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quinta-feira, 24 de março de 2016

Falta Política


Lúcio Alves de Barros*

O momento político que perpassa a alma nacional é de crise. Penso que crises são interessantes e eficientes para se chegar a algum lugar. Elas têm importância quando temos ciência deste lugar e qual é o fim almejado quando lá. O problema no Brasil é que as crises são utilizadas como meios nos quais a vaidade, a medição de falo, a calúnia e a difamação são empregadas ostensivamente. Tais mecanismos de briguinha de rua e de vizinhos invejosos matam a política que, por definição, é campo de negociação, busca de consentimento, de conversa, de objetivos maiores e públicos. Estamos perdendo tempo e ele é grande. Nesse caminho levanto somente alguns pontos na tentativa de elucidar o andar correto da carruagem.

Em primeiro lugar, são inadmissíveis  ações que podem gerar violência. O ódio já está no ar e uma guerra civil verborrágica não leva grupos e ideias a nada. Pelo contrário, ela emperra o debate, cala os atores, empodera os mais fortes e joga um “estado de direito” no chão. O caminho trilhado hoje no Brasil, de calar o outro na pancada e na voz alta, sem o direito à defesa ou ao contraditório não é nem um pouco civilizado. As pessoas já perderam o equilíbrio dos nervos, estão se sentindo injustiçadas, desajustadas, traídas, amedrontadas, confusas, inseguras e sem lugar. No caso em tela existe somente uma saída: a conversa, as negociações, acordos tácitos e manifestos para que o fim seja o equilíbrio institucional e, por ressonância, o social.

Em segundo lugar, é preciso lembrar que a governabilidade é atributo da sociedade e não dos atores que estão entrincheirados no judiciário, no executivo e no legislativo. Em outros termos, cumpre à sociedade – este mundo da vida repleto de relações sociais – a busca do equilíbrio e da normalidade social. Todo processo anômico tem por natureza a falta de regras e normas consensuais. Os acontecimentos mais recentes nos mostram que estamos longe disso. Portanto, não existe outra saída e vou repeti-la: é necessário a conversa, as negociações e um acordo pró-sociedade e pela política. A normalidade social só se fortalece com indivíduos interessados em escutar, entender e levantar possíveis consensos. Não se discute com sangue na boca, nos olhos ou nas mãos. Não há conversa que se sustenta com surdos sem libras e bêbados com estômagos vazios. A sociedade clama por clarividência, seriedade, explicações e valores nobres e aceitáveis capazes de darem rumo a um país que está parado e enfrentando uma séria crise econômica.

Em terceiro e último lugar, faz-se imperativo, na esteira do que pensava o sociólogo alemão Max Weber, chamar os atores à responsabilidade. Dito de outra forma, no campo minado da política, onde se procura um gato preto em um quarto escuro, faz-se primordial a responsabilidade daqueles que operam nas instituições. Considero que existe muita irresponsabilidade no executivo, no judiciário e no legislativo. Não é preciso colocar mais fogo no que está queimando há anos. Às lideranças dos poderes sugiro novamente o que toda política necessita: a arte da conversa, da negociação e dos acordos e consentimentos. A política morre na calúnia passível de destruição do outro, no jogo sujo do roubo, da corrupção, da incerteza social, na vaidade individual e no espetáculo sem rumos que se tornou esta esfera no campo midiático. É mais do que necessário que os atores se sintam responsabilizados pelo estado das coisas e pelo que pode acontecer em casos de desordem sem fim. Que não seja preciso a destruição do oponente ou a produção de um corpo sem vida para legitimar o poder. A política responsável bem como a sua legitimidade, na qual a linguagem é o mecanismo perfeito, está em xeque neste momento. Aqui e acolá estamos à beira de um ataque de nervos, a ansiedade e os hormônios em descontrole arrebentam a tireoide nacional e a insensatez toma força. Portanto, vale um apelo: crianças birrentas no poder parem de brigar, adolescentes machões, beijem logo de língua e acabem com esta bagunça. Adultos, se confessem, busquem o perdão, liguem para o Papa, vale uma ajuda do terapeuta ou mesmo uma simples reunião (sem escutas telefônicas, é claro) como tantas para negociar, para fazer política, conversar, entrar em consenso e equilibrar o que outrora e historicamente já nos levou para cenários constrangedores e perigosos.

* Professor na Faculdade de Educação / FaE - Campus BH / UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerias). 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Pequenos príncipes

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Por Tory Oliveira.
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Eles são agressivos, mimados e mandões. Tudo precisa ser feito para eles e na hora que eles demandam. Tal comportamento, cada vez mais presente em casa ou na escola, faz dessas crianças déspotas mirins, pequenos sem limites que acreditam ser o centro do mundo.  Essa é a visão da psicanalista e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Educação da USP Marcia Neder, autora do livro Déspotas Mirins – O Poder nas Novas Famílias, publicado pela Editora Zagodoni.
 
Na obra, a psicanalista defende que, com a perda de poder do pai na família, quem ganhou espaço foi a criança. “É no século XX, a partir da despatriarcalização familiar, que a criança passa a ocupar cada vez mais o papel de organizador”, afirma Marcia, que estuda o assunto desde 2006, quando escolheu o tema para sua tese de pós-doutorado.
 
Para ela, os pequenos tiranos são frutos não só da educação dada pelos pais hoje, mas também de um contexto social que coloca a criança como centro do mundo na família. A virada teria começado a partir do século XVIII, quando a mulher passou a representar um novo papel como mãe. O processo, que nasceu como uma campanha pela amamentação dos filhos pela progenitora (e não por uma ama de leite, como era comum), evoluiu para a exigência do cuidado e da dedicação aos filhos em tempo integral. “O século XIX é conhecido pelos historiadores como o ‘século da mãe’, quando se instituiu a imagem da ‘boa mãe’, que deixa a vida mundana para se dedicar aos filhos”, explica.
 
A partir daí, diz ela, a sociedade passou a ter um adulto, a mãe, designado para orbitar em torno da criança. “Isso é uma das grandes sementes do despotismo infantil”, analisa. Além disso, se antes os pais exigiam respeito e obediência, hoje preferem ser amados e aprovados pelas crianças – o que também contribui, ela diz, para a instituição da “pedocracia”.
 
As consequências dessa mudança vão além das birras. Na escola, o déspota mirim desafia os professores e recusa-se a seguir as regras da instituição. A situação é especialmente delicada em instituições particulares, apesar de Marcia defender que o conflito é comum em todas as classes sociais. “O aluno se tornou cliente na escola. Tudo isso desfavorece o professor, que seria o representante do adulto que educa na escola. Se os pais não têm poder dentro de casa, a criança buscará a mesma soberania na escola.
 
Professora de Artes na Educação Infantil em uma escola particular na região do ABC Paulista, Paula Aviles, 31 anos, conta que os conflitos com as crianças mandonas são comuns e começam cada vez mais cedo. “O que a gente percebe é que os pais têm pouco tempo para os filhos e compensam deixando a criança fazer o que quer”, opina. A professora conta o caso de um aluno de 2 anos de idade, agressivo, que destruiu o trabalho feito por outra docente durante um evento na escola com os pais. “A mãe disse que ele não poderia ser contrariado”, lembra. Já outro aluno, de 14 anos, recusava-se a assistir às aulas e ficava de costas para a professora. A justificativa era que ele “não gostava” da disciplina.
 
Os desmandos das crianças refletem-se até mesmo nos presentes que ganham dos pais. “A criança se sente com poder de decisão. Não é o pai que compra o presente, é ela quem decide o que quer. Elas não enxergam os pais como alguém que comanda ou orienta. Ela se vê como igual”, analisa a professora. Para a autora do livro, os efeitos acabam atingindo a própria criança. Em alguns casos, o mandão acaba discriminado no ambiente escolar. Em situações mais extremas, a própria saúde da criança pode estar em perigo. “Eu já vi crianças que precisavam fazer dieta por problemas de saúde e os pais não conseguiam restringir sua alimentação”, relata Marcia.
 
Para a orientadora educacional dos anos iniciais do Ensino Fundamental da Escola Stance Dual, Luciana Lapa, colocar limites e lidar com as frustrações invariavelmente sofridas pelas crianças ao longo da vida escolar têm sido grandes questões para os pais.  O problema se agrava, afirma, quando a criança sai da família, uma instituição privada, e vai para a escola. Ali, passa a fazer parte de um grupo e precisa lidar com a noção de direitos e deveres. “Muitas vezes a criança tem dificuldade de lidar com esses aspectos”, explica.
 
Mas por que é tão difícil colocar limites? Para Luciana, existe um desgaste das relações autoritárias entre pais e filhos, que estão sendo substituídas por modelos mais democráticos de relacionamento. Muitas vezes, porém, os pais passam a acreditar que impor limites significa ser autoritário, e abandonam o papel de estabelecer para a criança o que pode e o que não pode fazer. “A criança precisa de um norte, de saber até onde ela pode ir. Não ter isso pode gerar até insegurança”, afirma Luciana.
 
