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quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Polícia cerca manifestantes na Consolação durante ato contra reorganização escolar

 
Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO
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Em meio ao ato que pedia a revogação definitiva do projeto de reorganização escolar anunciado pelo governador Geraldo Alckmin, a PM (Polícia Militar) cercou os manifestantes na avenida Consolação na noite desta quarta-feira (9).
 
Bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo foram usadas para conter o grupo em meio aos carros que passavam pela via, uma das mais movimentadas da cidade. A reportagem do R7 viu uma das bombas atiradas pelos policiais atingir a parede de um prédio.
 
Uma frente de PMs vinha por trás dos manifestantes, pela avenida Consolação, enquanto outra se posicionou na esquina seguinte, não deixando nenhuma saída em meio à chuva de explosões e gás lacrimogênio. 
 
A confusão começou cerca de três horas após o início da manifestação na avenida Paulista. Por volta das 21h, o ato passava em frente à Secretaria Estadual da Educação, quando iniciou-se um confronto entre mascarados, que lançaram rojões contra a Tropa de Choque e alguns manifestantes, que revidaram as bombas de gás lacrimogênio e de efeito moral com rojões. Durante o tumulto que se espalhou pela região, pelo menos 13 pessoas ficaram feridas — entre elas, oito PMs — e dez foram detidas. Três estudantes em fuga buscaram abrigo dentro de um teatro, que foi invadido pela PM.
 
Barricadas com lixo e fogo foram erguidas na tentativa de pedir o avanço dos policiais — a maioria, nas avenidas Ipiranga e São Luís. 
 
Na avenida São Luís, testemunhas relataram que um PM teria sacado um arma de fogo e disparado três vezes para cima. Entre os 10 presos, nove foram capturados na rua Itacolomi, próximo da rua da Consolação.
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A reportagem do R7 flagrou policiais militares disparando bombas em um grupo de cinco manifestantes que tentavam se esconder na entrada de um estacionamento na rua Peixoto Gomide, que dá acesso à avenida Paulista. Uma criança, de cerca de seis anos de idade, e duas senhoras moradoras da região reclamaram do ardor nos olhos e da dificuldade de respirar por conta do gás lacrimogênio lançado pela polícia.
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Diversos manifestantes utilizaram vinagre para tentar amenizar a ação das bombas de efeito moral.
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A Secretaria da Segurança Pública classificou como "absolutamente necessária a intervenção da PM" no ato, e chamou a "atitude de grupos de manifestantes" como "política e criminosa".
 
Pacífica
 
A manifestação começou pacífica no vão livre do Masp. Na avenida Paulista, o grupo decidiu manter as invasões dos colégios — segundo a pasta, 136 unidades estavam tomadas por alunos ontem; o movimento chegou a ocupar 196 escolas no Estado. O movimento seguiu da avenida Paulista para a 9 de Julho, passando pelas praças 14 Bis e da Bandeira, viadutos Maria Paula e do Chá, até chegar à praça da República.
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Ao longo do ato, grupos de black blocks atuaram formando cordões para auxiliar na organização do protesto, com o objetivo de impedir que os manifestantes seguissem por ruas que não faziam parte do trajeto. No percurso, o clima foi de protesto contra a política educacional de Alckmin — o governador pretendia fechar no próximo ano 93 escolas, transformar 754 em ciclos únicos e transferir 311 mil alunos, mas suspendeu a reorganização até janeiro para "dialogar" com pais e alunos. 
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segunda-feira, 11 de maio de 2015

Humilhar e ignorar professor pode. Sufocar e ferir não

 
Por Eliane Brun*
 
– "Eles estão atirando em nós".
 
A frase atravessa vídeos sobre o massacre dos professores, executado pela Polícia Militar do Paraná a serviço do Governo de Beto Richa (PSDB), em 29 de abril. Professores desmaiam, professores passam mal com as bombas de gás lacrimogêneo, professores são feridos por balas de borracha. Um cão pit bull da PM arranca pedaços da perna de um cinegrafista. Há sangue na praça de Curitiba, diante da “casa do povo”, a Assembleia Legislativa do Estado. Ao final, há cerca de 200 feridos. Mas mais do que as imagens, é essa frase anônima, em voz feminina, que me atinge com mais força. Porque há nela uma incredulidade, um ponto de interrogação magoado nas entrelinhas e finalmente a compreensão de ter chegado a um ponto de não retorno. Depois de ser humilhada por baixos salários, depois de dar aula em escolas em decomposição, depois de ser xingada por pais e por alunos, agora a PM também podia atirar nela. E atirava. E, se as bombas de gás, as bombas de efeito i-moral não matam, pelo menos não de imediato, a sensação é de morte.
 
O susto causado pela percepção de que não havia mais limite para o que se podia infligir a um professor era a prova de que um professor não era mais um professor. Toda a aura que envolve aquele que ensina se esvaía em sangue na praça de Curitiba. Os PMs, cujos filhos possivelmente são ensinados por aqueles educadores, tinham autorização para atirar. Esse extremo, o da fronteira rompida, causou uma comoção nacional. E vem desenhando o inferno do governador Beto Richa, explicitado por uma crise no Governo paranaense que levou até agora à demissão de dois secretários, o de Educação e o de Segurança Pública, e o comandante da PM.
 
