quinta-feira, 8 de julho de 2010

NOTÍCIAS...

Apesar das dificuldades, eles querem aprender

Por Clarissa Carvalhaes, 08 jun. 2010

Enquanto apenas 2% de cerca de 2 mil estudantes do 3º ano do Ensino Médio querem seguir a carreira do magistério, conforme pesquisa da Fundação Carlos Chagas em 18 escolas de oito cidades do país, nas pequenas Jaboticatubas e Santana do Riacho, a menos de 100 quilômetros de Belo Horizonte, crianças vivem um verdadeiro martírio diário em busca da realização do sonho de estudar. A pé, de balsa ou ônibus, meninos e meninas que vivem na zona rural atravessam quilômetros em estradas de terra e asfalto até a escola. Mas, para esses estudantes, ainda que a educação conte hoje com escassos recursos, não há outra opção para tentar mudar o destino. É preciso seguir adiante.

Ser professora, jogador de futebol, advogada ou comprar um carro para levar os avós ao médico. Ninguém passa pela escola sem pensar num futuro melhor ou pelo menos diferente. É por isso que todos os dias os irmãos Ramon e Victor, de 10 e 8 anos, acordam às 7 da manhã. Eles vivem em Cardeal Mota, distrito de Santana do Riacho. Não existem, no momento, planos para a construção de escolas na região. Em função disso, Ramon e Victor saem de casa às 9 horas porque precisam chegar à escola às 12h30. São 112 quilômetros percorridos diariamente pelos meninos. Dentro do veículo, eles dormem, acordam, enjoam e até brincam, mas, ao contrário do que muitos possam supor, os irmãos garantem: nunca pensaram em deixar de frequentar a escola, nem mesmo quando as atividades escolares precisavam ser feitas à luz de velas – uma mudança que só aconteceu a pouco mais de cinco meses.

Ali, a infância parece ficar de lado – eles não têm muito tempo para isso. Nos cadernos, as letras e os números dos filhos (que só chegam em casa às 19 horas) representam a esperança dos pais que conseguiram estudar até a 3ª série do Ensino Fundamental. “Eles passam a maior parte do dia dentro do ônibus porque moramos muito longe. Às vezes eles almoçam na escola, mas há dias em que a merenda é canjica ou mingau, então eles ficam sem comer de verdade”, conta a mãe dos meninos, a dona de casa Maria Arlete dos Santos, 38 anos.

Para Genilson dos Santos, 35, pai de Ramon e Victor, a escola é a saída, uma alternativa para quem não quer ver os filhos trabalhando na roça a vida inteira. Além dos pequenos, o casal também tem Romário, 14 anos, e Jéssica, 12. Para os adolescentes, a rotina começa mais cedo, precisamente às 4 horas. “Nossa aula é às 7, por isso levantamos tão cedo. Somos sempre os primeiros a entrar e os últimos a sair da van”, conta Romário, que depois de deixar a escola, às 11 horas, só chega em casa com a irmã às 14. Para ela, o estuda começa abrir as portas para a profissão que tanto deseja seguir: ser professora.

Sem ponte, muitos estudantes ficam ilhados

Se ir ao colégio em dias de sol é difícil, imagine quando o tempo não coopera. “Todos os anos é a mesma história: eles ficam completamente ilhados porque quando chove o Rio Paraúna sobe muito e é impossível chegar até a casa deles. Deixo meu celular sempre ligado; fico pensando: ‘E se alguém passar mal por lá? Quem vai socorrer essa gente?’. Já não sei quantas vezes fui para a margem do rio e fiquei arremessando remédio ou comida pra eles. Só Deus pra nos proteger”, diz o motorista da van escolar que faz o percurso até a casa de Maria e Genilson quatro vezes por dia (ou 224 quilômetros), João Fernando da Silva, 47 anos.

O motorista também fica impressionado com o persistência dos quatro irmãos em irem para a escola. “Outras pessoas nessa situação já teriam desistido e ainda com uma boa desculpa, mas, com exceção dos dias chuvosos, eles não faltam um dia sequer”, afirma. Os irmãos são alunos da Escola Estadual Dona Francisca Josina, em Cardeal Mota, distrito de Santana do Riacho. Assim como eles, muitos outros estudantes vivem situação semelhante.

Para os professores, os percalços chegam até a sala de aula como incentivo. “A dedicação deles é o que mais nos motiva. Mesmo com todos os problemas que a educação enfrenta é preciso acreditar que o futuro está nas mãos dessas crianças. Não podemos desestimulá-las jamais”, afirma o professor de Ciências e Química, Gílson de Souza Moreira. A longa jornada e a má alimentação não apenas abatem fisicamente, como prejudicam a aprendizagem dos estudantes, o que não impede, entretanto, que eles tenham um bom rendimento escolar ou, ao menos, se esforcem bastante para isso. “Eles vivem um sacrifício imenso para chegar até a sala de aula e talvez por isso valorizam mais o estudo do que aqueles que moram ao lado da escola.