“A escola convive com os mesmos desafios postos na sociedade”, concorda Giselle Magnossão, diretora pedagógica do Colégio Albert Sabin. Na visão da educadora, vivemos uma crise de autoridade, de regras e de relações com o outro na sociedade, que acaba resvalando na escola. “Temos uma geração de pais que saiu do seu lugar. Não é mais preciso ser opressor para educar para o limite e para o respeito. Esse é o desafio de hoje.
 
As educadoras são unânimes ao apontar que escola e família precisam trabalhar juntas – e no longo prazo – para destronar o pequeno déspota. “Muitas vezes, a criança não tem consciência do que está fazendo. Para ela, aquilo não é errado, é como ela está acostumada a agir”, pondera Luciana Lapa.
Também é importante mostrar quem é o adulto da relação e deixar claro que ele não pode ser desrespeitado. “É importante trazer a família para a discussão”, sugere Giselle, que defende trabalhar a questão dos limites a partir da percepção do outro, em vez de optar por medidas restritivas ou punitivas. “O limite deve ser trabalhado a partir da perspectiva do respeito e da empatia”, conta.
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segunda-feira, 9 de novembro de 2015

De Macacos a Mariana: uma breve reflexão sobre responsabilização por acidentes ambientais no Brasil

 
Por: Bruno Carazza dos Santos, bacharel em Ciências Econômicas (1998) e Direito (2010) pela UFMG, Mestre em Economia pela UnB (2003) e Doutorando em Direito na UFMG.
 
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Infelizmente, no Brasil, a morosidade das instituições, os longos trâmites processuais e o desinteresse da mídia atuam contra a responsabilização da empresa.
 
O que aconteceu em 2001 em Macacos com a Mineração Rio Verde vai se repetir em Mariana, com a Samarco?
 
A tragédia em Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana/MG, está nas manchetes de todos os jornais, em reportagens de TVs e nas postagens de redes sociais. O rompimento da barragem de rejeitos da Samarco, uma sociedade entre duas das maiores mineradoras do mundo (Vale e BHP-Billiton), vem suscitando uma grande discussão sobre os efeitos deletérios da mineração sobre o meio ambiente. Este pequeno texto concentra-se em outro aspecto, que acredito que está sendo pouco explorado: a responsabilização da empresa pelo ocorrido.
 
Obviamente que um acidente de tais dimensões exige tempo para ter todas as suas causas e responsáveis elucidados. Mas o funcionamento das instituições (principalmente o Ministério Público e o Poder Judiciário) é fundamental não apenas para que os danos (ambientais, patrimoniais, morais, etc.) sejam reparados devidamente, mas que sirvam de sinalização para que as demais empresas se tornem mais zelosas no exercício de suas atividades no futuro.
 
Afinal, condenações aplicadas tempestivamente sobre a empresa e seus responsáveis, em valores que levem em conta todos os prejuízos causados à sociedade e ao meio ambiente, são um recado para que outras não incorram nos mesmos erros e novas tragédias não venham a se repetir.
 
O problema é que o tempo atua contra a coletividade no Brasil. À medida que o assunto vai perdendo apelo para a mídia, a pressão sobre as autoridades diminui naturalmente, e a longa via crucis processual brasileira costuma atuar a favor dos infratores da lei.
 
Logo que ouvi as primeiras notícias sobre o rompimento da barragem em Mariana, me lembrei de um acidente similar ocorrido há alguns anos bem próximo a Belo Horizonte. Como a mídia no Brasil costuma deixar de acompanhar os grandes casos à medida que o tempo passa, sem revelar se houve punição ou não dos envolvidos, decidi ir atrás do que aconteceu com esse outro acidente com barragem de uma mineradora em Minas Gerais.
 
Em 22/06/2001, rompeu-se a barreira de um reservatório de rejeitos da Mineração Rio Verde Ltda. na região de Macacos (São Sebastião das Águas Claras) em Nova Lima, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, gerando um rastro de quilômetros de destruição que foi apontado como um dos maiores acidentes ecológicos em Minas Gerais até então (veja reportagem da época).
 
Além dos graves danos ambientais (dois córregos e uma área de 79 hectares de Mata Atlântica foram soterrados pela lama), 5 funcionários da empresa morreram em decorrência do acidente: Ronaldo Ferreira Resende, Omero Faustino Leonidio, Renam Fernandes da Silva, Clovis Medina e Silvomar da Silva Santos. Um dos corpos nunca chegou a ser encontrado.
 
Os transtornos para os moradores da região também foram significativos: a estrada que era a principal via de acesso à localidade ficou interditada por 10 meses, uma adutora de água foi destruída e o turismo na região foi comprometido – Macacos é um importante destino de passeio e descanso para os moradores da região metropolitana.
 
Para verificar quais foram as consequências judiciais do caso, decidi ir atrás dos documentos disponíveis na internet para verificar o que aconteceu. Trata-se, portanto, de uma análise preliminar, pois não tive acesso aos processos. Mas, na medida do possível, me baseio em documentos oficiais disponíveis.
 
No primeiro estágio do processo, o Ministério Público Estadual levou 17 meses para investigar o ocorrido e apurar as responsabilidades. Somente em 30/11/2002 ele apresentou a denúncia à Justiça, pedindo a condenação de dois sócios-diretores da empresa (Pedro Melo Lima e João Lúcio Melo Lima), do gerente ambiental da mineradora (Mauro Lobo de Resende), de um fiscal da Fundação Estadual do Meio Ambiente – Feam que teria sido negligente na sua atribuição de fiscalizar a obra (Braz Maia Júnior) e da própria Mineração Rio Verde.
 
A sentença em primeiro grau, do juiz Juarez Morais de Azevedo, titular da Vara Criminal e Infância e Juventude de Nova Lima/MG, foi proferida em 15/05/2007. Ou seja, praticamente 4 anos e meio depois da denúncia e quase 6 anos depois do acidente.
 
Na sentença, o juiz absolveu um dos diretores da empresa (João Lúcio Melo Lima), por entender que trabalhava na área comercial da empresa e não teve participação no acidente, e reconheceu um acordo (transação penal) feito pelo fiscal da Feam (Braz Maia Júnior) com o Ministério Público. Porém, condenou por crimes ambientais o outro sócio-diretor (Pedro Melo Lima) e o gestor ambiental (Mauro Lobo de Resende) a 4 anos de prisão e ao pagamento de 20 salários mínimos, a serem rateados entre as famílias dos falecidos no acidente. A mineradora Rio Verde também foi condenada a construir um estacionamento de 150 veículos no distrito de Macacos e à manutenção de um córrego, conhecido como “Rego dos Carrapatos”, no município de Nova Lima.
 
Não satisfeitos com a sentença, o Ministério Público e os condenados recorreram ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais. A decisão sobre a apelação foi proferida em 02/10/2008. Ou seja, mais de 7 anos depois do acidente. Na decisão, os desembargadores Hyparco Immesi (relator), Beatriz Pinheiro Caires e Herculano Rodrigues rejeitaram os argumentos da defesa dos réus, exceto no que se refere à imprecisão das obrigações impostas à empresa.
 
Insatisfeitos, os réus recorreram ao Supremo Tribunal Federal, por meio de um Recurso Extraordinário (RE 613.308). Desde então, o processo ficou praticamente inerte, praticamente sem nenhuma evolução, primeiro no gabinete da Min. Ellen Gracie, e agora nos escaninhos da Min. Rosa Weber.
 
Ou seja, em termos criminais, passados mais de 14 anos e meio do rompimento da barragem, não tivemos nenhum cumprimento da pena.
 
É importante destacar que, no campo civil, a empresa realizou acordos extrajudiciais de indenização aos familiares das vítimas dos acidentes. Esses acordos foram celebrados em âmbito privado e homologados na Justiça de Nova Lima.
 
Além disso, o acórdão do Tribunal de Justiça faz menção a um Termo de Ajustamento de Conduta – TAC firmado entre a empresa e o Ministério Público Estadual visando à reparação dos danos ambientais e patrimoniais à coletividade. Não consegui obter a íntegra do documento no site do Ministério Público (aliás, isto deveria ser obrigatório, não acham?), mas uma reportagem da Gazeta Mercantil de 17/09/2003 encontrada aqui revela que no TAC a empresa se comprometeu a pagar R$ 4,1 milhões pelos danos causados à estrada, à adutora da Copasa, à rede elétrica e ao reflorestamento da área.
 
Minha impressão sobre essa história:
  • A lentidão do Ministério Público e do Poder Judiciário contribuem para a não responsabilização criminal dos responsáveis pelos acidentes ambientais.
  • Os valores admitidos pelo Ministério Público no TAC encontram-se bem aquém dos reais prejuízos causados ao meio ambiente e à comunidade envolvida – imagine os prejuízos imputados aos habitantes da região que tiveram sua principal via de ligação com o mundo interrompida por 10 meses e a queda no fluxo de turistas para suas pousadas e restaurantes.
  • Sobre as indenizações para as famílias das vítimas, não podemos informar se foram inadequadas porque não tivemos acesso aos valores.
Essas são apenas algumas lições do caso Mineração Rio Verde para ficarmos de olho nos desdobramentos do acidente com a barragem da Samarco em Mariana, principalmente por se tratar de um caso de dimensões muito maiores e que envolve uma das maiores exportadoras do Brasil (Samarco) e duas das maiores mineradoras do mundo (a Vale e a BHP Billiton).
 