De repente algo se esgarçou e tornou-se inaceitável para uma parte significativa da sociedade. Ainda houve quem tentasse transformar os professores em “vândalos”, a palavra usada para criminalizar aqueles que protestam desde as manifestações de 2013. Ainda houve na imprensa quem chamasse massacre de “confronto”, o truque para transmitir a ideia de que eram forças equivalentes em conflito. Mas as imagens e os relatos eram evidentes demais. As redes sociais na internet mais uma vez cumpriram o papel de amplificar as vozes e garantir um número maior de narrativas para dar conta da complexidade do 29 de abril. Os coletivos de mídia independente tiveram inegável importância na documentação da história em movimento.
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Por que bala de borracha e gás é a ruptura que produz indignação?
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É assustador que alguns tenham tentado justificar, em plena democracia, o massacre em praça pública dos professores do Paraná. Nessa tentativa de criminalizar aqueles que protestam e, ao mesmo tempo, legitimar a ação policial, como se as forças de segurança do Estado não tivessem se comportado como forças criminosas, há algo em curso que precisamos prestar muita atenção. Não existe equívoco de inocência nessa versão. Mas eu gostaria aqui de me deter em algo que também me parece um tanto perturbador, ainda que pelo avesso. É sinal de esperança que grande parte da sociedade brasileira, na qual me incluo, se comova diante da violência contra os professores. Não há dúvida sobre isso. Mas cabem pelo menos duas perguntas. A primeira é: por que este é o limite que produz indignação? A segunda: o quanto o que se tornou visível apenas revela e reforça a invisibilidade maior? Quando testemunho as manifestações de repúdio ao massacre de Curitiba, sinto esse misto de esperança e de incômodo. Esperança pelos motivos óbvios. Quem sabe não acordamos, todos nós, para o buraco da educação no Brasil? Inclusive porque a perda de popularidade do governador Beto Richa e a crise instalada no Governo virou um pesadelo bem vivo para o restante dos governantes.
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Agora, o incômodo. O que esse limite revela sobre o que não é limite? É louvável que as pessoas se revoltem ao ver professores sangrando ou desmaiando ou sendo ameaçados por cães pit bull. Se não nos revoltássemos nem com isso seria ainda mais dramático. Mas por que testemunhar durante décadas professores brasileiros, dos diversos estados do país, ganhando um salário incompatível com uma vida digna é um fato com o qual parece ser possível conviver, tão possível que chegamos a esse ponto depois de 30 anos de democracia? Por que escolas caindo literalmente aos pedaços, naufragando a cada chuva, numa materialização explícita da situação crônica da educação pública, é algo com o qual a maioria se acostuma? Por que o fato de os professores serem ameaçados por alunos e às vezes por pais de alunos em salas de aula, num confronto entre desesperados, uma versão urbana da guerra dos miseráveis que atravessa os rincões do Brasil, é algo que se tolera?
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Em resumo: pode pagar salário indecente, pode botar gente pra ensinar e gente pra ser ensinado debaixo de um teto que pode cair, pode quase tudo. Só não pode ferir com balas de borracha e sufocar com bombas de gás lacrimogêneo. Ah, pit bull também pega mal. Bem, isso os governantes acabaram de aprender que não podem fazer sem provocar repúdio dos eleitores. Já o resto... Talvez nesse sentido possa se justificar uma certa perplexidade da PM, do Governo paranaense e de alguns setores da sociedade brasileira e da imprensa tradicional: como assim, não pode bater nesses “baderneiros” que deveriam estar na sala de aula e não na praça protestando? Não pode descer o cacete nesses “vândalos” que têm o desplante de achar que a casa do povo é do povo?
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Ao menos descobriu-se que há um limite para o que se pode infligir a um professor, uma fronteira demarcada pela reação da sociedade ao massacre de Curitiba. Mas que limite sem-vergonha o nosso. Qualquer um, em qualquer classe social, em qualquer esfera de poder vai repetir que “a educação deve ser prioridade” ou que “a educação é o maior desafio para o país” ou que “sem melhorar a educação o Brasil jamais será um país desenvolvido”. É um consenso, quase uma platitude. Mas, de novo, é um consenso bem sem-vergonha. É o consenso mais vazio do Brasil contemporâneo, é quase uma flatulência. Que não se perceba o quanto fede é só mais um sinal dessa hipocrisia de salão.
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De fato, uma boa parte daqueles que têm voz e poder de pressão para mudar essa situação está pouco se importando. Porque “a elite brasileira é burra”, como já disse aqui neste espaço meu colega Luiz Ruffato. Principalmente porque a elite brasileira acredita que seus filhos estão a salvo. Essa ilusão de que os “meus” filhos estão salvos, já dos filhos dos “outros” eu sinto pena, lamento, desculpe aí, queria sinceramente que fosse diferente, mas não me incomodo o suficiente para fazer disso uma grande questão na minha vida. Afinal, quem tem tempo pra isso tendo que ralar para pagar os preços exorbitantes de uma escola privada que transforma educação em mercadoria cara?
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Inclusão social no Brasil significa entrar no barco dos que podem se salvar. A classe média acredita que seus filhos estão a salvo e uma parcela daqueles que ascenderam, na década passada, ao que se chama de Classe C fez um grande esforço para matricular seus filhos em escolas particulares assim que a situação financeira permitiu. Filho em escola privada – e portanto supostamente a salvo da péssima educação pública – é parte do que significa ser classe média no Brasil. Dos mais ricos, nem se fala.
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É óbvio – ou deveria ser – que a má qualidade da educação oferecida a essa entidade chamada “povo brasileiro” em algum momento vai afetar os privilégios dos mais ricos. Mão de obra desqualificada é um problema sério no Brasil, com impacto em qualquer projeção de futuro. Então, ainda que por egoísmo ou por pragmatismo, a elite econômica deveria se preocupar, o que já vem acontecendo com bem poucos empresários, mas a preocupação ainda é imensamente menor do que as dimensões da catástrofe. Talvez houvesse uma mudança real de posição se as pessoas percebessem que seus filhos estão menos salvos do que acreditam estar. Primeiro, porque escola privada e educação de qualidade não são sinônimos. Longe disso. Apenas poucas escolas, em geral as mais caras, a elite da elite, têm qualidade reconhecida. Ainda assim, são apenas medianas com relação ao nível de suas similares em países do mundo nos quais a educação é prioridade.
Segundo, educação está longe de ser apenas conteúdo formal. Educação é um processo muito mais complexo, no qual a diversidade das experiências é fundamental. É claro que aquela elite que se habituou por séculos a decodificar a diferença como inferioridade tem dificuldades para compreender a diversidade de experiências como riqueza. Para esta, o diferente era primeiro o escravo, depois o empregado ou o subalterno, alguém com quem não havia nada a aprender, já que a sua única função era servir. Há, porém, uma elite intelectual e uma classe média com outra origem, de quem se poderia esperar uma visão menos estúpida. O que muitos pais não percebem é que a escola privada, como gueto de iguais, é um reprodutor de privilégios, mas também é um reprodutor de ignorâncias. E também um reprodutor de pobrezas não materiais. Num exemplo bem corriqueiro, em algum momento talvez os pais possam perceber que adolescentes que já andaram bastante pelo mundo em viagens protegidas mas nunca pegaram um metrô em São Paulo ou um ônibus de linha em qualquer lugar podem ter alguma dificuldade em lidar com a vida como ela é. Porque a vida como ela é chega para todos em algum momento e em alguma medida. E podem, principalmente, ter perdido um universo de experiências criadoras e criativas não apenas por serem incapazes de cruzar as pontes, mas por nem mesmo desconfiar que é importante cruzá-las.
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Num país com a educação pública em ruínas ninguém está a salvo, nem mesmo os filhos da elite. Ainda que seja óbvio que estes estão bem mais a salvo que todos os outros. O que quero enfatizar é a hipótese de que a ilusão de estar a salvo cumpre um papel decisivo na manutenção das ruínas como ruínas. E na convivência com o que não deveria se poder conviver, na aceitação da indignidade como algo já dado, na tolerância ao intolerável que é a situação dos professores e das escolas no Brasil. O que quero dizer é que a comoção pública diante do massacre de Curitiba, se é louvável, é também sinalizadora da falência da sociedade brasileira, inclusive ética. Já que é pelos limites que também compreendemos a lógica de uma sociedade. E o limite aqui é: pode humilhar um professor, pode pagá-lo mal, pode submetê-lo a condições insalubres de trabalho. Não pode ferir explicitamente seu corpo.
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Vale a pena compreender que a ampliação do acesso à educação formal é muito recente no Brasil. É o salto que deveria ter sido dado e ficou pela metade. Para muitos pais das camadas mais pobres, eles mesmos analfabetos ou filho de analfabetos, só o fato de conseguir matricular o filho numa escola, mesmo que seja uma instituição de má qualidade, já é um avanço. Como tem sido para os pais de Classe C ter um filho com diploma universitário, mesmo que de uma faculdade de terceira linha.
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A saída encontrada pelos mais pobres, numa lição aprendida com a classe média tradicional, é individual. Por isso, uma das primeiras medidas de ascensão social é reproduzir o ciclo: matricular o filho numa escola privada, deixando a pública para os mais fragilizados, os menos visíveis, os com pouca ou nenhuma voz. O degrau seguinte daquele que historicamente foi submetido não é se tornar cidadão, mas cliente. Parece mais fácil aderir à lógica de mercado. Quem ainda não conseguiu fazer a conversão, almeja fazê-la. Acolhe a versão perversa de que a melhora está na sua mão, de que é o pai e a mãe de família que precisam mudar de classe se quiserem dar uma boa educação aos filhos.
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No Brasil ainda infectado pela mentalidade de Casa Grande e Senzala, tantas vezes reatualizada para continuar em vigor, ainda é difícil para muitos compreender a educação como o direito fundamental que é. E cobrá-lo do Estado pelo caminho da cidadania. É também por conta dessa mentalidade, na qual a qualidade da educação vira um problema com solução individual e privada, e não uma luta pública e coletiva, que a revolta é abafada e os professores vão se convertendo em párias, esvaziados de dignidade, lugar e sentido.
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É assim que caminha o “Brasil, pátria educadora”, país que tem um dos piores salários de professor do mundo. O lema do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff (PT) apenas mais um sinal do absurdo, de uma espécie de realismo de perdição. A tensão, porém, existe. E é grande. O fato de as escolas públicas sofrerem constantes depredações, se é sinal da violência crescente, é também sinal de que a escola falha como um lugar de acolhimento para os conflitos e também como espaço para a construção de sentidos e para a qualificação do desejo. Ainda que as causas sejam várias e complexas, é bastante óbvio que, sem outros canais para expressar a traição de uma educação que não educa, resta a violência mais primária. Também porque a escola pública, que deveria dar condições de representação, não representa. E assim vai fracassando ao ser reduzida a uma tentativa perversa de conter a tensão causada pela fratura racial brasileira.
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A depredação das escolas por alunos é também uma resposta tortuosa à depredação original, a do Estado, que deixa as escolas apodrecerem, dando provas evidentes de que aquele que lá está é considerado cidadão de segunda ou terceira categoria. A violência direta de alunos e, às vezes, também de pais de alunos contra professores é também o sinal de que a lição dada pelo Estado foi bem compreendida: professor vale pouco, quase nada.
Enquanto alunos e professores se violentam mutuamente, aqueles que têm a responsabilidade de mudar essa situação não são incomodados. É conveniente que as vítimas se agridam entre si, muitas vezes dentro de escolas cada vez mais parecidas com bunkers para se proteger da comunidade, o que em si já expõe o tamanho da tragédia. Se essa realidade ultrapassa os muros da escola para ocupar espaços geográfica e simbolicamente mais centrais, chama-se a PM. Que os policiais militares, também eles servidores mal pagos do Estado, façam o serviço sujo. E então homens públicos como Beto Richa sentem-se à vontade para declarar, rosto compungido: “Não tem ninguém mais ferido do que eu. Eu estou ferido na alma. O mais prejudicado hoje sou eu”.
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Não, governador. Mas não mesmo. Valeu a tentativa, mas não vai colar.
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Agora, a segunda pergunta que lancei no início desse artigo, e que diz respeito ao jogo entre o visível e o invisível. Ou, repetindo: o quanto o que se tornou visível apenas revela e reforça a invisibilidade de fundo? O sangue dos professores no massacre de Curitiba os tornou visíveis para o país, mas essa visibilidade é um tanto ilusória. Neste momento, greves de professores esvaziam salas de aula em vários estados e municípios brasileiros. E cadê a surpresa? Cadê o susto? Cadê as manchetes? Cadê a indignação? É muito menor do que o bom senso e a catástrofe educacional brasileira sugeririam.
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Por isso. Porque pode. Na prática tornou-se aceitável que os mais pobres fiquem sem aula ou tenham educação de má qualidade. Só não pode é sufocar professor com gás e ferir professor com bala de borracha no centro. Aí passa dos limites. Aí exagerou, né, tio. Aí a sociedade grita. Não deixa de ser uma versão do “estupra mas não mata”.
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Talvez o paradigma seja o estado de São Paulo, governado há mais de 20 anos pelo PSDB. Em São Paulo, os professores estão em greve há quase dois meses, mas o governador Geraldo Alckmin chegou a afirmar: “Na realidade não existe greve de professores”. Faltou explicitar em qual realidade.
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Geraldo Alckmin é talvez o político que mais mereça a atenção do país no momento, mais até mesmo do que seu colega Beto Richa. Subestimado com o apelido de “picolé de chuchu”, o que apontaria uma suposta falta de personalidade, parece ser de longe uma das criaturas políticas mais nebulosas do Brasil atual. Sobre Alckmin, a academia deveria estar escrevendo teses, e a imprensa, perfis de peso. O apelido não tem nenhum lastro na prática concreta do Governo.
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O governador de São Paulo escolheu na sua expressão pública, no trato com a população e com a imprensa, a política da negação. O que prejudica sua imagem e seus ambiciosos planos eleitorais não existe. Não existe racionamento de água, não existe greve dos professores. E, o mais surpreendente: funciona. Geraldo Alckmin se reelegeu no primeiro turno, em plena crise hídrica, dizendo que não existia crise. Agora, enfrenta a greve dos professores com a mesma fleuma. Enquanto Beto Richa, que começava a se tornar um expoente do PSDB, mandou a PM massacrar professores, Alckmin prefere fingir que os professores em greve não existem. Onde está a maior perversão? Ou a maior esperteza? Beto Richa com a popularidade em queda livre, chamado de “Rixa” e até de “Ritler” em artigos e posts nas redes sociais; Alckmin, o “picolé de chuchu”, avançando, apesar de todas as crises, olhos fixos na eleição presidencial de 2018.
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Só posso sugerir que Geraldo Alckmin conhece bem seus eleitores.
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* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum. Fonte: El País - http://brasil.elpais.com/brasil/2015/05/11/opinion/1431351138_436101.html

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Sou professora. Estou em greve. E explico o porquê

Tem gente cantando 'o professor é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo' nas Assembleias. Tem gente discutindo a importância de uma escola pública de qualidade. Por isso, dessa vez estou acreditando firmemente que 'não tem arrego'. (23/04/2015)
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Por Renata Hummel, professora de sociologia na rede estadual paulista
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Sou professora do Estado de SP desde 2009. E já mergulhei na divisão em “categorias”. Entrei como “categoria L”, ou seja, não-concursada, e pegava apenas aulas que “sobravam” dos efetivos. Essa categoria não existe mais, foi substituída pela “categoria O”, onde está a maioria dos contratados. A categoria “O” é o que há de mais precário na rede: só pode ter duas faltas por ano, não tem direito a usar a assistência médica do estado (Iamspe), não tem direito à aposentadoria profissional (SPPrev), após um ano de contrato deve cumprir “geladeira” por 40 dias, e após dois anos de contrato deve cumprir a “duzentena” (200 dias sem poder pegar aula, ou seja, quase um ano forçadamente desempregado). Nessa situação de “O”, estão “só” cerca de 50 mil professores da rede estadual. Como alguns colegas me disseram: para o governo, “somos uma sopa de letrinhas”.
 