Para se ter uma ideia, tento poupá-los dos trabalhos em grupo exatamente porque sei a dificuldade que eles terão em fazê-los, mas eles protestam, fazem questão de participar, interagir, estarem presentes e por perto. Alguns acreditam que eles estão ilhados em casa, mas mentalmente estão mais livres do que muita gente”, diz o professor. Quando lembra desses meninos e de tantos outros em situação semelhante, a diretora Josefina de Freitas conta que retoma as forças e joga o desânimo por terra. “Assumi o compromisso de educar essas crianças quando decidi ser professora, não posso fazer diferente”, diz. “Peço pra que eles deixem todas as dificuldades do portão da escola pra fora. É preciso esquecer os desafios e pensar nas expectativas de melhora. É isso que queremos para eles”, diz a supervisora Lana Carvalho de Andrade.

O árduo percurso da roça até a escola

Viviane Ferreira tem 18 anos e estuda das 16 às 21h30 na Escola Estadual Doutor Eduardo Góes Filho, em São José do Almeida (distrito de Jaboticatubas). Prestes a concluir o 3º ano do Ensino Médio, ela garante que está bem longe de pensar em parar de estudar. “Minha avó sempre diz que tenho que ir até o fim e sempre em frente. Nós não temos uma vida fácil, mas isso não me impede de sonhar, de querer comprar um carro para levá-la ao médico e ter uma vida diferente”, diz.

A estudante mora com a mãe, os avós, dois irmãos e uma prima de 3 anos. E é na família que ela encontra apoio para continuar os estudos. Junto com os irmãos Fabrício, 16 anos, e Rosiane, de 15, ela derrubou um pé de palmito e outros de bambu numa tentativa de improvisar uma passagem e conseguir atravessar o Rio Paraúna. Em dias de chuva, além dos cadernos, as mochilas também levam chinelos que asseguram não encharcar os tênis e atrapalhar o percurso de casa/escola, escola/casa. De um ponto ao outro, Viviane e os irmãos caminham no escuro por quatro km de uma estrada de terra até o ponto de ônibus. Já dentro do escolar, eles percorrem outros 25.

Como não há postes de energia elétrica, eles improvisam a iluminação dos trechos com uma lanterna e contam com a ajuda da luz da lua para diminuir os tropeços e enxergar os perigos da escuridão. “Quando chove depois que já estamos na escola, não conseguimos voltar para casa porque o rio está muito cheio, não dá pra atravessar nem sobre as árvores que colocamos. A sorte é que, quando isso acontece, um homem que mora próximo ao rio deixa a gente dormir na casa dele”. A diretora Márcia Duarte conta que os professores do turno da noite faltam com frequência sem aviso à direção da escola, por isso não há tempo de repor a aula no mesmo dia. “Vejo o tamanho do sacrifício dos meninos e o quanto eles querem aprender. Imagine a frustração, depois de tantos percalços, chegar aqui e não ter aula”, disse, sublinhando que a evasão escolar aumentou na medida que os professores começaram a faltar ou simplesmente demonstraram frustração com o trabalho.

A estudante Kariny Silva, 16 anos, resume a sensação de chegar na sala e encontrar os professores insatisfeitos. “Nos sentimos esquecidos e sem importância para eles. Muitos descontam toda raiva na gente. Nós não temos culpa se o salário deles é ruim. Só queremos estudar”, diz.

A Secretaria da Educação de Jaboticatubas não se pronunciou sobre a questão.

Travessia feita por balsa

A mãe de Janete, Julieta Teixeira dos Santos, acorda às 4 da manhã para fazer o café da filha de 12 anos. É hora de levar a menina para a escola. O percurso é feito em duas horas, mas para chegar até lá, além de caminhar por três quilômetros e andar por mais 16 no ônibus escolar, mãe e filha precisam atravessar o Rio Paraúna numa balsa. Ela foi construída pelos moradores locais com tambores de plástico sob pedaços de madeira. “Não tenho coragem de deixá-la atravessar o rio sozinha, mesmo porque ela não teria força para empurrar a balsa”. Mas, quando é tempo de chuva, a menina não vai para a escola porque a correnteza é forte e não há braço que consiga vencê-la.

Além de Janete, Julieta e o marido João Roberto têm outros quatro filhos – todos já formados. “Cada um foi para um canto porque por aqui não tem jeito de ficar e vencer na vida. Sei que daqui a alguns anos a Janete estará indo embora. Não posso prever o futuro, mas daqui ela não sai sem antes terminar os estudos. Quero vê-la feliz nessa vida e sem a escola, não tem jeito, não”.

Fonte: http://www.hojeemdia.com.br/cmlink/hoje-em-dia/minas/

Nenhum comentário:

Postar um comentário