Infelizmente, no Brasil, a morosidade das instituições, os longos trâmites processuais e o desinteresse da mídia atuam em favor das empresas. O tempo, neste caso, é inimigo da coletividade, como aconteceu em Macacos, pode acontecer em Mariana e, se não houver uma efetiva responsabilização dos envolvidos, acontecerá nos futuros acidentes envolvendo as mineradoras em Minas Gerais.
 
Nota 1: A sentença do juiz encontra-se a partir da página 145 deste documento.
Nota 2: O inteiro teor do acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais pode ser lido inserindo o número do processo (1.0188.01.002864-8/001) aqui.
 
 

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Enem dá salto na área de Humanas

 
Por Rudá Rícci (Professor e cientista político)
 
Não dá para deixar de elogiar o Enem deste ano ao incluir Weber, Simone de Beauvoir, Hobbes e Nietzsche. Os cursinhos preparatórios devem ter pirado o cabeção.
 
Bem que o MEC poderia pegar carona e desenvolver um projeto mais ambicioso (incluindo criação de ONGs Jovens, melhorando a bobagem de Empresa Jovem para desenvolver esta concepção empresarial de empreendedorismo) para o Ensino Médio.
 
Vejam algumas questões:
 
Questão 26. A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito, que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que um deles possa com base nela reclamar algum benefício a que outro não possa igualmente aspirar. HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
 
Questão 34. A filosofia grega parece começar com uma ideia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque o faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensamento: Tudo é um. NIETZSCHE, F. Crítica moderna. In: Os pré-socráticos. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
 
Questão 40. A crescente intelectualização e racionalização não indicam um conhecimento maior e geral das condições sob as quais vivemos. Significa a crença em que se quiséssemos, poderíamos ter esse conhecimento a qualquer momento. Não há forças misteriosas incalculáveis; podemos dominar todas as coisas pelo cálculo. WEBER, M. A ciência como vocação. In: GERTH, H.; MILLS, W. (org). Max Weber: ensaios da sociologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1979 (adaptado).
 
Questão 42. Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino. BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

A justiça é branca e rica

 
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No dia 15 de outubro Juliana Cristina da Silva, de 28 anos, responsável pelo atropelamento de dois operários que pintavam uma ciclo-faixa, foi libertada da prisão onde estava desde o dia do acidente, 18 último, para responder ao processo em liberdade.
 
Juliana terá de pagar um fiança de 20 salários mínimos, o equivalente a 15 mil reais, e comparecer ao fórum a cada dois meses. Foi comprovado que Juliana estava embriagada no momento do acidente.
 
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José Airton de Andrade e Raimundo Barbosa dos Santos morreram vítimas do atropelamento. O primeiro deixa dois filhos e o segundo, quatro. Além de atropelar e matar os dois homens, Juliana fugiu do local do acidente e chegou a percorrer cerca de 3 quilômetros antes de ser parada pela polícia. E Juliana responderá em liberdade.
 
Dina Alves, advogada e ativista, concluiu uma pesquisa de mestrado nesse ano na PUC São Paulo, na qual analisou o modo pelo qual rés negras são tratadas pelo judiciário. A pesquisa Rés negras, Judiciário branco: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana, tinha o objetivo de oferecer uma análise interseccional de gênero, raça e classe sobre a distribuição desigual da punição no sistema de justiça criminal paulista e aprofundar a relação entre a feminização da pobreza e feminização da punição.
 
“A análise interseccional oferece possibilidades de descentralizar (ou complexar) os estudos sobre as prisões que têm privilegiado a perspectiva de classe social em detrimento de uma abordagem mais ampla e condizente com a realidade racial brasileira”, diz Dina.
 
“Embora as mulheres presas tenham sido objeto de crescente interesse entre pesquisadores do sistema penitenciário nacional, as mulheres negras não aparecem em suas discussões, ainda que constituam o principal grupo de presas no país. Alguns trabalhos têm mostrado que as mulheres, de modo geral, possuem uma vulnerabilidade específica, marcada por sua condição de gênero em uma sociedade estruturada a partir de desigualdades entre homens e mulheres", prossegue.
 
"Apesar de tais estudos ajudarem a entender a dimensão de gênero nas prisões – uma vez que elas têm o mérito de des-masculinizar as narrativas sobre o universo prisional - eles têm se revelado insuficientes no que diz respeito à especificidade da mulher negra”, conclui.
 
Para tal, Dina entrevistou algumas rés negras para que falassem de suas situações e eventuais violências sofridas e as histórias demonstram a parcialidade da justiça brasileira. Dina não colocou os nomes verdadeiros das mulheres, segundo ela o uso do nome fictício foi político “para preservar a imagem da entrevistada e para romper com a lógica burocrática que a reduziu a números, tanto nos seus prontuários que tive acesso, quantos nos processos criminais”. Dessas, se destaca a história de Joana.
 
“Eu peguei sete anos de novo e tou aqui com minha filha, e agora ela teve um bebê, meu neto. Quando fui presa, trabalhava como carroceira e morava nas ruas, embaixo do viaduto do Glicério. Eu tava na cracolândia e o policial me levou. Eu engoli três pedras de crack pra não ser presa. Já perdi as contas de quantas vezes vim pra cá. A primeira vez foi com 17 anos quando fui para a Febem, e hoje tenho 49 anos. Já vivi mais aqui do que lá fora. O que eu quero hoje é poder ficar com minha filha mais perto e meu neto. O pai do menino a polícia matou e eles querem levar meu neto para a adoção, mas eu não vou deixar. Já falei com a Pastoral”, relata uma entrevista realizada em 5 de outubro de 2014.
 
Sobre Joana, Dina diz: “Nos meus encontros com Joana percebi a figura de uma mulher negra, carroceira, sem dentes, obesa e dependente de drogas. A experiência de Joana como usuária e vendedora de drogas na Cracolândia ajuda a entender o que a socióloga norte-americana Julia Sudbury chama de “feminização da pobreza”.
 
Cada vez mais marginalizadas do acesso às esferas de produção de consumo e direitos de cidadania, mulheres negras, como Joana, figuram na economia ilegal do tráfico de drogas como vendedoras, mulas ou simplesmente consumidoras. Joana tem uma história de uso de drogas que tem tudo a ver com o processo de racismo e feminização da pobreza no Brasil.
 
Sua história de aprisionamento começou aos 11 anos de idade quando viveu entre as ruas e abrigos do Estado. Foi apreendida aos 17 anos de idade na atual Fundação Casa (FEBEM) e hoje cumpre pena na penitenciaria Feminina de Santana com sua filha e seu neto recém-nascido. Entre a prisão e as ruas, Joana tem a vida marcada por um assalto patriarcal ao seu corpo que pode ser visto em sua aparência doentia e envelhecida, embora possua apenas 49 anos de idade”.
 
Joana não teve a mesma sorte de Juliana. Joana é negra, pobre e desde muito cedo sofre com a omissão do Estado. Juliana é branca e rica e, mesmo tendo matado duas pessoas, é beneficiada pela ação do Estado que concede privilégios ao grupo branco por conta do racismo estrutural. Joana, aos 49 anos seguirá encarcerada e sem oportunidades.
 
Juliana, após tirar a vida de dois trabalhadores por dirigir alcoolizada, o que também configura crime, vai passar o natal com a família porque na lógica desigual racista, foi só uma moça de bem que cometeu um erro.
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O MasterChef Júnior e a sexualização infantil

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A versão infantil do reality show foi ao ar na noite de terça-feira 20/10/2015
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Valentina foi escolhida para participar do MasterChef Júnior junto com diversas outras crianças, meninos e meninas. O que separa Valentina de todas as outras crianças, por enquanto, não é seu talento na cozinha, mas a cultura do estupro que permite que homens adultos falem por aí como poderiam estuprar a garota.
 
(É bom avisar que mesmo que a descrição de Valentina fosse outra, tudo que vamos ver abaixo continuaria sendo errado e horrível)
 
Vamos deixar algo claro desde o começo: qualquer tipo de relação de natureza sexual com uma criança é estupro. Uma criança nunca pode ter uma relação sexual consensual porque ela é criança e não pode tomar esse tipo de decisão. Por lei.
 
Vamos dar o nome certo às coisas. Aqui não estamos falando de pedofilia, que é uma doença que pode ser tratada antes que a pessoa cometa qualquer crime –  seja ele consumir pornografia infantil ou o estupro. Nenhum desses homens que comentou sobre a MasterChef é doente, eles apenas acham que têm o direito de falar absurdos como esse porque olham para ela e não enxergam uma criança, mas uma mulher.
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terça-feira, 6 de outubro de 2015

Relações com Anísio Teixeira e Leonel Brizola fizeram de Darcy Ribeiro um dos expoentes das reformas educacionais no país


ILUSTRAÇÃO MATHEUS VIGLIAR

Helena Bomeny*
 
O encontro de Darcy Ribeiro com o educador Anísio Teixeira, na década de 1950, foi mais do que a ventura da aproximação entre dois amigos: produziu no antropólogo um verdadeiro roteiro de atuação pública e deu a ele o desenho de uma agenda na qual o tema da educação ocupou lugar primordial. “Anísio me ensinou a duvidar e a pensar”, lembraria Darcy.
 