Está bom ou quer mais? Tem mais.
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Mídia Ninja 
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A gente leva um susto quando entra na rede. Na licenciatura, muito professor (que está sem entrar na sala de aula de ensino fundamental e médio há uns 15 anos) nos diz que o problema da escola pública são as aulas “tradicionais”, sem imaginação, sem criatividade. Que o problema está na forma de ensinar, “conteudista” (com “decoreba”) e não “construtivista” e por aí vai.
 
Não é que essas coisas não sejam problemas, porém o buraco é mais embaixo. Vou explicar melhor: é certo que é difícil falar de Revolução Francesa para jovens que estão mais interessados em outras coisas (em muitas outras coisas), e que não veem como saber algo que aconteceu em 1789 possa fazer alguma diferença em 2015, por exemplo. Mas mais difícil ainda é conseguir falar 5 minutos em uma sala lotada com 40 jovens ou mais, em um dia de verão, com um ventilador apenas funcionando e sem água nas torneiras.
 
É complicado explicar como funcionam os “três poderes” no Brasil enquanto grande parte dos estudantes insiste que “político é tudo ladrão” e que por isso não interessa nem saber como funciona o sistema, “pois só o que eles fazem é roubar”. Mas mais complicado ainda é lidar com bombas que explodem nos banheiros, brigas por motivos fúteis (escapei algumas vezes, e por pouco, de cadeiradas e de um soco na cara), fogo quase diário nas lixeiras, xingamentos variados (muitas vezes vindos dos pais dos alunos e não dos alunos), reclamações da coordenação e da direção de que você “não consegue controlar a sala”, como se esse fosse o único objetivo da nossa formação e trabalho.
 
O buraco é mais embaixo quando você tem que lidar com alunos especiais em sala sem qualquer formação ou material próprio para isso (e junto com outros 40 jovens pedindo atenção); quando não tem como imprimir textos para leitura, imagens, ou mesmo provas, porque não tem toner nem folha de papel, e aí você imprime com seu salário; quando você tem que disputar a tapa com outros professores a única sala de vídeo que há na escola; quando você quer trabalhar em conjunto com outras disciplinas, mas não há tempo para conversar com os outros professores; quando o mato da escola está altíssimo e não tem verba para cortar; quando não tem papel higiênico; quando ninguém limpou as salas porque as moças da limpeza são terceirizadas, a empresa declarou falência e elas não recebem salário há dois meses; quando a cozinha foi terceirizada e enquanto não chegam as novas trabalhadoras precarizadas os alunos têm que comer bolachas com manteiga; quando mais da metade de seus colegas toma estimulante ou fluoxetina para aguentar o tranco de dar aulas em duas ou três escolas diferentes, das 7h da matina às 23h; quando seu salário, mesmo trabalhando em duas escolas diferentes, cerca de 40 horas por semana (40 horas por semana são as cumpridas na escola, não as de preparação e planejamento de aulas, correção de trabalhos – essas, me arrisco a dizer, ultrapassam esse tempo em umas 15 horas a mais), com cerca de 700 alunos, não chega a R$ 2.600.
Está bom ou quer mais? Tem mais.
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Mídia Ninja
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Este ano, a situação que já era essa que contei acima, piorou. O governador Geraldo Alckmin, dando continuidade ao cuidadoso processo de destruição da escola pública iniciado nos governos anteriores, fechou cerca de 3.000 salas de aula (qualquer sala com menos de 30 alunos inscritos no começo do ano foi fechada e seus alunos redistribuídos em outras), extinguiu cargos de coordenação, remanejou funcionários que tinham mais de 20 anos de escola (na minha escola, a “Tia Cris“, funcionária de gerações e gerações na escola, foi remanejada para outra, e a choradeira que assisti, entre alunos e professores, foi de cortar o coração), cortou verbas (de pintura, jardinagem, folhas de sulfite, papel higiênico, sabonete, toner, consertos em geral, infraestrutura das salas, etc), forçou a duzentena na “categoria O” e decretou “reajuste zero” para os professores, sem cobrir sequer a inflação do período.
Quer mais ou está bom?
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Ah, não tem como esquecer o famigerado “bônus”, cópia bizarra de uma política norte-americana de premiação de professores conforme resultados de alunos, resultado esse medido em uma prova apenas (ora, mas não éramos construtivistas?). Um bônus que pune escolas com problemas sérios (culpa dos professores?), e premia apenas parte da rede, como se apenas alguns colegas tivessem trabalhado e outros não. Dito isso, que solução temos nós, profissionais da educação, a não ser entrar em greve?
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Entrar em greve significa ter desconto de salário, ter faltas no prontuário, ter que repor as aulas em sábados, contraturnos ou recesso, ouvir de pais e alunos que “professor ganha bem, tem férias de 30 dias e reclama de barriga cheia”, ouvir de colegas de trabalho que “professor grevista gosta é de ficar dormindo em casa enquanto os outros trabalham”, visitar escolas com comando de greve e ter que explicar o que está fazendo para os policiais que a diretora chamou (não aconteceu comigo, mas com vários colegas), acompanhar as negociações na Assembleia Legislativa e na Secretaria de Educação, aguardando horas na chuva para ver o que o governo ofereceu e sair de lá chateado porque não querem nem conversar, ir a todas as Assembleias na sexta, com mais de 60 mil professores, e nenhuma TV ou jornal dar sequer uma linha (e quando dá, não escuta nenhum professor, apenas reproduz a pauta do governo).
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Entrar em greve é receber também apoio de muita gente, inclusive alunos, que quando resolvem entrar na briga também (faltando no dia das Assembleias, criando debates e discussão de ideias, acompanhando os passos dos professores) sofrem repressão nas escolas (alguns colegas marcam provas justamente nesse dia, algumas direções recusam os pedidos de debate dos alunos, alguns chegam a receber advertências e telefonemas para os pais), com direções e supervisões (que em maioria são cargos indicados) que nos acusam de “fazer a cabeça” dos estudantes ou de “atrapalhar” o aprendizado.
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Entrar em greve é ter que lidar com a desconfiança no principal sindicato (enquanto os outros sindicatos se reúnem secretamente com o governo no meio da greve), pois a sua presidente terminou uma greve em 2013 contra a vontade de grande parte dos professores, aceitando migalhas do governo: o fim da quarentena, um concurso público e a inclusão do “categoria O” no Iamspe, dos quais o governo só cumpriu um (e mesmo assim, precariamente, pois grande parte dos professores que iriam ser chamados ainda não foram e estão trabalhando como contratados). É ter que estar com um olho no governo e outro no sindicato. E, mesmo assim, com tudo isso e apesar de tudo isso: estamos em greve. Estou em greve.
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Mídia Ninja 
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Dessa vez, tudo parece diferente das outras: tem muita gente nas redes sociais nos ouvindo (embora na imprensa tradicional tudo continue como sempre foi), nos apoiando, tem muito aluno participando, tem muito colega que disse que nunca mais parava por causa do sindicato, parado.
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Tem muita gente exigindo uma postura firme do sindicato, da presidente, dos partidos. Tem gente cantando “o professor é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo” nas Assembleias. Tem gente discutindo a importância de uma escola pública de qualidade. Por isso, dessa vez estou acreditando firmemente que “não tem arrego”.
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Escrevo este texto na véspera da negociação com o governo (que se encerrou no início da tarde de quinta-feira 23 de abril e não resultou em nenhum avanço) e da nossa importante assembleia de sexta. As definições dessa semana não apenas podem decidir o futuro da categoria de professores, mas o futuro da escola pública. Aguardemos.
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segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Rolezinhos: O que estes jovens estão “roubando” da classe média brasileira - por Eliane Brum

