíritos e orixás que ancoram sua vida no meio do sofrimento.

8. Uma das características da cultura brasileira é a alegria e o sentido de humor, que ajudam a aliviar as contradições sociais. Essa alegria nasce da convicção de que a vida vale mais do que qualquer coisa. Por isso deve ser celebrada com festa e diante do fracasso, manter o humor. O efeito é a leveza e o entusiasmo que tantos admiram em nós.

9. Há um casamento que ainda não foi feito no Brasil: entre o saber acadêmico e o saber popular. O saber popular nasce da experiência sofrida, dos mil jeitos de sobreviver com poucos recursos. O saber acadêmico nasce do estudo, bebendo de muitas fontes. Quando esses dois saberes se unirem, seremos invencíveis.

10. O cuidado pertence à essência de toda a vida. Sem o cuidado ela adoece e morre. Com cuidado, é protegida e dura mais. O desafio hoje é entender a política como cuidado do Brasil, de sua gente, da natureza, da educação, da saúde, da justiça. Esse cuidado é a prova de que amamos o nosso país.

11.Uma das marcas do povo brasileiro é sua capacidade de se relacionar com todo mundo, de somar, juntar, sincretizar e sintetizar. Por isso, ele não é intolerante nem dogmático. Gosta e acolhe bem os estrangeiros. Ora, esses valores são fundamentais para uma globalização de rosto humano. Estamos mostrando que ela é possível e a estamos construindo.

12. O Brasil é a maior nação neolatina do mundo. Temos tudo para sermos também a maior civilização dos trópicos, não imperial, mas solidária com todas as nações, porque incorporou em si representantes de 60 povos que para aqui vieram. Nosso desafio é mostrar que o Brasil pode ser, de fato, um pedaço do paraíso que não se perdeu.

* Leonardo Boff é teólogo e escrito. - lboff@leonadoboff.com
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Fonte: Jornal do Brasil