No primeiro momento houve uma espécie de desconfiança mútua. Anísio, americanista, urbano, envolvido com os problemas da educação e com a universalização desse direito, era uma das lideranças mais notáveis do Movimento dos Pioneiros da Educação Nova – que arregimentou intelectuais na década de 1920 em caravanas por reformas educacionais em praticamente todos os estados brasileiros. Darcy, com as lentes voltadas para a questão indígena (herança de sua aproximação com o marechal Cândido Rondon), adentrava o interior brasileiro em busca do que supunha traduzir a alma nacional. Duvidava do que considerava uma educação comunitária, aquela preconizada na América do Norte, fruto da cultura protestante, que obrigava os fiéis à leitura da Bíblia, situação em nada comparável com o Brasil. 
 
Quando seus percursos se cruzaram, iniciou-se um intenso caminho em comum. O encontro aconteceu no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), criado por Anísio, de onde nasceria o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), que contou com participação ativa de Darcy. A parceria se afinou na criação da Universidade de Brasília (UnB) e foi consolidada quando Darcy Ribeiro assumiu o Ministério da Educação e Cultura (MEC), sendo substituído por Teixeira na reitoria da UnB. O golpe de 1964 retirou o antropólogo não só do governo João Goulart (de quem era chefe da Casa Civil) como da Universidade do Brasil, onde lecionava desde 1956. 
 
A notícia da morte abrupta de Anísio Teixeira, em 1970, alcançou Darcy no exílio. Ao retornar ao Brasil definitivamente em 1978, ele reiniciou a cruzada pelo ensino básico, e cultivaria ao longo de sua vida o patrimônio herdado da união com o renovador da educação no Brasil. Pode-se dizer que Darcy Ribeiro foi o último expoente da Escola Nova – não fez parte do movimento, mas manteve-se fiel à causa que mobilizou uma de suas lideranças mais notáveis.
 
Os últimos 15 anos de sua vida foram marcados por outra parceria igualmente impactante: com Leonel Brizola, Darcy obteve carta branca para prosseguir em sua utopia escolanovista, escrevendo um dos capítulos da reforma educacional mais conhecidos do país. Em 1982, Darcy elegeu-se vice-governador do Rio de Janeiro pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), na chapa encabeçada por Brizola. A convivência o fez consolidar seu discurso popular, embasado não mais nas Minas Gerais, sua terra de origem, mas na tradição rio-grandense e no que chamou de “apreço pela classe de baixo” daquela elite política, traço visível em Vargas, João Goulart e Brizola. 
 
Tornou-se lugar comum na memória carioca e fluminense confundir o programa de educação dos governos Leonel Brizola com os CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública). Mas o Programa Especial de Educação (PEE) era mais ambicioso do que isso. O objetivo era garantir à população o direito a um ensino gratuito moderno, reestruturado do ponto de vista pedagógico e tecnologicamente aparelhado. Previam-se metas assistenciais (como uniformes, calçados e melhoria da qualidade da merenda) e pedagógicas (como aumento da carga horária diária para cinco horas e revisão de todo o material didático), treinamento dos professores e melhoria de suas condições de trabalho, reforma e conservação das escolas e do mobiliário e novos projetos educacionais – voltados à pré-escola, à criação de Centros Culturais Comunitários e à educação juvenil noturna. Havia entre os idealizadores a convicção de que a democratização da educação teria que minimizar as carências essenciais daqueles estudantes que provinham de situações sociais desprotegidas. 
 
Os CIEPs foram concebidos como estabelecimentos que desenvolveriam uma extensa programação de atividades escolares e assistenciais para crianças e jovens, das 7h30 às 17h. Havia a figura do animador cultural – pessoa da comunidade capaz de trabalhar a cultura local junto com os alunos. Personagens mais próximos dos estudantes, despidos da “face professoral”, estimulariam padrões de interação entre crianças e educadores, recriando possibilidades de aprendizagem. Tudo começava com a cultura comunitária, suas manifestações, seus artistas sendo mobilizados para a rotina escolar. Os cuidados se estendiam à montagem de bibliotecas, salas de estudo e espaços de lazer com profissionais treinados para a jornada de tempo integral. Como parte da estrutura física do prédio, previam-se dormitórios para abrigar “pais sociais”, que se responsabilizariam, em troca da moradia, pelo acompanhamento escolar de crianças que também morassem na escola.
 
“Ao invés de escamotear a dura realidade em que vive a maioria de seus alunos, proveniente dos segmentos sociais mais pobres, o CIEP compromete-se com ela para poder transformá-la. É inviável educar crianças desnutridas? Então o CIEP supre as necessidades alimentares dos seus alunos. A maioria dos alunos não tem recursos financeiros? Então o CIEP fornece gratuitamente os uniformes e o material escolar necessário. Os alunos estão expostos a doenças infecciosas, estão com problemas dentários ou apresentam deficiência visual ou auditiva? Então o CIEP proporciona a todos eles assistência médica e odontológica”, proclamava Darcy Ribeiro.
 
Durante oito anos o programa de Brizola e Darcy ergueu 507 CIEPs e alcançou uma repercussão pública pouco comum em assuntos educacionais. A figura política do governador e a personalidade apaixonada e nem sempre ponderada do vice, a marcha frenética com que os CIEPs eram construídos e a confecção de um programa complexo implantado por meio de uma secretaria extraordinária de Educação despertaram reações positivas e críticas, vindas de diferentes extrações da comunidade intelectual e das hostes políticas adversárias. Uma intervenção pedagógica completamente ungida na esfera política criou mal-estar na comunidade dos educadores. O argumento era que o PEE havia se transformado em programa político, em detrimento da melhoria do sistema educacional. A cada matéria crítica contrapunha-se a voz de Darcy Ribeiro, sustentando a continuidade no tratamento de uma escola pública que até aquele momento, no Brasil, estava longe de cumprir o papel que a ela deve ser atribuído em uma sociedade democrática. 
 
Entre os educadores a reação foi igualmente virulenta. Ficaram expostos os pontos de fragilidade do PEE, que já nascia como programa de massa, extenso, volumoso, caro e sem condições de funcionamento na medida e na velocidade com que se implantava. Entre os cientistas sociais, a nota crítica foi para o populismo implicado na política pública assistencialista do governo Brizola. Pesava o estilo de liderança de ambos os condutores: personalista, voluntarista, demagógico, inconsequente. 
 
Talvez por ter acumulado um conjunto tão expressivo e abalizado de críticas, o brusco desmonte do programa pelo governo seguinte, de Moreira Franco, não produziu qualquer reação capaz de impedir a descontinuidade do esforço e do investimento até então dispensados. Os CIEPs foram desmontados como estruturas de ensino em horário integral, e as construções foram interrompidas. A rede pública de ensino voltaria ao sistema convencional, agora com o ensino fundamental municipalizado.
 
Ainda hoje os CIEPs permanecem como referência nas discussões mais importantes que embasam a tomada de decisões de políticas educacionais no Rio de Janeiro e no Brasil. O tempo de permanência das crianças nas escolas continua sendo um tema estratégico. Sempre que se renovam propostas de ensino em tempo integral e integração entre escola e comunidade, presta-se uma homenagem, mesmo que implícita, à obra de grandes personagens da história da educação no Brasil. Darcy Ribeiro está entre eles, ao lado de seus parceiros Anísio Teixeira e Leonel Brizola. 
 
*Helena Bomeny é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, autora de Intelectuais da Educação (Zahar, 2001); Darcy Ribeiro. Sociologia de um indisciplinado (Editora da UFMG, 2001), e organizadora de A Escola que faz Escola (FGV, 2002).
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Fonte: Revista História. com.br http://rhbn.com.br/secao/retrato/em-boa-companhia

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O PEDAGOGO DE FACEBOOK

 
Por Mateus Nikel* 

Segundo o site de humor SENSACIONALISTA, 98% dos usuários do facebook são especialistas em tudo. Dentre a gama de especialidades, sinto certo incômodo com os que classifico como PEDAGOGOS DO FACE. Este tipo de intelectual nunca pisou em um escola pública da rede básica municipal ou estadual. Geralmente, vêm da classe média e estudou nas escolas elitistas da rede privada ou federal. Adora ler tudo de educação, tem a bibliografia completa de Paulo Freire, assiste todos os dias o Canal Futura e adora participar de encontros com filósofos que nunca lecionaram fora das “universidades de ponta” onde trabalham.

Para estes pedagogos virtuais, os professores atuantes em sala de aula (principalmente nas escolas públicas) são profissionais mal formados e desatualizados que precisam de reciclagens teóricas. Afinal de contas, já estamos no pós-modernismo e é inadmissível que ainda não saibamos o que é isso. Quem sabe, o pós-modernismo pode nos ajudar a lecionar em salas com 60 alunos, com ventiladores quebrados, sem folhas ou materiais básicos. Características estas, mais do que medievais. Será que existe formação para profissionais em situação tão precária?