Por Eliane Brum.*
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O Natal de 2013 ficará marcado como aquele em que o Brasil tratou garotos pobres, a maioria deles negros, como bandidos, por terem ousado se divertir nos shoppings onde a classe média faz as compras de fim de ano. Pelas redes sociais, centenas, às vezes milhares de jovens, combinavam o que chamam de “rolezinho”, em shopping próximos de suas comunidades, para “zoar, dar uns beijos, rolar umas paqueras” ou “tumultuar, pegar geral, se divertir, sem roubos”. No sábado, 14, dezenas entraram no Shopping Internacional de Guarulhos, cantando refrões de funk da ostentação. Não roubaram, não destruíram, não portavam drogas, mas, mesmo assim, 23 deles foram levados até a delegacia, sem que nada justificasse a detenção. Neste domingo, 22, no Shopping Interlagos, garotos foram revistados na chegada por um forte esquema policial: segundo a imprensa, uma base móvel e quatro camburões para a revista, outras quatro unidades da Polícia Militar, uma do GOE (Grupo de Operações Especiais) e cinco carros de segurança particular para montar guarda. Vários jovens foram “convidados” a se retirar do prédio, por exibirem uma aparência de funkeiros, como dois irmãos que empurravam o pai, amputado, numa cadeira de rodas. De novo, nenhum furto foi registrado. No sábado, 21, a polícia, chamada pela administração do Shopping Campo Limpo, não constatou nenhum “tumulto”, mas viaturas da Força Tática e motos da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) permaneceram no estacionamento para inibir o rolezinho e policiais entraram no shopping com armas de balas de borracha e bombas de gás.
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Se não há crime, por que a juventude pobre e negra das periferias da Grande São Paulo está sendo criminalizada?
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Primeiro, por causa do passo para dentro. Os shoppings foram construídos para mantê-los do lado de fora e, de repente, eles ousaram superar a margem e entrar. E reivindicando algo transgressor para jovens negros e pobres, no imaginário nacional: divertir-se fora dos limites do gueto. E desejar objetos de consumo. Não geladeiras e TVs de tela plana, símbolos da chamada classe C ou “nova classe média”, parcela da população que ascendeu com a ampliação de renda no governo Lula, mas marcas de luxo, as grandes grifes internacionais, aqueles que se pretendem exclusivas para uma elite, em geral branca. Antes, em 7 de dezembro, cerca de 6 mil jovens haviam ocupado o estacionamento do Shopping Metrô Itaquera, e também foram reprimidos. Vários rolezinhos foram marcados pelas redes sociais em diferentes shoppings da região metropolitana de São Paulo até o final de janeiro, mas, com medo da repressão, muitos têm sido cancelados. Seus organizadores, jovens que trabalham em serviços como o de office-boy e ajudante geral, temem perder o emprego ao serem detidos pela polícia por estarem onde supostamente não deveriam estar – numa lei não escrita, mas sempre cumprida no Brasil. Seguranças dos shoppings foram orientados a monitorar qualquer jovem “suspeito” que esteja diante de uma vitrine, mesmo que sozinho, desejando óculos da Oakley ou tênis Mizuno, dois dos ícones dos funkeiros da ostentação. Às vésperas do Natal, o Brasil mostra a face deformada do seu racismo. E precisa encará-la, porque racismo, sim, é crime.
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“Eita porra, que cheiro de maconha” foi o refrão cantado pelos jovens ao entrarem no Shopping Internacional de Guarulhos. O funk é de MC Daleste, que afirma no nome artístico a região onde nasceu e se criou, a zona leste, a mais pobre de São Paulo, aquela que todo o verão naufraga com as chuvas, por obras que os sucessivos governos sempre adiam, esmagando sonhos, soterrando casas, matando adultos e crianças. Daleste morreu assassinado em julho com um tiro no peito durante um show em Campinas – e assassinato é a primeira causa de morte dos jovens negros e pobres no Brasil, como os que ocuparam o Shopping Internacional de Guarulhos. A polícia reprimiu, os lojistas fecharam as lojas, a clientela correu. Uma das frequentadores do shopping disse a frase-símbolo à repórter Laura Capriglione, na Folha de S. Paulo: “Tem de proibir este tipo de maloqueiro de entrar num lugar como este”. Nos dias que se seguiram, em diferentes sites de imprensa, leitores assim definiram os “rolezeiros” (veja entrevista abaixo): “maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Negros emerge aqui como palavra de ofensa.
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O funk da ostentação, surgido na Baixada Santista e Região Metropolitana de São Paulo nos últimos anos, evoca o consumo, o luxo, o dinheiro e o prazer que tudo isso dá. Em seus clipes, os MCs aparecem com correntes e anéis de ouro, vestidos com roupas de grife, em carros caros, cercado por mulheres com muita bunda e pouca roupa. Diferentemente do núcleo duro do hip hop paulista dos ano 80 e 90, que negava o sistema, e também do movimento de literatura periférica e marginal que, no início dos anos 2000, defendia que, se é para consumir, que se compre as marcas produzidas pela periferia, para a periferia, o funk da ostentação coloca os jovens, ainda que para a maioria só pelo imaginário, em cenários até então reservados para a juventude branca das classes média e alta. Esta, talvez, seja a sua transgressão. Em seus clipes, os MCs têm vida de rico, com todos os signos dos ricos. Graças ao sucesso de seu funk nas comunidades, muitos MCs enriqueceram de fato e tiveram acesso ao mundo que celebravam.
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Esta exaltação do luxo e do consumo, interpretada como adesão ao sistema, tornou o funk da ostentação desconfortável para uma parcela dos intelectuais brasileiros e mesmo para parte das lideranças culturais das periferias de São Paulo. Agora, os rolezinhos – e a repressão que se seguiu a eles – deram a esta vertente do funk uma marca de insurgência, celebrada nos últimos dias por vozes da esquerda. Ao ocupar os shoppings, a juventude pobre e negra das periferias não estava apenas se apropriando dos valores simbólicos, como já fazia pelas letras do funk da ostentação, mas também dos espaços físicos, o que marca uma diferença. E, para alguns setores da sociedade, adiciona um conteúdo perigoso àquele que já foi chamado de “funk do bem”.
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A resposta violenta da administração dos shoppings, das autoridades públicas, da clientela e de parte da mídia demonstra que esses atores decodificaram a entrada da juventude das periferias nos shoppings como uma violência. Mas a violência era justamente o fato de não estarem lá para roubar, o único lugar em que se acostumaram a enxergar jovens negros e pobres. Então, como encaixá-los, em que lugar colocá-los? Preferiram concluir que havia a intenção de furtar e destruir, o que era mais fácil de aceitar do que admitir que apenas queriam se divertir nos mesmos lugares da classe média, desejando os mesmo objetos de consumo que ela. Levaram uma parte dos rolezeiros para a delegacia. Ainda que tivessem de soltá-los logo depois, porque nada de fato havia para mantê-los ali, o ato já estigmatizou-os e assinalará suas vidas, como historicamente se fez com os negros e pobres no Brasil.
Jefferson Luís, 20 anos, organizador do rolezinho do Shopping Internacional de Guarulhos, foi detido, é alvo de inquérito policial, sua mãe chorou e ele acabou cancelando outro rolezinho já marcado por medo de ser ainda mais massacrado. Ajudante geral de uma empresa, economizou um mês de salário para comprar a corrente dourada que ostenta no pescoço. Jefferson disse ao jornal O Globo: “Não seria um protesto, seria uma resposta à opressão. Não dá para ficar em casa trancado”.
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Por esta subversão, ele não será perdoado. Os jovens negros e pobres das periferias de São Paulo, em vez de se contentarem em trabalhar na construção civil e em serviços subalternos das empresas de segunda a sexta, e ficar trancados em casas sem saneamento no fim de semana, querem também se divertir. Zoar, como dizem. A classe média até aceita que queiram pão, que queiram geladeira, sente-se mais incomodada quando lotam os aeroportos, mas se divertir – e nos shoppings? Mais uma frase de Jefferson Luiz: “Se eu tivesse um quarto só pra mim hoje já seria uma ostentação”. Ele divide um cômodo na periferia de Guarulhos com oito pessoas.
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Neste Natal, os funkeiros da ostentação parecem ter virado os novos “vândalos”, como são chamados todos os manifestantes que, nos protestos, não se comportam dentro da etiqueta estabelecida pelas autoridades instituídas e por parte da mídia. Nas primeiras notícias da imprensa, o rolezinho do Shopping Internacional de Guarulhos foi tachado de “arrastão”. Mas não havia arrastão nenhum. O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira faz uma provocação precisa: “Se fosse um grupo numeroso de jovens brancos de classe média, como aconteceu várias vezes, seria interpretado como um flash mob?”.
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Por que os administradores dos shoppings, polícia, parte da mídia e clientela só conseguem enquadrar um grupo de jovens negros e pobres dentro de um shopping como “arrastão”? Há várias respostas possíveis. Pereira propõe uma bastante aguda: “Será que a classe média entende que os jovens estão ‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem?”. Seria este o “roubo” imperdoável, que colocou as forças de repressão na porta dos shoppings, para impedir a entrada de garotos desarmados que queriam zoar, dar uns beijos e cobiçar seus objetos de desejo nas vitrines?
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Para nos ajudar a pensar sobre os significados do rolezinho e do funk da ostentação, entrevisto Alexandre Barbosa Pereira nesta coluna. Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele dedica-se a pesquisar as manifestações culturais das periferias paulistas. Em seu mestrado, percorreu o mundo da pichação. No doutorado, mergulhou nas escolas públicas para compreender o que é “zoar”. Desde 2012, pesquisa o funk da ostentação. Mesmo que os rolezinhos, pela força da repressão, se encerrem neste Natal, há muito que precisamos compreender sobre o que dizem seus protagonistas – e sobre o que a reação violenta contra eles diz da sociedade brasileira.
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- O rolezinho aparece ligado ao funk da ostentação. Em que medida há, de fato, essa ligação?
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Alexandre Barbosa Pereira – O funk ostentação é uma releitura paulista do funk carioca, feita a partir da Baixada Santista e da Região Metropolitana de São Paulo, na qual as letras passam a ter a seguinte temática: dinheiro, grifes, carros, bebidas e mulheres. Não se fala mais diretamente de crime, drogas ou sexo. Os funkeiros dessa vertente começaram a produzir videoclipes inspirados na estética dos videocliples do gangsta rap estadunidense. Mas o mais curioso desse movimento é a virada que os jovens fazem ao mudar a pauta que, até então, era principalmente a criminalidade para o consumo. As músicas deixam de falar de crime para falar de produtos que eles querem consumir. Assim, ao invés de cantarem: “Rouba moto, rouba carro, bandido não anda à pé” (Bonde Sinistro), os funkeiros da vertente ostentação cantam: “Vida é ter um Hyundai e um hornet, dez mil para gastar, rolex, juliet. Melhores kits, vários investimentos. Ah como é bom ser o top do momento” (MC Danado). Deste modo, os MCs começaram a ter mais espaços para cantar em casas noturnas e passaram a produzir videoclipes cada vez mais elaborados, com mais de 20 milhões de acessos no YouTube, o que levou a um sucesso às margens da mídia tradicional. Alguns MCs chegaram a alcançar grande repercussão entre um segmento do público jovem, sem nunca ter aparecido na televisão. Vi meninas chorando por MCs em bailes, mesmo antes de o funk ostentação alcançar o destaque que conseguiu na grande mídia. Surgiram empresas especializadas na produção de clipes no estilo ostentação, como a Kondzilla e a Funk TV, claramente inspirados no gangsta rap, em que os jovens aparecem em carrões e motos, exibindo-se com roupas, dinheiro e mulheres. Uma reflexão interessante a se fazer é como a mídia tradicional, que antes execrava o chamado funk proibidão, que falava de crime, drogas e sexo abertamente, agora começa a elogiar o funk ostentação, denominando-o até como “funk do bem” e ressaltando a trajetória econômica e social ascendente dos MCs.
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Pergunta. Fazendo um parêntese aqui, antes de chegar ao rolezinho, qual é o caminho para um jovem pobre ter acesso ao consumo de luxo, segundo o olhar do funk da ostentação? Esta virada que você mencionou...
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Resposta. Primeiro que esse bem de luxo não é tão de luxo assim, afinal uma garrafa de uísque a 60 ou 80 Reais não é nenhum absurdo. É sempre possível comprar uma réplica daqueles óculos escuros que custam mais de mil reais. Nas casas noturnas de funk que observei, este era o preço. Pensemos num grupo de pelo menos quatro amigos dividindo o valor da compra. Não sai tão caro brincar de ostentar. Agora, tem os carros. Estes sim estão fora do alcance da maioria desses jovens. Mas aí há uma explicação interessante, que Montanha, um produtor e diretor de videoclipes da Funk TV, em Cidade Tiradentes, sabiamente me deu. Ele me disse que as novelas já vendiam uma vida de luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam ao mundo de luxo. Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que aparecem como um mundo de “riqueza” ou de “luxo”, com carros, mansões, roupas de marcas mais caras. Os jovens agora poderiam, segundo afirmou Montanha, ver-se como parte de um mundo de prestígio, daí a grande identificação. O crime pode ser um caminho para acessar esse mundo de luxo ou o que esses jovens entendem por um mundo de luxo, mas não é único. Esta é a lição que muitos MCs de funk têm tentando passar em suas falas na grande mídia. Eles de certa forma mostram um outro caminho, que, aliás, sempre esteve presente para esses jovens da periferia: tornar-se famoso pela música ou pelo futebol. Aliás, esses são caminhos que aparecem como os mais possíveis para os jovens negros e pobres das periferias do país imaginarem um futuro de sucesso. Num mundo em que há uma forte divisão entre trabalho intelectual e manual, com a extrema valorização do primeiro, o uso do corpo em formas lúdicas como meio de ganhar dinheiro mostra-se como opção para uma transformação da vida. “Crime, futebol, música, caralho, eu também não consegui fugir disso aí”, esse é o Negro Drama cantado pelos Racionais MC’s. Os MCs de funk ostentação estão tentando dizer que é possível construir uma vida de sucesso pela música. E o que era ficção, os videoclipes com carros importados emprestados ou alugados, com dinheiro cenográfico jogado para o ar, começa a tornar-se realidade. Muitos deles começam a ganhar uma quantidade razoável de dinheiro com os shows. Acho que a ideia da imaginação como uma força criativa apresenta-se fortemente no funk ostentação.
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Será que a classe média entende que os jovens estão ‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem? Direito que, por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito tempo.”
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Por outro lado, é preciso destacar que masculinidades pautadas pelo desejo de possuir um automóvel ou uma motocicleta não foram construídas pelo funk ostentação. Já existia há um tempo. Para os meninos da periferia, possuir um bom carro, bonito e potente, é uma das metas principais de vida. A posse do carro é, no imaginário desses jovens, mas também da população em geral, um indicativo de sucesso econômico e social, garantindo, consequentemente, sucesso com as mulheres. Neste caldo cultural, o consumo é cada vez mais exaltado como espaço de afirmação e de reconhecimento para os jovens. É, inclusive, bastante complexa a forma como se dá a relação entre criminalidade e consumo no funk. Na virada que produziram, parece que há o recado de que essas duas ações sociais podem constituir dois lados de uma mesma moeda. Eles não deixam de falar do crime. Acabam citando-o indiretamente, como nas músicas do MC Rodofilho, nas quais ele celebra: “Ai meu deus, como é bom ser vida loka!”. O importante é entender como o crime e o consumo são pautas constantes nas relações de sociabilidade dos jovens da periferia. Os mais pobres também querem que ipads, iphones e automóveis potentes façam parte de seu mundo social. Ainda preciso observar e refletir mais sobre isso, mas acho que tanto no caso do crime, como no do consumo temos que atentar mais para o modo como se dão as relações entre pessoas e coisas. Fico pensando que a busca de realização apenas pelo consumo envolve sentimentos e posturas extremas de um egoísmo hedonista e de um profundo desprezo pelos outros humanos. As mercadorias, ou as coisas almejadas, de certa forma têm conformado as subjetividades contemporâneas. E nessas novas subjetividades, pautadas pelo instantâneo e o instável, parece não haver muito espaço para a solidariedade. Há uma nova tendência na discussão antropológica afirmando que não podemos entender as coisas apenas como representação ou resultado do social. Precisamos pensar também em como as coisas fazem as pessoas e mesmo o social, como as coisas, ou as mercadorias mais desejadas hoje, motivam tanto um consumismo desenfreado, irracional e egoísta, quanto o ingresso de jovens na criminalidade. Sempre fico espantado quando vejo as imagens, em outros países, das pessoas correndo desesperadas para comprar um novo lançamento de smartphone, videogame ou tablet... Mas não só isso, tais coisas também motivam e determinam formas de estar, pensar, relacionar-se e sentir no mundo contemporâneo.