Segundo o intelectual pós-modernista-facebookiniano, os professores poderiam largar as salas de aula (consideradas prisões institucionais) e lecionar em ambientes alternativos: um professor de biologia pode dar aula no jardim da escola, por exemplo, ou quem sabe ir à um parque. Infelizmente, nosso “Deus” da verdade pedagógica não sabe que a maioria das escolas públicas não tem verba nem para manter um prédio, o que dirá um jardim. Muitas delas, tiveram todas as árvores derrubadas ou o jardim gradeado, já que representava perigo e custos “altíssimos” de manutenção. Árvores frutíferas são consideradas problemas em potencial: afinal de contas, um moleque pode se machucar tentando pegar um fruta, assim, melhor não tê-las. Uma outra alternativa seria o professor de educação musical trabalhar com instrumentos alternativos ou reciclados. Pena que nosso pensador nunca estudou percussão, ele não tem noção do que são 30, 40 ou 50 desses instrumentos; assim como gerenciar estes objetos em prédios sem isolamento acústicos e sem local para armazenar tudo isso. Afinal de contas, são raras as escolas que disponibilizam salas temáticas: muitos docentes chegam a trocar de sala por mais de 10 vezes ao dia. Qual profissional têm pique para várias aulas dessas durante a semana?

Já que não há jardim na escola, podemos levar a escola para o jardim. Seria ótimo se a secretaria disponibilizasse o ônibus. Seria, mas muitos professores desistiram de brigar por eles, já que têm tanto trabalho com solicitações vazias. Agora, se o prefeito aparece no evento, as verbas para o transporte surgem com uma imensa facilidade.

A inter/mega/hiper/transdisciplinaridade é a solução para as matérias arcaicas dos professores mal formados. Entretanto, como um profissional que chega a dar mais de trinta aulas por semana, trabalha em 3 escolas (assim como nos 3 turnos para ter uma condição financeira melhor) e que mal lembra do nome dos alunos (já que são mais de mil), pode encontrar tempo e condições para reunir-se com outros professores e pensar nas estratégias em conjunto? A coordenação pedagogica poderia intermediar, é claro!!! Contudo, em muitos estados e municípios este cargo praticamente não existe, a coordenadoria acaba se tornando um espaço para “encostar” o professor reabilitado, aquele mestre que perdeu a voz de tanto gritar, que desenvolveu algum problema mental, que se acidentou tentando “fugir”/separar brigas entre alunos ou tudo isso junto.

Ele adora ler as séries, pedagogia segundo: Deleuze, Derrida, Hegel, Foucault, Marx, Hanna Arendt, Rousseau, Gramsci, entre outros. O que o pedagogo de facebook não consegue entender, porque não vive na realidade educacional, é que a teoria pode abrandar, mas nunca irá solucionar problemas de ordem estrutural: condições de trabalho dignas, salários decentes, redução das dezenas de alunos por turmas, entre outros. O professor pode até aplicar a pedagogia segundo Jesus Cristo, mas caso o mesmo Jesus não faça um milagre na estrutura escolar, pouca coisa irá mudar.

A palavra mais proclamada por este pensador é VIOLÊNCIA. A escola é violenta, as aulas são violências simbólicas, o currículo é um imposição. Nosso filósofo adora citar Foucault, só esquece de lembrar que este tema é uma via de mão dupla: o escola e o educador também são violentados (por vários motivos). Inspetores escolares? Nunca! Mesmo que só exista um para dar conta de uma prédio com 3 andares e mil crianças. Isso é VIGIAR E PUNIR, algo abominável, é uma imposição ditatorial: o docente deve trabalhar a autogestão. Muitos acreditam que crianças que são mal tratadas diariamente, pelos pais e sociedade, irão (de uma hora para outras) se organizar e manter a ordem e a paz: mesmo que sejam 60 delas dentro de uma sala de aula caindo aos pedaços e com poucas ferramentas pedagógicas disponíveis.

Sala de aula? Isso é desculpa, pois: segundo pesquisas “internacionais” a infraestrutura conta pouco quando tratamos de eficiência escolar. Mais uma vez, nosso pensador esquece que a maioria destes experimentos acontecem nos EUA ou na Inglaterra onde a variabilidade de recursos é bem menor do que no Brasil. Aqui, ainda encontramos muitas escolas com paredes sem reboco, com goteiras e onde o banheiro é o matagal mais próximo. Crer que estas condições sub-humanas não interferem nos estudos é de uma pureza mais do que intelectual.

Para o nosso especialista, todos estes problemas podem ser solucionados com um pedido formal à secretaria de educação. Ele só não sabe que “em muitos casos”, o profissional que chefia este setor está lá por indicação política, assim como nem é professor ou pedagogo (muito menos de facebook): geralmente um economista, administrador ou braço direito do gestor de plantão. Ministério público? Prefiro nem comentar…

Mesmo repetindo isso inúmeras vezes, não adianta conversar com este nosso amigo. Ele sempre classifica isso como REACIONARISMO, até mesmo com professores filiados à partidos de esquerda. Estas críticas à teoria educacional só “atrapalham o desenvolvimento” da pedagogia. Existem respostas piores: professores não são reaças, na verdade, agem com “vitimismo”.

O que mais me intriga é que este profissional mais do que preparado, poderia estar dentro de uma sala de aula (principalmente das escolas públicas), mostrando a nós, simples e mortais professores, como ensinar de uma forma correta e mais atual, como não sermos reacionários ou deixar de agir como “vítimas”. Entretanto, o pedagogo de facebook apenas filosofa. Prefere investigar a pedagogia sem ser interferido por questões emocionais. Quem sabe ele possa terminar o doutorado e ingressar numa faculdade, e assim, dar aulas sem nunca ter pisado numa sala de aula da rede pública de ensino básico. Atitude interessante?
“Falar é muito fácil, é muito fácil sugerir atos heroicos e maravilhosos. O mais difícil é realizá-los. Esses mesmos espectadores se darão conta de que as coisas são uma pouco mais difíceis do que pensam se tiverem que fazer eles mesmos os atos que preconizam.” (AUGUSTO BOAL)

OBS: todas as histórias aqui contadas são reais. Foram presenciadas por mim desde post selvagens de redes sociais até (pasmem) encontros com professores universitários.
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* é professor de educação musical na Prefeitura do Rio de Janeiro, assim como Fiscal da Natureza e Filósofo de Buteco.
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Fonte: https://blogdonikel.wordpress.com/2015/09/26/o-pedagogo-de-facebook/
 Neste Blog estão algumas coisas que lhe prendem a atenção

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Violento por natureza

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Por Flávia Oliveira*
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País forjado na chibata dos escravocratas e nos castigos físicos do jesuítas, o Brasil, além de bonito, é violento por natureza. O “salve, simpatia” só é visível no consenso. Pintou conflito, sobram grito, xingamento, sopapo, chute, facada, tiro. Passou da hora de mirar o espelho e encarar a imagem de uma sociedade envelhecida em barris de brutalidade. O brasileiro bate no filho e na mulher. Esmurra vizinho na reunião de condomínio e motorista em sinal de trânsito. Espanca LGBT em praça pública e torcida rival dentro de estádio de futebol. Tortura preso político e réu inconfesso. Esfaqueia universitário que discute preço em restaurante e ciclista em cartão postal. Lincha assaltante, adúltera e dona de casa vítima de boato na internet. Atira em morador de favela na porta de casa, em missionária religiosa no campo, em estudante em ponto de ônibus e em policial de folga. Degola traficante e jornalista. Chacina presidiário e suburbano.
 
A ONG americana Social Progress Imperative publica todo ano um ranking de qualidade de vida. Na edição 2015 do Índice de Progresso Social, divulgada mês passado, o Brasil aparece na 42ª posição entre 162 nações. Marcou, no geral, 70,89 pontos numa lista que a Noruega lidera com 88,36. Na dimensão segurança pessoal, que leva em conta taxa de homicídios e de crimes violentos, sensação de segurança, terror político e mortes no trânsito, dá-se o vexame. O país marcou míseros 35,55 pontos; é 122º em 133 avaliados. Entre os vizinhos de América do Sul, só ganha da Venezuela. No topo do rol, está a Islândia, com 93,57 pontos; no pé, o Iraque, com 21,91.
 
Semana passada, o sociólogo espanhol Manuel Castells, professor da Universidade da Califórnia, detonou a cordialidade nacional em entrevista à “Folha de S. Paulo”: “A imagem mítica do brasileiro simpático existe só no samba. Na relação entre as pessoas, sempre foi violento. A sociedade brasileira não é simpática, é uma sociedade que se mata”. Tem razão.
 
O recém-divulgado Mapa da Violência 2015, dedicado aos crimes cometidos com armas de fogo, estimou em 15,2 milhões de unidades o arsenal privado. Seriam 6,8 milhões de armas registradas, 8,5 milhões irregulares e 3,8 milhões nas mãos de criminosos. De 1980 a 2012, 880.386 brasileiros perderam a vida com tiros; 497.570 tinham de 15 a 29 anos. Em 2012, o país registrou 56.377 homicídios de todo tipo, alta de 13,4% sobre 2002, início da série. Dos mortos, 30.072 eram adolescentes e jovens; sete em dez, negros.
 