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Penso muito nisso quando parte da classe média critica o consumo desses jovens, dizendo que apenas eles – da classe média que, supostamente, pagaria os impostos – têm direito a consumir, ou se relacionar com certos produtos. Será que, desse modo, a classe média entende que os jovens estão roubando o direito exclusivo de eles consumirem ou de se relacionarem com esses objetos de prestígio? Direito que, por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito tempo?
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Essa crítica pode vir inclusive de certa classe média mais intelectualizada e mesmo com ideias políticas progressistas, mas que acha que sabe o que é melhor para os pobres. Aí fazem a crítica, a partir dos seus ipads e iphones, ao que entendem como um consumo irracional dos mais pobres, que deveriam poupar ao invés de gastar com produtos que não seriam para o nível econômico deles. Enfim, tem aí um jogo de perde e ganha e também de busca de satisfações individuais que envolve o roubo do direito de alguns ao consumo, que é preciso aprofundar para entendermos melhor essas dinâmicas contemporâneas. Todos têm o direito a consumir o que quiserem hoje? E seria viável, hoje, todos consumirem em um alto padrão? Que implicações ambientais teríamos? E se não é sustentável ou viável que todos consumam em tamanha intensidade, por que incentivamos tal consumismo? Com isso, o que quero dizer é que não se pode pensar a relação entre crime e consumo apenas entre os pobres, mas creio que precisamos também olhar para as classes médias e altas e para os crimes que, historicamente, têm sido cometidos contra os mais pobres e o meio ambiente para proteger o consumo dos ricos.
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P. É neste ponto que os rolezinhos aparecem e criam uma tensão das mais reveladoras neste Natal?
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R. Os rolezinhos nos shoppings estão ligados diretamente a esse contexto. Não sei dizer como surgiram efetivamente, mas me parece que despontaram por essas novas associações que as redes sociais permitem fazer, de forma que uma brincadeira possa virar algo sério. De repente, uma convocatória feita na internet pode levar centenas de jovens a se encontrarem num shopping, local onde podem ter acesso a esses bens cantados nas músicas, ainda que apenas por acesso visual. Agora, o que é importante ressaltar é que não foram os rolezinhos nem o funk ostentação que criaram essa relação de fascinação com consumo. Esta já existia há muito tempo. Os Racionais, há mais de dez anos, já cantavam sobre isso, com afirmações como: “Você disse que era bom e a favela ouviu, lá também tem uísque, red bull, tênis nike e fuzil” ou “Fartura alegra o sofredor”
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É importante perceber que os shoppings onde os rolezinhos ocorreram estão em regiões mais periféricas. Eles não têm ido aos templos maiores do consumo de luxo na cidade.”
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P. Algumas análises relacionam os rolezinhos a uma ação afirmativa da juventude negra e pobre, a uma denúncia da opressão e a uma reivindicação de participação, neste caso no mundo do consumo. Como você analisaria este fenômeno tão novo?
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R. Não me arriscaria a dizer que há um movimento político muito claro. Pode indiretamente constituir-se como uma ação afirmativa da juventude negra e pobre. Talvez a tensão que se criou com a criminalização desses jovens, durante os rolezinhos, possa levar a algum tipo de reflexão e ação política maior, mas é difícil prever. Em um livro intitulado Cidadania Insurgente, (o antropólogo americano) James Holston analisa o surgimento das periferias urbanas no Brasil, particularmente em São Paulo, apontando a discriminação contra certas espécies de cidadãos no Brasil. Esse autor mostra como, historicamente, as formulações de cidadania elaboradas pelos mais pobres se deram a partir de sua ocupação dos bairros nas periferias das grandes cidades. Noções e práticas próprias de cidadania que se produziram, ao mesmo tempo, por meio das experiências de tornar-se proprietário, de participar de movimentos sociais por melhorias dos bairros e de ingressar no mercado consumidor. Primeiro se ocupou os bairros, mesmo sem estrutura mínima. Depois, ocorreram as reivindicações pela legalização dos terrenos ocupados. E, enfim, vieram as lutas pela chegada da energia elétrica, saneamento básico e asfalto. Acho sempre muito interessante, em conversas com lideranças antigas dos bairros periféricos de São Paulo, observar que elas indicam a chegada do asfalto como o grande marco de transformação do bairro e a integração deste ao espaço urbano.
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Encaro, portanto, ações como estas, dos rolezinhos, do ponto de vista dessa “cidadania insurgente”, referindo-se a associações de cidadãos que reivindicam um espaço para si e, assim, se contrapõem ao grande discurso hegemônico ou, se não se dissociam do discurso hegemônico, ao menos provocam ruídos nele. Trata-se de uma reivindicação por cidadania, participação política e direitos que, historicamente, foi feita na marra, pelos mais pobres, muitas vezes nas costuras entre o legal e o ilegal, e que começou com a própria ocupação dos bairros na periferia da cidade de São Paulo, como forma de habitar e sobreviver no mundo urbano. Essa cidadania não necessariamente se apresenta como resistência, mas pode também querer, em muitos casos, associar-se ao hegemônico, produzindo dissonâncias.
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O que são o funk ostentação e os rolezinhos se não essa reivindicação dos jovens mais pobres por maior participação na vida social mais ampla pelo consumo? Estas ações culturais parecem situar-se nessa lógica, que não necessariamente se contrapõe ao hegemônico, na medida em que tenta se afirmar pelo consumo, mas provoca um desconforto, um ruído extremamente irritante para aqueles que se pautam por um discurso e uma prática de segregação dos que consideram como seus “outros”.
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P. Como definir este desconforto? O que são os “outros” neste contexto? E que papel estes “outros” desempenham?
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R. O desconforto em ver pobres ocupando um lugar em que não deveriam estar, como o de consumidores de certos produtos que deveriam ser mais exclusivos. É um tipo de espanto, que indaga: “Como eles, que não têm dinheiro, querem consumir produtos que não são para a posição social e econômica deles?”. Estes “outros” são os considerados “subalternos”. Podem ser funkeiros, pobres e pardos da periferia, mas podem ser também as empregadas domésticas, os motoboys, os pichadores, entre outros “outros”, que muitas vezes são utilizados como bode expiatório das frustrações de uma parcela considerável da classe média.
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Há uma tendência de perceber os jovens pobres a partir de três perspectivas: a do bandido, a da vítima e a do herói.”
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Os rolezinhos não são protestos contra o shopping ou o consumo, mas afirmações de: “Queremos estar no mundo do consumo, nos templos do consumo”. Entretanto, por serem jovens pobres de bairros periféricos, negros e pardos em sua maioria, e que ouvem um gênero musical considerado marginal, eles passam a ser vistos e classificados pela maioria dos segmentos da sociedade como bandidos ou marginais. Vamos pensar que, na própria concepção do shopping, não está prevista a presença desse público, ainda mais em grupo e fazendo barulho. Pergunto-me se fosse em um shopping mais nobre, com jovens brancos de classe média alta, vestidos como se espera que um jovem deste estrato social se vista, se a repercussão seria a mesma, se a criminalização seria a mesma. Talvez fosse considerado apenas um flash mob. Há uma tendência, por parcela considerável da classe média, da mídia e do poder público de perceber os jovens pobres a partir de três perspectivas, quase sempre exclusivistas: a do bandido, a da vítima e a do herói.
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P. Como funcionam estas três perspectivas – bandido, vítima e herói?
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R. São muito mais formas de enquadrar esses jovens por aqueles que querem tutelá-los do que categorias assumidas pelos próprios jovens. Por isso, são contextuais. Dependendo da situação e dos atores sociais com quem dialogam, o jovem pode ser entendido a partir de uma dessas categorias. O pichador, por exemplo, é um agente que pode mobilizar todas essas classificações, dependendo do contexto e dos interlocutores: a polícia, a secretaria de cultura, os pesquisadores acadêmicos ou a ONG que quer salvar os jovens da periferia da violência. No caso do funk, por exemplo, já há comentários e mesmo textos de pessoas mais politizadas vendo os rolezinhos como uma ação afirmativa ou extremamente contestatória. Para estes, os protagonistas dos rolezinhos são vítimas que se tornaram heróis. Outros, como a polícia, a administração dos shoppings e a clientela, mas também seus vizinhos, que moram lá nos bairros pobres da periferia, enxergam neles principalmente vilões e mesmo bandidos.
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Jovens como estes que estão nos rolezinhos não necessariamente aceitam se encaixar nesses rótulos, mas, em alguns casos, podem também se encaixar em todos eles ao mesmo tempo. Não se pode simplificar um fenômeno como este. Porém, se pensarmos esse movimento que surge principalmente com o hip hop, de valorizar a periferia como espaço político e de afirmação positiva, é possível ver, sim, ainda que em menor intensidade, uma certa ação política. De dizer: “Somos da quebrada e temos orgulho disso”. Um movimento de reversão do estigma em marca positiva.
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P. Mas há, de fato, uma ação consciente, organizada, com um sentido político prévio? Ou o sentido está sendo construído a partir dos acontecimentos, o que é igualmente legítimo?
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R. Olha, sinceramente, é difícil dizer se há um sentido político, direto, consciente e/ou explícito. Talvez por parte de alguns, mas pelo que vi nas redes sociais, não da maioria. Se o movimento persistir ou tomar outras formas, pode ser que tal sentido político fique mais forte. Por enquanto é difícil analisar esse ponto. O antropólogo (indiano) Arjun Appadurai analisa há algum tempo as mudanças que se processam no mundo por causa do avanço das tecnologias de comunicação e de transporte. Segundo este autor, as pessoas cada vez mais se deslocam no mundo atual, e não apenas fisicamente, mas também e talvez principalmente pela imaginação, por causa de meios de comunicação como a televisão e, mais recentemente, pela internet. Hoje é possível imaginar-se nos mais diferentes lugares do mundo, mas também em diferentes classes sociais. O que são os videoclipes de funk da ostentação que não imagens/imaginações que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a outra classe social ou possuir melhores condições econômicas para o consumo?
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O que são os videoclipes de funk ostentação que não imagens que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a outra classe social?”
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Essa imaginação, segundo esse autor, pode constituir-se como um projeto político compartilhado, mas pode também ser apenas uma fantasia, como algo individualista e egoísta, sem grandes potenciais políticos. Parece-me que o funk da ostentação em São Paulo e movimentos como o dos rolezinhos nos shoppings têm intensamente essas duas potências. Difícil saber se alguma delas irá prevalecer ou tornar-se hegemônica.
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P. A escolha da música do MC Daleste, assassinado num show em Campinas, para o rolezinho promovido no Shopping Internacional de Guarulhos, pode ter um significado a mais?
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R. A escolha da música do MC Daleste na entrada dos jovens no shopping de Guarulhos me pareceu bastante significativa, por vários motivos. Principalmente, porque a morte dele no palco, cantando funk, de certa forma construiu um marco para esse funk da ostentação. O seu assassinato acabou por dar ainda mais visibilidade a esta vertente do funk paulista. MC Daleste cantava proibidão antes e, assim, essa relação confusa entre crime e consumo manifesta-se de modo bastante forte no que o MC Daleste representa. Há no seu próprio nome artístico essa afirmação de um certo orgulho do lugar de onde vem e de ser da periferia, que tanto o funk quanto o hip hop expressam. Não é por acaso que ele é “Da Leste”. Lembremos que Guarulhos também está à leste da Região Metropolitana de São Paulo.
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P. Hoje, uma parte significativa da geração que se criou nas periferias com movimentos contestatórios como o hip hop e a literatura periférica ou marginal tem, pelo funk da ostentação, assumido os valores de consumo das classes médias e alta. Como você analisa este fenômeno e o insere no contexto histórico atual do Brasil?
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R. O que um evento como esse parece evidenciar é, por um lado, esse anseio por consumir e por afirmar-se pelo consumo que esses jovens vêm demonstrando já há algum tempo, pelas letras dos funks, mas que também já é visto no hip hop. Apesar das críticas de certos segmentos do hip hop, não sei se o funk ostentação rompe com o hip hop mais politizado dos anos 1980 e 1990 ou se oferece uma das muitas possíveis continuidades a esse movimento cultural. Parece-me que o funk ostentação é uma releitura paulista, muito influenciada pelo hip hop, do funk carioca. Muitos MCs de funk eram MCs de hip hop, muitos deles, além dos funks, cantam também raps, e músicas dos Racionais são ouvidas nos shows. Trechos de letras de músicas dos Racionais podem ser encontrados facilmente nas letras do funk. Agora, o fato é que o funk não é tão marcado pela questão política como o hip hop. O Montanha, de Cidade Tiradentes, disse-me algo interessante, certa vez, de que, na verdade, o hip hop ofereceria um espaço de expressão política que faltava aos jovens, já o funk é um espaço de lazer e de sociabilidade. Parece-me uma reflexão interessante. Não que o hip hop não possa conter lazer e sociabilidade também, nem o funk, protesto político, mas que as duas vertentes tendem para um dos polos. O funk, aliás, ganhou esse grande espaço junto aos jovens das periferias de São Paulo porque, nessa articulação de um espaço de lazer, configurou-se um espaço para as mulheres que, no hip hop, era mais difícil. As mulheres são presença fundamental nos bailes funks. O protagonismo da dança sempre foi delas. Ainda que os meninos também dancem e as meninas participem cada vez mais como MCs. O hip hop sempre foi muito mais masculino, da dança ao estilo de se vestir.
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P. Mas qual é a diferença, na sua opinião, entre a forma como, por exemplo, os Racionais falam em consumo e os MCs da ostentação falam de consumo?
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Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as relações sociais fomentadas na contemporaneidade que se pautam cada vez mais pela busca do reconhecimento pelo consumo, pela posse de bens.”
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R. Há aí duas perspectivas. Quando digo que os Racionais já cantavam isso, quero dizer que eles já identificavam essa necessidade de consumir da juventude. E de consumir o que eles achavam que era bom, nada de consumo consciente. Por isso digo que os Racionais já faziam, há mais de dez anos, uma leitura desse anseio por consumir dos jovens pobres. Por outro lado, há essa dimensão de movimentos como o dos escritores da periferia, promovendo produtos da periferia, pela periferia. O funk ostentação começa sem se preocupar com essa questão diretamente. Ele não tem dor na consciência por cantar o consumo em suas músicas e aderir ao sistema, por exemplo. Porém, indiretamente, se acaba chegando a um outro ponto, na medida em que uma parcela considerável de jovens da periferia passa a possuir algum tipo de renda com a produção do funk. Sejam os meninos que gravam os videoclipes, os próprios MCs, mas também empresários, produtores, técnicos e mesmo alguns MCs tornando-se empreendedores e criando seus próprios negócios. Como o MC Nego Blue, que observando de perto o sucesso das roupas de grife entre os jovens, criou a Black Blue, uma loja de roupas cujo símbolo é uma carpa colorida. Hoje, além de possuir lojas próprias, já vende suas roupas em lojas multimarcas, ao lado de camisas da Lacoste ou de outras marcas famosas que os meninos procuram, e por um preço muito parecido. Uma das empresas que agencia shows de funk em Cidade Tiradentes chama-se justamente “Nóis por nóis”.