No Mapa da Violência 2012, que analisou agressões a crianças e adolescentes, o Sistema Único de Saúde registrou 39.281 atendimentos na faixa etária de zero a 19 anos em 2011. Mais de três mil ocorrências envolveram bebês de menos de 1 ano. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimou em 5.664 o total de mulheres assassinadas por ano, entre 2001 e 2011. É um homicídio a cada hora e meia. Não foi à toa que entrou em vigor, este ano, a Lei do Feminicídio. O Grupo Gay da Bahia informa que todo dia uma pessoa morre por LGBTfobia no país. Falta criminalizar os atos de ódio por orientação sexual.
 
A série de estatísticas da violência é menos para assustar e mais para lembrar que uma sociedade brutalizada não se desconstrói do dia para a noite. A semente nociva do desprezo pela integridade física do outro está em nós. Diante de um crime hediondo, a mais cândida das avós é capaz de propor técnicas de tortura de fazer corar agente do DOI-Codi. O Brasil precisa se confrontar com sua natureza bárbara e firmar um urgente pacto pela vida.
 
* Colunista de "O Globo"
 

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Onda conservadora: nem tsunami, nem marolinha

Marcus Ianoni*

A mudança social pode ser progressiva ou regressiva. É progressiva quando a revolução democrática avança, criando e ampliando direitos e conquistas da cidadania em várias esferas, como a civil, a política, a social, a econômica, a cultural, a ambiental, a de gênero, a racial etc. E é regressiva quando a roda da conjuntura – que pode abranger um tempo histórico menor ou maior –, movida pela ação das forças sociais contextualmente determinadas, que se relacionam politicamente através de lutas, disputas, acordos, alianças, composições e oposições, gira para contrapor-se às tendências igualitárias. Mas, além das forças sociopolíticas, o Estado, a elas articulado, também desempenha um papel-chave na mudança social.

A conjuntura brasileira atual caracteriza-se pela emergência do conservadorismo, que surge como uma reação de classes, frações e estratos sociais às transformações progressistas implementadas no país a partir da vitória eleitoral de Lula, em 2003. A conquista do governo pelo principal líder do PT, em contexto de crise das políticas neoliberais na América Latina, alterou a relação de forças e propiciou a conformação, ainda que limitada, de um bloco sociopolítico e político-institucional de corte social-desenvolvimentista, que impactou na emergência de uma nova safra de políticas públicas. Seguiram-se uma série de mudanças institucionais e socioeconômicas, que produziram inclusão social, através do mercado e das políticas sociais, ampliação de direitos e o fortalecimento de mecanismos de interação democrática entre Estado e sociedade.

No governo Dilma 1, houve um relativo desarranjo dos nexos democrático-institucionais que suportavam a aliança social-desenvolvimentista. Além disso, outros três problemas ocorreram: os escândalos de corrupção (julgamento da Ação Penal 470 no STF e Operação Lava Jato), o baixo crescimento e o acirramento do conflito distributivo, cujas primeiras expressões públicas mais claras foram as manifestações de junho de 2013 e os rolezinhos de janeiro de 2014. Apesar das quatro vitórias sucessivas nas eleições presidenciais, o PT e o governo da presidenta Dilma, mandatária reeleita em um contexto de acirrada disputa contra a coalizão neoliberal liderada pela grande mídia, foram acossados pela direita liberal-conservadora, que, como não é novidade, possui bases sociopolíticas e político-institucionais na sociedade brasileira. Apesar da reeleição de Dilma, o Congresso eleito em outubro de 2014 e empossado em fevereiro desse ano tem, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), o perfil mais conservador de todo o período pós-1964. Aumentou o número de parlamentares militares, religiosos e ruralistas, por exemplo, grupos com perfil político predominantemente conservador. No caso dos religiosos, o conservadorismo abriga-se, sobretudo, na bancada evangélica. E o número de deputados federais comprometidos com as causas sociais caiu.

Os conservadores têm apego às instituições sociais e políticas tradicionais e resistem às mudanças. Na história contemporânea, ocorreram várias reações conservadoras, como, por exemplo, na Europa, a partir do fim das Guerras Napoleônicas, com um conteúdo monárquico, antiliberal e antinacionalista e nos EUA, no século XX, contra as reformas progressistas e o New Deal. O referido conservadorismo europeu, aberto pelo Congresso de Viena, foi um tsunami continental.

No Brasil, a onda conservadora, que tem no presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), uma importante alavanca institucional, entre outras façanhas, se opôs à Política Nacional de Participação Social e está dando asas a projetos de lei como o Estatuto da Família, que vai de encontro aos direitos dos casais homossexuais, o Estatuto do Nascituro, que questiona pesquisas com células tronco, quer incluir o aborto na categoria de crime hediondo e aprovar a proposta do Dia do Orgulho Hetero, reduzir a maioridade penal, constitucionalizar o financiamento empresarial eleitoral e instituir o chamado distritão, um sistema eleitoral ainda mais personalista e nocivo ao fortalecimento dos partidos que o atual. Uma agressiva frente conservadora se observa no modo como a grande mídia e setores da oposição estão abordando os problemas de corrupção, especialmente a Operação Lava Jato. Enquanto os holofotes deixam em segundo plano a Operação Zelotes, que envolve bilionárias quantias de sonegação e fraude feitas por empresas e elites da burocracia pública, toda uma ofensiva é feita para associar a corrupção ao partido e aos governos que introduziram as mudanças progressistas que hoje estão em risco, ou seja, ao PT, Lula e Dilma. Como se não bastasse, o conservadorismo avança em duas frentes estratégicas, de grande impacto na economia: por um lado, na macroeconomia, com a retomada das altas na taxa básica de juros e o ajuste fiscal na gestão pública, por outro, na terceirização nas relações de trabalho.

Se hoje ainda não há um tsunami por aqui, também não se trata de mera marolinha. O conservadorismo representa uma coalizão de diversos interesses, incluindo o rentismo e a financeirização, nacional e internacional, a ofensiva do capital globalizado contra a força de trabalho regulamentada, a cobiça pela gestão neoliberal da Petrobras, à qual o modelo de partilha se opõe, a manutenção do status quo da desigualdade que alguns estratos das classes médias tradicionais não querem contribuir para alterar, certa fé obscurantista de lideranças religiosas etc. O que fazer para enfrentar essa onda conservadora é a grande questão a ser debatida e respondida pelas forças progressistas, que alavancam a revolução democrática.

* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador das relações entre Política e Economia.
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Fonte: Jornal do Brasil

segunda-feira, 27 de abril de 2015

'É cuspe e giz'

Relato de professor que voltou à sala de aula após 20 anos revela realidade nua e crua de uma escola estadual
Por Antônio Gois (jornalista)
 
"Sou formado em Física, com licenciatura, mas trabalho em outra área. Sempre estudei em colégios e universidades públicas. Percebendo a carência de professores no estado, me inscrevi no cadastro de contratações temporárias. Ano passado tive a oportunidade de lecionar em dois colégios estaduais. Tenho observações a fazer que representam o olhar de um cidadão que deseja cooperar."

Assim começava um e-mail recebido pela coluna, enviado por um professor que ficou mais de 20 anos afastado da sala de aula. Ele queria contar mais de sua experiência, e marcamos um encontro. Pediu que seu nome, bem como o das escolas onde atuou, não fosse divulgado. O objetivo da publicação de seu relato pessoal aqui não é generalizá-lo, pois é certo que há muitas realidades no ensino público. Mas é uma história, como tantas outras, que merece ser ouvida:

"De início, senti muito entusiasmo. O salário era baixo, mas não estava ali por isso. Já no primeiro encontro com o diretor, me assustei com uma pergunta: 'o senhor vai mesmo aparecer, não é'? Ele explicou que o último que veio para dar aulas de Física se apresentou no primeiro dia e nunca mais voltou.

"No primeiro contato com o outro professor de Física da escola, perguntei qual o livro utilizado. 'Nenhum', respondeu ele, explicando que as obras ficavam guardadas num armário porque os alunos 'não queriam carregar os livros para casa e não havia como distribuí-los e recolhê-los a cada aula'. Comentei que pretendia preparar uma aula no Power Point, para deixá-la mais dinâmica. Com certa incredulidade, meu colega respondeu: "Se quiser, pode fazer". Mas o diretor me incentivou. A escola possuía um excelente equipamento de data show, que não era preciso reservar com antecedência, porque poucos usavam.

"Tentei fazer algo diferente, mas fui percebendo que não seria fácil. Vi que, mesmo no ensino médio, os alunos não haviam aprendido conteúdos que já deveriam ter sido ensinados no fundamental. O problema era comum aos colegas de outras matérias. Pedi ao diretor para ver as provas do último professor. As notas, com poucas exceções, variavam de zero a um.