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Os rolezinhos parecem dizer: não apenas queremos consumir, mas queremos ocupar em massa e se divertir aí nos seus shoppings, nos seus ou nos nossos. É importante perceber também que os shoppings onde os eventos ocorreram estão em regiões mais periféricas, provavelmente próximos ao próprio bairro de moradia dos jovens. Por enquanto, eles não têm ido aos templos maiores do consumo de luxo na cidade, na região dos Jardins, Faria Lima, Marginal Pinheiros etc. Pode haver aí também um componente de um termo que surgiu muito forte para mim na pesquisa que fiz em escolas de ensino médio, no meu doutorado, que é a ideia do “zoar”. Eles querem zoar, que é chamar a atenção para si e se divertir, namorar, brincar e, se for preciso, brigar.
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P. Por que, neste momento, o lazer se impõe como uma reivindicação desta geração, acima de questões como saúde, educação e transporte de qualidade?
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R. Acho que não há uma reivindicação política bem formuladinha como acontecia com o hip hop: queremos mais saúde, educação e lazer. Eles simplesmente querem estar nos shoppings para zoar e vão. Não há essa reflexão mais elaborada que o hip hop produz, é mais espontâneo. Esse talvez possa ser um ponto de distinção. E o próprio funk é, por si só, lazer e diversão, um dispositivo poderosíssimo para dançar e motivar paqueras. O zoar pode ser lido como um ato político, mas não me parece intencional. Acho que cria uma tensão que é política, que é de disputa de poder pelos espaços da cidade, mas não há um manifesto pela zoeira ou pelos rolezinhos, como houve, por exemplo, no caso do manifesto da arte periférica dos escritores.
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P. Há também um movimento maior para sair dos guetos e ocupar os guetos da classe média? Em massa e não mais individualmente, como quando um grupo de rap aparecia numa TV, mesmo sendo a MTV, ou um escritor do movimento literário marginal ou periférico publicava numa grande editora? Esta é uma novidade importante?
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R. Acho que abre, sim, para fora do gueto, do bairro onde se vive, mas não para muito longe, pois, afinal, os shoppings para os quais eles vão estão do lado de suas casas. Neste sentido, acho que o hip hop, apesar de falar mais do gueto, abre-se muito mais para fora do gueto, na medida em que conquista um espaço importante nas políticas públicas de cultura, por exemplo.
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É como se a sociedade dissesse: ‘Vocês, pobres, podem consumir, mas ir ao shopping em grandes grupos, só para zoar e cantar funk, aí já é vandalismo’.”
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Claro que esse espaço de lazer é problemático e conflitivo mesmo dentro dos bairros das periferias onde moram esses jovens. Se entrevistarmos os seus vizinhos, certamente a maioria vai se posicionar totalmente favorável à proibição das festas de rua que eles organizam, com som alto que muitas vezes toma a madrugada toda. Por isso, acho importante não tomar o funk nem como um movimento libertador, nem como o grande vilão ou o grande movimento de corrupção da juventude contemporânea, como setores mais moralistas, à esquerda e à direita, tendem a fazer. A questão do consumo também me parece problemática. O desejo pelo consumo sempre existiu. Bem antes do governo Lula, o processo de urbanização induz a esse apego maior ao consumo. Porém, não dá para se negar que houve, nos últimos anos, também uma melhora econômica para segmentos que antes estavam bastante afastados do mercado. Porém, acho que reduzir o sucesso do funk da ostentação a isso é simplificar demais o movimento e esquecer que ocorreram e ocorrem movimentos juvenis parecidos em outras partes do mundo, como o próprio gangsta rap, nos Estados Unidos, no qual os videoclipes se inspiram.
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Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as relações sociais fomentadas na contemporaneidade. É preciso conceder aos jovens, e não apenas aos pobres, mas aos de classe média e alta também, outros espaços de reconhecimento e de estabelecimento de relações sociais que não sejam pautados pela afirmação por meio da posse e do consumo de bens. Porque, afinal, como dizem os Racionais, mais uma vez: “Quem não quer brilhar, quem não? Mostra quem. Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém”. De repente, para alguns, ter um tênis caro, um smartphone de última geração ou ir ao shopping para zoar, pode ser uma forma encontrada para tentar brilhar.
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P. Ao ocupar os shoppings, os adeptos do funk da ostentação estariam promovendo sua primeira atitude de insurgência contra o sistema, no sentido de: “Vou ocupar o espaço que me é negado ou onde não me querem”. É isso? Ou as próprias letras das músicas, interpretadas, em geral, como adesão ao sistema, já seriam, de fato, uma insurgência, na medida que se apropriam, simbolicamente, dos valores da elite e da classe média e, agora, com os rolezinhos, também de seus espaços físicos?
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R. Sim, acho que essa é a maior irritação da classe média com esses movimentos. Basta ver os comentários aos videoclipes no YouTube, irritados com os meninos ostentando e exibindo-se com produtos mais caros, que não deveriam estar com aqueles meninos, pobre e negros, em sua maioria. Esta é a principal insurgência que eles provocam. A classe média, de uma maneira geral, a mais pobre ou a mais rica, a mais ou menos intelectualizada, irrita-se bastante quando os subalternos compram bens caros, mesmo antes deles. Já ouvi comentários indignados, do tipo: “Minha empregada comprou uma televisão de última geração, melhor do que a minha”. Isso tem antecedentes históricos que parecem refletir até hoje. James Holston, ainda no livro sobre cidadania insurgente, que citei anteriormente, traz como exemplo a legislação colonial portuguesa, que proibia aos negros o uso de joias e artigos considerados finos...
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P. Parece que os “rolezeiros” dos shoppings estão ocupando o mesmo lugar simbólico dos “vândalos” nas manifestações, na narrativa feita por parte da grande mídia e pelas autoridades instituídas. Como você interpreta essa reação?
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Os comentários em sites e redes sociais revelam esse profundo racismo entranhado em parcela considerável da população brasileira.”
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R. O que me assustou de verdade nessa história toda foram as reações, de mídia e de polícia, condenando e mandando prender, mesmo em casos em que disseram que não houve arrastões, mas correrias. Fico questionando quem provocou a correria: os jovens ou a ação dos seguranças e da polícia? Eventos como estes revelam também uma faceta complicada e extremamente preconceituosa da classe média brasileira. Dei uma entrevista curta para o site de um grande grupo de comunicação e fiquei assustado ao ler os comentários dos leitores, de um ódio terrível contras os meninos e meninas que foram aos shoppings, contra os pobres, contra mim, que tive uma fala dissonante na entrevista, ressaltando a forma preconceituosa com que tal tema vinha sendo tratado. Ao falarem do evento, algumas palavras utilizadas como categorias de acusação contra os jovens e as jovens foram bastante reveladoras do preconceito, e mesmo do racismo, deste segmento social: “favelados”, “maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Nesse último caso, inclusive, fica evidente o racismo que aparece em muitos comentários dessa notícia, mas também nas comunidades dos rolezinhos que os jovens criaram nas redes sociais. Um dos comentários pede para que os jovens voltem para a África. Isso é muito grave. Revela esse profundo racismo entranhado em parcela considerável da população. Como se tal sociedade dissesse, por meio dos representantes dos shoppings, da mídia e da polícia, brincando um pouco com a questão das manifestações de junho: “Vocês, pobres, podem consumir, mas ir ao shopping em grandes grupos, só para zoar e cantar funk, aí já é vandalismo”.
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P. A classe média é racista?
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R. O que chamamos de classe média não é um todo homogêneo. É possível segmentá-la em diferentes níveis e a partir de diferentes contextos, é possível pensar em uma classe média intelectualizada ou não intelectualizada. Contudo, parece-me que a divisão mais importante para se pensar a classe média em São Paulo é a que se dá por critérios socioeconômicos e espaciais. Há a classe média que está concentrada principalmente no entorno do eixo central, que vai do Centro a Pinheiros, passando pela Avenida Paulista e bairros próximos. Esta, em sua maioria, vive numa bolha e tem poucos contatos com outras classes sociais, com exceção dos trabalhadores subalternos: porteiros, empregadas domésticas etc. Para esta, em grande medida, o Shopping Itaquera pode estar mais distante do que Paris ou Londres. Porém, há também certa classe média baixa que vive na periferia. Citando novamente o Holston, ele fala de uma diferenciação que se produziu nas periferias de São Paulo entre aqueles que compraram seus terrenos, ainda que por meio de contratos obscuros, e aqueles que ocuparam os espaços da cidade, formando as favelas. Essa pequena diferença não cria um grande abismo econômico, mas produz uma profunda diferenciação, por meio do qual um grupo estigmatiza o outro. Já vi um indivíduo desta classe média da periferia questionando programas como o bolsa família, porque tinha visto potes vazios de iogurte no lixo da favela. Este indivíduo afirmava que nem ele consumia iogurte com tanta frequência, como eles se davam ao direito de consumir tal produto, que era um luxo, raro, mas sobre o qual ele detinha certa exclusividade?
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A questão do auxílio aos mais pobres, principalmente o bolsa família, é um forte fator de estigmatização por parte desses diferentes segmentos da classe média, mas principalmente por parte dessa classe média da periferia. Estive, recentemente, em uma escola pública próxima a uma grande favela de São Paulo. Segundo os professores, um dos problemas daquela escola era o fato de que 90% dos alunos vinham da favela vizinha. E que, hoje, esses alunos estavam muito acomodados, pois viviam de bolsas e na favela tinham tudo muito fácil, com a grande quantidade de projetos presentes por lá. Inclusive, projetos de música, ressaltou um professor. É muito importante refletir sobre isso, porque esses professores, se não moram na favela, são vizinhos dela. Mas, ainda assim, permitem-se diferenciar-se dos jovens por questões muito pequenas. E são estes professores os responsáveis por formar esses jovens. Será que, com este olhar, são capazes de lutar para que a escola se torne um espaço de convivência, afirmação e reconhecimento para os jovens?
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P. Como você, que tem acompanhado o cotidiano de escolas públicas, em São Paulo, percebe a educação?
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Para uma parcela da classe média de São Paulo, o Shopping Itaquera pode estar mais distante do que Paris ou Londres.”
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R. É necessário pensarmos em uma educação para as diferenças, para que não caiamos mais na armadilha da intolerância e das análises apressadas e preconceituosas de setores das elites e das camadas médias, ao se referirem aos “subalternos”. Lembro-me de um documentário português, que vale a pena ser assistido, sobre a história de um arrastão que não existiu. Chama-se: “Era uma vez um arrastão”. Nele, conta-se do dia em que jovens caboverdianos ou descendentes de caboverdianos resolveram frequentar a nobre praia de Carcavelos, em Portugal. A polícia, ao ver a concentração de jovens de origem africana, assustou-se e resolveu intervir, provocando uma grande correria, que foi noticiada como arrastão. Mas, de fato, os jovens fugiam da repressão policial gratuita. Isso talvez nos ensine algo sobre os arrastões que estamos a criar todo dia, criminalizando jovens pobres cotidianamente.
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Quando estive pesquisando em escolas públicas da periferia de São Paulo, era comum ouvir dos professores que, naquela escola, os alunos eram todos bandidos ou marginais. O discurso da criminalização é efetivo e poderoso e condena muita gente ao fracasso escolar e mesmo ao crime. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, num livro sobre educação e juventude, ressalta a necessidade cada vez mais premente, na contemporaneidade, de desenvolvermos a arte de conviver com os estranhos e a diferença. Em especial num mundo no qual as migrações tendem a aumentar cada vez mais. No nosso caso, não foi preciso a chegada de estrangeiros para a expressão das mais brutais formas de preconceito, pois os estrangeiros éramos nós, os brasileiros. Mas brasileiros que moram muito, muito distante, ainda que vizinhos. Moram em Guaianazes, Capão Redondo, Grajaú, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila Brasilândia...
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P. Em que medida, na sua opinião, os rolezinhos se ligam às manifestações de junho?
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R. Acho que não há uma ligação direta. Mas, indiretamente, é possível perceber a reivindicação comum do uso do espaço público e de quebra das marcas da segregação. Lembro-me que, antes das manifestações de junho, para a imprensa conservadora era um tabu ocupar a Avenida Paulista. Os movimentos sociais mostraram que não apenas não era um tabu, como era um direito, o direito de ir às ruas e ocupá-las para protestar. Os rolezinhos não parecem ter uma pauta tão clara, mas também estão, ainda que indiretamente, dizendo: “Vocês não disseram que era bom consumir? Pois bem, nós também queremos!”
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P. Essa ocupação de espaços que supostamente pertenceriam a “outros”, tanto no caso das manifestações como no caso dos rolezinhos, parece marcar uma novidade importante. O que está acontecendo?
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R. Acho que a novidade está aí, mas é difícil dizer o que está acontecendo ou o que acontecerá. Pode ser apenas um surto – algo parecido com o que foi a revolta da vacina como reação às propostas políticas opressoras de reforma sanitária do Rio de Janeiro, por exemplo – ou pode ser uma nova forma de pensar os espaços públicos e privados nas cidades brasileiras. Porém, é difícil prever. Os rolezinhos podem ter acabado nesta semana, por exemplo. E movimentos como os de junho não se repetiram com tanta intensidade e repercussão. Contudo, o que movimentos como estes garantem é a possibilidade de se tensionar essa ocupação dos espaços urbanos, amplamente negada até então.
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Aqui não foi preciso a chegada de estrangeiros para a expressão das mais brutais formas de preconceito, pois os estrangeiros éramos nós, os brasileiros que moram em Guaianazes, Capão Redondo, Grajaú, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila Brasilândia...”
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P. Por que este nome, rolezinho? E que significados ele contém?
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R. Rolezinho é um termo que está diretamente ligado à ideia de lazer. De sair para se divertir e usufruir da cidade. Os pichadores, com os quais realizei pesquisa no mestrado, também usam a ideia de rolê, para se referirem às suas pichações. Com isso estão dizendo que pichar é dar voltas para conhecer e se apropriar da cidade. Parece que, por este termo, indiretamente, podemos entender uma reivindicação pelo direito de se divertir na cidade.
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P. Divertir-se na cidade não seria um ato de insubordinação para jovens pobres e negros? Talvez até o maior ato de insubordinação?
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R. Sim, principalmente numa sociedade em que pobres e negros têm que trabalhar – e apenas trabalhar – sem reclamar. Lembremos de que a ROTA, no final do regime militar, atuava nas periferias abordando os moradores e cobrando-lhes a carteira profissional como prova de que eram trabalhadores e não vagabundos. Devotados, portanto, ao trabalho e não à diversão. Agora, claro que esses jovens não estão pensando exatamente nisso. Querem muito mais é se divertir.
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P. Como entender este fenômeno, que é, ao mesmo tempo, uma insubordinação e uma adesão ao sistema?
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R. Acho que a melhor palavra é paradoxo. O funk da ostentação em São Paulo é paradoxal: não dá para situá-lo num polo ou noutro, dentro do modo tradicional de pensar a política. Conservador ou revolucionário? Nenhum dos dois, mas com possibilidade para os dois ao mesmo tempo.
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* - é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua e A Menina Quebrada e do romance Uma Duas.
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Fonte: http://www.geledes.org.br/em-debate/colunistas/22538-rolezinhos-o-que-estes-jovens-estao-roubando-da-classe-media-brasileira-por-eliane-brum - publicado em 23 de dezembro