"Ao longo do ano, vi vários alunos em sala usando fones de ouvido, celulares, interrompendo constantemente a lição. Testemunhei até agressões físicas. Sentia que os jovens não me viam como aliado para aprender, mas como um obstáculo a ser superado na obtenção do diploma. Mas como seriam aprovados se nada sabiam e, principalmente, não faziam nenhum esforço para aprender? Se as provas apresentavam resultados tão ruins, os índices de reprovação deveriam ser enormes. Disse ao diretor que não teria condições de aprovar a maior parte da turma. "Pelo amor de Deus, professor, o que será desses alunos?", respondeu ele.

"Fui percebendo como todos davam um jeitinho de driblar a falta de conhecimento. Notas em trabalhos de pesquisa feitos em poucos dias... Projetos sérios nem pensar, pois eles não queriam se engajar em nada. Os próprios estudantes apontavam a solução: 'Professor, quando o senhor vai dar um trabalho? Uma coisa pra gente fazer em casa...'

"Aprovação sem mérito desqualifica o diploma. Por outro lado, o diretor tinha razão, reprovar em massa parecia um desastre. Assim, ante a inevitável incapacidade de despertar o interesse dos alunos em aprender com o crivo dos testes, sucumbimos todos.

"Ao entrar, no fim do ano, na sala de professores com um calhamaço de pesquisas sob o braço, encontrei o mesmo professor que me recebera com desconfiança. Sem conseguir disfarçar o sorriso irônico, ele comentou: 'Viu, professor? Com esta clientela, não adianta: é cuspe e giz!'
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Fonte: Globo (27/04/2015) - http://oglobo.globo.com/pais/moreno/

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Estado Mascarado



Por 
 
Sábado fui no Rio de Janeiro, no protesto contra as mortes no Morro do Alemão. Querendo falar e desisto. Desesperança completa. A sensação mais viva é de que nada disso vai ter fim.
 
Política de drogas hipócrita, mas não só hipócrita, afinal é exatíssima no intento porque lucrativa demais pra gente poderosa demais e morte de quem não tem dinheiro tá tudo certo pra esse esquema aterrador. O Estado mata, a imprensa diz ok, a sociedade diz amém e seguimos como se nada. E, ironias da vida, nunca se falou tanto em Deus.
 
Uma criança leva um tiro de fuzil na nuca, disparado por um policial, na porta de casa. Como dizia um cartaz na caminhada “tiro na cabeça não é despreparo”. Minha cabeça rodando, o corpo dói de tristeza, nojo da forma como a gente se organiza pra viver, pra que uns vivam e outros não.
 
Sol de outono gritando, às 10:30 da manhã de 4 de abril, na entrada da Grota, pé do Morro do Alemão. Um microfone ligado no ponto de táxi. Muita gente vai lá e fala de dores coletivas, em discurso emocionado, poesia, música, enquanto outros grafitam uma parede, outros observam, uns com cartazes, outros não, todos com rostos cúmplices da mesma ideia. Gente do morro e do lado de baixo também. Todo mundo era irmão de algum jeito ali e só ali. Uma força coesa que dava até a ilusão de vitória. São bonitos demais esses momentos. Gente pedindo a mesma coisa, mesmo com pontos de vista diferentes, discursos diferente às vezes: PAZ. Não uma paz subjetiva, mas um pedido muito concreto, pela dor ainda vivíssima das mortes das últimas décadas, últimos anos, meses, dias, mortes sem fim, incluindo a de Eduardo de Jesus.
 
Alguém falava no microfone “bala perdida” e alguém gritava de longe “bala achada!”, alguém gritava “fora rede Globo!” e alguém gritava de volta “é importante todas as TVs estarem aqui!”…
E fomos nós no solão…
 
Às vezes fecho os olhos enquanto vou devagar nessas turbas de andada, em protestos por isso e aquilo, nessa cidade e naquela outra e na outra de lá. Faço isso faz tempo e sempre que abro os olhos me pegam de jeito os olhares dos policiais. Os olhares deles dizem em que parte da cidade você está. Eles olham te dando segurança (ou achando que te dão isso) ou te inspirando medo e apenas medo.
Um carro de apelido Caveirão já é por si uma aberração. E dentro da caveira o Estado mascarado, armado até os dentes, fuzis pra fora das janelas, imponentes, lataria com tinta bonita, preto fosco, pneus robustos e ameaçadores. Pra quem mora ali normal. Não poderia ser. Mas é. Normal.
 
O inimigo é a população numa praça, chorando seus mortos.
 
A última andada que tinha ido por morte foi na Vila Sabrina, São Paulo, a de Douglas, morto por um PM porque ouvia som alto no carro. “Douglinhas”, cantavam os amigos, com foto dele na camiseta e também gritavam “Luciano, assassino! Luciano, assassino!” olhando nos olhos dos policiais que acompanhavam o trajeto. Douglas foi aquele que olhou pro policial que tinha acabado de dar um tiro no peito dele e perguntou “por que o senhor atirou em mim?”.
 
E, do mesmo jeito do Rio, um monte de mães com foto de filho assassinado.
 
Dói o motivo da andada e mais ainda os olhares da grande maioria dos policiais ali naquela quebrada e naquela outra ali também. Em Recife, São Paulo, Rio, Salvador…Nossas favelas, nossas Palestinas. Nosso Quênia.
 
Dias antes moradores já tinham descido, querendo justiça, dizendo não pra essas mortes, querendo liberdade, ir e vir, querendo poder celebrar, nas suas próprias casas, no seu próprio bairro e receberam do Estado bombas de gás .
 
Muitos não vão. Medo justíssimo. Outros querem ir e são impedidos. Alguém no microfone, pouco antes da saída, falou que tinha polícia lá em cima com gás de pimenta, impedindo muita gente de descer.
 
No protesto de Douglas alguém, acho que da Anistia, ou da Secretaria de Direitos Humanos, não lembro bem agora, me falou que Emicida ia falar logo mais e me pediu pra falar também. Não consegui. Digo aqui o que falaria lá se não estivesse com o juízo tão tremido.
 
Emicida falou que estava ali porque aquilo podia ter acontecido com ele. Isso me deu mais certeza de não ir lá falar nada. Mas tive vontade de dizer que estava ali porque não poderia ter acontecido comigo e que isso me doía tão fundo e mais fundo…Os dois motivos nos ligavam e isso era importante. Queria falar que nós todos precisávamos estar juntos, que essa era a minha certeza na vida. Precisamos estar juntos, é a única saída possível. Mas não, eu não falei nada disso ali.
 
O pai de Douglas falava “meu filho estava com documentos! Eu sempre falava, Douglas, levou a identidade? E ele sempre levava. A identidade e o cpf…ele era um menino trabalhador, responsável”.
Eu queria gritar enquanto ouvia aquilo! Gritar que qualquer pessoa podia andar sem documento, ser mal aluno, não ser trabalhador, ser farrista, dormir na rua, ouvir o som mais alto do bairro. Gritaria também, na cara do PM que me olhava feio, que nem fumar ou vender maconha, cheirar ou vender pó (pra gente de bairro rico cheirar tranquilo, pra políticos cheirarem tranquilos…)…que nada disso, absolutamente, poderia servir de argumento pra um policial matar ninguém. Mas, claro, eu não disse. Lógico que eu não disse!! E eu não poderia falar nada depois daquele pai. Nada. Meu grito foi pra dentro mesmo, onde ele deveria ficar. Tudo certo. Tudo errado.
 
Um fotógrafo falou “segura  a faixa ali junto com eles, pra eu registrar?”. Não fui. Só queria andar junto, gritar junto. Que eles aparecessem na foto com a dor deles e só deles, dor que eu apenas projeto, que eu apenas desconfio de como seja e nem me imagino suportando. Eu que já chorei meus mortos de outra guerra, em outros morros, de outro alemão…
 
Com Eduardo de novo a mesma coisa, “ele era um bom aluno, um menino de ouro…estava na porta de casa com um caderninho da escola”. Quero gritar de novo. Mas o que eu posso falar depois dessa mãe? Nada. Engole aí. Nova náusea.
 
Não tem fim. Não tem fim, inclusive, porque não é que estamos estagnados, estamos indo no sentido completamente inverso à solução. Vamos reprimir mais em vez de desmilitarizar. Vamos reduzir a maioridade penal, em vez de transformar essa política de drogas hedionda. Vamos botar mais polícia repressora em vez de escola, saúde e diversão pras crianças.
 
Em protesto na periferia a polícia te olha com fome. A polícia te dá medo, muito mais medo do que daquele lado onde se tem dinheiro. Sem falar nos lugares onde ela mete medo nenhum, muito pelo contrário, onde quem protesta tira selfie com policiais sorridentes, fazendo o legal com o dedão e emoji de coração.
 
Em protesto na perifa, irmão, caso você de lá não seja e lá nunca tenha ido e, logo, disso nunca tenha sabido na pele, a polícia te olha como uma infecção. Sim, tem exceção. Ela só não dá conta dessa demanda. Os que descem o morro pra protestar são heróis e heroínas, corajosos no limite. Olhar nos olhos de quem te rouba a naturalidade do dia a dia, a leveza na vida, no mínimo…ou um parente, amigo, vizinho, quando chega no seu máximo de eficiência é para os fortes, muito fortes (vale lembrar que alguns policiais filmavam tudo com celular). Sua festa você não vai poder fazer, mas alguém vai poder matar seu filho e isso vai gerar uma nota de jornal, ou matérias tratando o assunto como corriqueiro.
 