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Após morte de estudante, Unicamp abre portas à PM

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Por Luciana Felix
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A reitoria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) informou nesta quinta-feira (26) que vai aceitar a proposta do governador Geraldo Alckmin (PSDB) de colocar a Polícia Militar (PM) para atuar na segurança do campus. A oferta foi feita quarta-feira (25) durante uma visita de Alckmin a Araras. Atualmente, a universidade possui 250 seguranças particulares terceirizados, além de circuito de monitoramento por câmeras. Nos próximos dias a Unicamp vai traçar um planejamento estratégico junto à Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP) e a PM para saber qual será a atuação dos policiais.
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A preocupação com a segurança da instituição ficou exposta após o assassinato do estudante Denis Papa Casagrande, de 21 anos, no último sábado (21). Ele foi espancado e esfaqueado em uma festa clandestina que acontecia no Ciclo Básico, no interior da universidade. Maria Teresa Peregrino, de 20 anos, confessou ser autora do golpe fatal no peito do universitário. Ela alega legítima defesa.
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Testemunhas.
Nesta quinta-feira, mais cinco testemunhas do caso foram ouvidas pela polícia, entre elas o namorado de Maria, Anderson Marcelino Ferreira Mamede, que revelou ter feito os ferimentos com uma faca na própria perna por medo de retaliação. A polícia ainda investiga se ele tem co-autoria no homicídio e se a versão contada pela suspeita é verdadeira. A polícia marcou uma entrevista coletiva às 15h e deve apontar um desfecho para o caso. Ao oferecer ajuda da PM à Unicamp, o governador usou como exemplo a Universidade de São Paulo (USP), que passou a ter o patrulhamento da polícia, mesmo após manifestações contrárias de estudantes.
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“A USP em São Paulo concordou, teve até uma grande polêmica, de ter ação policial dentro do campus da universidade. Hoje, dentro da USP tem presença da polícia, porque a cidade universitária é muito grande, e a universidade também tem segurança própria. Nós vamos conversar com a Unicamp e iremos nos colocar à inteira disposição”, afirmou o governador.
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Reação.
A presença da PM no campus da Unicamp já foi motivo de protesto da comunidade acadêmica. Em 2010, quando as festas na universidade foram proibidas e a PM passou a fazer ronda para evitar que elas acontecessem, os estudantes se mobilizaram contra a ação. Ainda nesta quinta-feira, representantes de entidades acadêmicas já se mostraram contrários à decisão.
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A coordenadora do Diretório Central dos Estudantes (DCE), Carolina Figueiredo Filho, afirmou que aceitar a proposta do governo sem um debate com a comunidade local é uma falta de respeito e de democracia.
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“Essa decisão vai trazer impasses na vivência do campus. Não concordamos com a entrada da PM aqui”, disse. Para o DCE, o policiamento vai criar um clima de ameaça à comunidade. “A polícia tem uma postura para lidar em tom agressivo e que às vezes acaba estimulando mais a violência. O tom é sempre repressor”, afirmou.
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Para o coordenador do Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp (STU), Antonio Alves Neto, o governo está generalizando.
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“Oferecer segurança onde os índices criminais não são relevantes é errado. Não vai adiantar nada ter PM aqui. Defendemos que a universidade deveria ter seguranças contratados e treinados por ela. E, não terceirizados como é o caso”. Neto afirmou que a Unicamp deveria voltar atrás e passar a permitir festas e não fingir que elas não acontecem. “Eles sabem que toda semana têm (festas). Deveriam permitir e pedir apoio da PM quando elas ocorrem. Está na hora da universidade assumir isso. A PM no campus não é a melhor decisão. Imagina quando houver manifestação de estudantes como é comum acontecer. Com certeza a PM vai intervir e vai dar problema.”
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Medida.
O Estado deve fazer um convênio com a universidade para que a PM passe a fazer rondas e prevenção.
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“Hoje a PM atua no campus quando é chamada. Atuamos na prevenção no lado externo. Mas, conforme for iremos fazer avaliações para ver qual a demanda do campus e assim escolher a atuação da PM. Se terá sede, se será com patrulhamento com viatura. Mas isso tem que ser fechado”, afirmou o major da PM Euclides Vieira.
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Fonte: Folha de São Paulo