Parênteses pra lembrar que nesse mesmo dia teve entrega de ovos de Páscoa e de gibis pelos guerreiros do Voz da Comunidade. Coisa linda danada que eles fazem.
 
Um tiro de fuzil na nuca de uma criança no Leblon, em Copacabana…dado por um agente do Estado, geraria jornais inteiros por meses, novelas e longas metragem, leis seriam mudadas, quem sabe a polícia desmilitarizada, a família pararia o trânsito da cidade inteira e seria aplaudida por toda sociedade emocionada e generosa. Seria uma Páscoa lembrada como um 11 de Setembro. Flores, fontes e monumentos. Nome de rua mudado, instituto com o sobrenome da criança, altar monetado na praça, o nome do personagem da nova minissérie.
 
No Morro a família e vizinhos descem pra protestar e levam bomba de gás na cara. Sim, já sabemos. Sim, isso é praxe. O tiro de fuzil tratado como um acidente de percurso, uma fatalidade no combate a o que mesmo? Ao mal?
 
Tinha uma criança bebê, no colo da mãe, com um riso tão aceso e que todo mundo ali queria que continuasse a existir sempre, querendo só “é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci e poder me orgulhar…”. E essa música, a mais bonita de todas naquela quentura fastiosa, a poesia maior de todas, o maior fundamento de liberdade.
 
E aquela coisica pequena, tão linda e aquele olharzinho tão olharzão, que eu cruzava hora e outra, no meio da multidão e que me dava gotinhas de alegria nesse dia de Rio tão choro.
 
As crianças ali todas certeiras, completas de vontades, com cartazes fortes e seguros. Olhavam pras câmeras, rostos sérios, encarando qualquer coisa que essas câmeras (às vezes câmeras abutres…) tivessem a dizer, a corresponder, nem que fosse só com dor dividida, nem que fosse só com culpa.
 
Saí de lá me sentindo estranhamente culpada, cabeça abaixada, desmerecedora de qualquer coisa que eu já tenha, até de verdade, merecido. Isso também passa e depois dá até pra fazer música amena.
Com a dúvida se fazemos tão pouco porque somos impotentes no sistema ou se somos impotentes no sistema justamente por fazermos tão pouco.
 
E a vida passa.
 
E o Rio, que semana passada não me deixou dormir de cachaça, no Sábado de Aleluia não me dorme de tristeza.
 
P. S. Depois de tantas mortes, o governador Pezão deu a notícia que a PM vai ~reocupar~ o Alemão. “Vamos entrar mais fortes, fazer uma reocupação. Segurança continua sendo nossa política mãe”.
Segurança de quem, governador?
 
A mãe de quem?
 

Uma triste nulidade

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Fábio Konder Comparato*
 
Uma triste nulidade
 
É impossível decifrar os objetivos atuais do Partido dos Trabalhadores
 
Hipócrates, o Pai da Medicina, denominou krisis o momento preciso em que o olhar experiente do médico observa uma mudança súbita no estado do paciente, o instante em que se declaram nitidamente os sintomas da moléstia, ensejando o diagnóstico e o prognóstico.
 
Seremos capazes de fazer um juízo hipocrático da recente piora apresentada no estado mórbido, no qual se encontra, há muito tempo, a vida política brasileira? Creio que o diagnóstico deve ser feito em razão da realidade substancial de nossa sociedade, caracterizada pela estrutura de poder e pela mentalidade coletiva predominante.
 
No Brasil, desde os tempos coloniais, o poder supremo sempre pertenceu a dois grupos intimamente associados: os potentados privados e os grandes agentes estatais. Cada um deles exerce um poder ao mesmo tempo, em seu próprio benefício e complementar ao do outro. Os agentes do Estado dispõem da competência oficial de mando. Os potentados privados, da dominação econômica, agora acrescida do poder ideológico, com base no controle dos principais veículos de comunicação de massa.
 
Trata-se da essência do regime capitalista, pois, como bem advertiu o grande historiador francês Fernand Braudel, “o capitalismo só triunfa quando se alia ao Estado; quando é o Estado”. Quanto à mentalidade coletiva predominante, isso é, o conjunto das convicções e preferências valorativas que influenciam decisivamente o comportamento social, ela foi entre nós moldada por quase quatro séculos de escravidão legal.
 
Essa herança maldita acarretou, em ambos os grupos soberanos acima nomeados, um status de completa irresponsabilidade política, pois desde sempre eles se acharam, tais como os senhores de escravos, superiores à lei e isentos de todo controle. De onde o fato de a corrupção, nas altas esferas do poder público e no setor paraestatal, ter sido até agora tacitamente aceita como costume consolidado e irreformável.
 
Quanto às classes pobres, o longo passado escravocrata nelas inculcou uma atitude de permanente submissão. O pobre não quer exercer poder algum, prefere, antes, ser bem tratado pelos poderosos. Na verdade, o conjunto dos pobres jamais teve consciência dos seus direitos, por eles confundidos com favores recebidos dos que mandam.
 
No tocante à classe média, seus integrantes procuram em regra atuar como clientes dos grandes empresários, proclamando-se, a todo o tempo, defensores da lei e da ordem. Eles sempre desprezaram a classe pobre, ou temeram sua ascensão na escala social.
 
Para completar esse triste quadro, e seguindo a velha prática do mundo capitalista, nossos grupos dominantes aqui forjaram, desde o início, uma duplicidade de ordenamentos jurídicos: o oficial e o real. No Brasil colônia, as ordenações do rei de Portugal mereciam respeito, mas não obediência. O direito efetivo era o que os administradores oriundos da metrópole combinavam com os senhores de engenho e grandes fazendeiros. A partir da Independência, as Constituições aqui promulgadas seguiram o modelo dos países culturalmente adiantados, para melhor dissimular a primitiva realidade oligárquica, vigorante na prática.
 
A Constituição de 1988 não faz exceção à regra. Ela declara solenemente, logo em seu primeiro artigo, que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente”. Na prática, os ditos representantes do povo são eleitos, em sua quase totalidade, mediante financiamento empresarial. E o Congresso Nacional dispõe de competência exclusiva para “autorizar referendo e convocar plebiscito” (art. 49, inciso XV). Ou seja, o povo não exerce poder algum, nem direta nem indiretamente. Ele é simples figurante no teatro político.
 
Acontece que no centro da organização oficial do Estado brasileiro acha-se o seu chefe, isto é, o presidente da República. É de sua habilidade pessoal que depende o funcionamento, sem sobressaltos, desse sistema político de dupla face. Cabe-lhe manter, sob a aparência de respeito à Constituição e às leis, um bom relacionamento com os soberanos de fato, sem esquecer de agradar ao “povão”, dispensando-lhe módicas benesses.
 
Foi o que fez brilhantemente Lula durante oito anos. E é o que Dilma, por patente inabilidade, revelou-se incapaz de compreender e realizar, numa fase de prolongado desfalecimento da economia, no Brasil e no mundo. Ela entrou em choque com o Congresso Nacional, desconsiderou o Supremo Tribunal Federal (até hoje não nomeou o sucessor do Ministro Joaquim Barbosa, aposentado em 31 de julho de 2014) e acabou por se indispor com o empresariado, a baixa classe média e até a classe pobre, ao implementar a política de ajuste fiscal.
 
E o PT no bojo dessa crise?
 
Ele revelou-se uma triste nulidade política, decepcionando todos os que, como eu, se entusiasmaram com a sua fundação, em 1980. A nulidade é bem demonstrada pela leitura de seu atual estatuto, aprovado em 2013. Nele, por incrível que pareça, não há uma só palavra, ainda que de simples retórica, sobre os objetivos do partido. Todo o seu conteúdo diz respeito à organização interna, à qual, aliás, pode ser adotada por qualquer outra legenda.
 
Se esse diagnóstico é acertado, o que se há de fazer não é simplesmente aliviar a crise, mas atacar as causas profundas da moléstia.
 
Para tanto, a via cirúrgica, do tipo impeachment da presidenta ou golpe militar, não só é ineficaz como deletéria.
 
O que nos compete é iniciar desde logo a terapêutica adequada, consistente em quebrar a soberania oligárquica e reformar nossa mentalidade coletiva. Tudo à luz dos princípios da República (supremacia do bem comum do povo sobre os interesses particulares), da democracia autêntica (soberania do povo, fundada em crescente igualdade social), e do Estado de Direito, com o controle institucional de todos os poderes, inclusive o do povo soberano.
 
Bem sei que se trata de caminho longo e difícil. Não se pode esquecer que na vida política o essencial é fixar um objetivo claro para o bem da comunidade, e lutar por ele. Não é deixar as coisas como estão, para ver como ficam.
 
Fábio Konder Comparato é jurista e professor emérito da USP
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