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Educadores apontam riscos da reforma paulista

Por Paulo Saldaña - O Estado de S.Paulo
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Resgatar boas ideias e introduzir novidades. Essa foi uma das formas com que o prefeito Fernando Haddad (PT) resumiu o programa de reforma da educação municipal, anunciado este mês. Entretanto, mais do que resgatar e inovar, o plano terá de ser capaz de fazer funcionar medidas conhecidas e até existentes na rede, mas que encontraram dificuldades para se tornarem efetivas para a melhoria do aprendizado.
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A linha geral do programa é aumentar a exigência para os alunos do ensino fundamental, acompanhando desempenho, oferecendo recuperação e, caso não haja jeito, reprovando quem não progrediu. A reforma aumenta de dois para cinco anos as chances de retenção - medida criticada pela maioria dos especialistas, que receiam aumento nos índices de reprovação, que só puniria quem tem mais dificuldades e que pode refletir em abandono da escola. Nas estratégias para o acompanhamento surgem as boas ideias a resgatar, citadas por Haddad. Provas e boletins bimestrais e lição de casa obrigatória. Atualmente, a aplicação de provas e lição de casa ficam a critério de cada professor.
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Para a pesquisadora em Educação Paula Louzano, doutora pela Universidade de Harvard, a maioria das ações propostas tem grande risco de não se consolidar porque não deve resolver o problema de aprendizado. "Pesquisas internacionais mostram que, geralmente, as melhores medidas para a educação são as mais complexas. Porque a educação é complexa. Ter prova bimestral, por exemplo, depende do tipo de avaliação, do que se faz com ela", diz.
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Paula afirma ainda duvidar da forma como a Secretaria de Educação vai acompanhar as iniciativas e completa: "A sensação ao se lançar uma reforma é a de que nada estava acontecendo antes na rede, o que não é verdade". A recuperação também será um desafio no novo plano. A implementação de reforço no contraturno na rede já esbarrou em problemas de estrutura e de falta de educadores.
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Professora do Instituto Superior de Educação Vera Cruz, Maria José Nóbrega participou como consultora de um dos programas de reforço em leitura da rede nos últimos três anos. "Além da falta de professores, as escolas não tinham como acomodar os alunos, não havia sala nem transporte. A gente não conseguia fidelizar os alunos. A família não deixava ficar porque não tinha como voltar para casa", diz ela, que atua como assessora em programas de formação do Ministério da Educação.
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Ciclos. Maria José elogia a organização da proposta, mas aponta algumas lacunas. O ponto principal é na divisão dos ciclos - antes separados em dois, passaram a ser divididos em três: Alfabetização (1.º ao 3.º ano), Interdisciplinar (4.º ao 6.º ano) e Autoral (7.º ao 9.º ano).
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"O único que a gente consegue ver o que será é o de alfabetização, porque os outros dois ciclos são uma caixa-preta", diz. Ela aponta também o risco de abandono de currículos. "A educação tem de apostar a longo prazo. Ao desmontar uma proposta e colocar outra, isso passa para o professor que ele não precisa se aplicar com aquilo, porque logo vai mudar de novo."
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O professor de Artes Fabiano Chrisostomo, de 29 anos, afirma ver o projeto de reforma do ensino municipal com otimismo. "A possibilidade de retenção em mais anos vai aumentar o comprometimento do aluno e do professor com o aprendizado. Ajuda a entender melhor o papel da escola", diz ele, que leciona em uma escola de São Mateus, zona leste de São Paulo.
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A pesquisadora Vanda Ribeiro, do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação (Cenpec), ressalta que o processo de implementação é essencial. "Depende muito do arranjo dos processos de ensino, aprendizado, relação com currículo e planejamento. O tiro no pé será se a secretaria não tiver estratégia bem delineada de como vai evitar o aumento da reprovação", diz. "Será necessário mexer no jeito de fazer e vai depender muito do diálogo com a rede."
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Segundo o secretário de Educação, Cesar Callegari, o trabalho para ouvir as propostas dos educadores está se intensificando. "Estamos olhando todas as contribuições, alertas e vários pontos serão retocados. Mas a secretaria tem convicção forte no que anunciamos", diz.
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Fonte: O Estado de Sâo Paulo (SP)