terça-feira, 24 de maio de 2011

Antropólogo lança diagnóstico preocupante do comportamento nacional

José Antônio Orlando - Editor-adjunto - 23/05/2011 - 18:10

Roberto DaMatta: trânsito no Brasil é revelador de concepções profundas e enraizadas

O comportamento do brasileiro ao volante é tema de “Fé em Deus e Pé na Tábua, ou, Como e Por Que o Trânsito Enlouquece no Brasil” (Editora Rocco, 192 páginas, R$ 25), que o antropólogo Roberto DaMatta lança nesta terça-feira (24) em Belo Horizonte, no projeto Sempre Um Papo. O debate, seguido de sessão de autógrafos, terá início às 19h30 no Auditório da Cemig (Avenida Barbacena, 1200, Santo Agostinho).

Escrito em parceria com João Gualberto Vasconcellos e Ricardo Pandolfi, o novo livro do autor de clássicos do pensamento nacional como “Carnavais, Malandros e Heróis” (1973) e “Águias, Burros e Borboletas: Um Ensaio Antropológico sobre o Jogo do Bicho” (1999), entre outros estudos que marcaram época, nasceu de duas pesquisas – ambas encomendadas pelo Governo do Estado do Espírito Santo, com o objetivo de melhorar o trânsito na capital, Vitória, e no restante do Estado.

“Dentro de um veículo, viramos nazi-fascistas. O problema é que temos dificuldades de lidar com o outro como um igual”, resume Roberto DaMatta em entrevista ao Hoje em Dia. Para o antropólogo, o trânsito caótico de nossas cidades e as relações entre pedestres, motoristas, caminhoneiros, motoqueiros e ciclistas traduzem à perfeição concepções profundas e enraizadas em nosso imaginário.

Para Roberto DaMatta, o trânsito espelha um panorama preocupante do comportamento do brasileiro – não só ao volante, mas também além dele. “O automóvel no Brasil é visto e usado justamente como instrumento de poder, dominação e divisão social”, destaca o antropólogo, que traça os parâmetros para o que se pode chamar de “sociologia do trânsito”. Confira os principais trechos da entrevista.

Vou começar a entrevista com o subtítulo de seu livro: como e por que o trânsito enlouquece no Brasil?
Roberto DaMatta – A tese é que o trânsito é um espaço absolutamente igualitário e governado por regras válidas para todos. Isso para nós, brasileiros, criados por mães condescendentes, pais ausentes e em casas onde todos nos acham superiores, promove um enorme desconforto. É uma espécie de provação ou castigo, sobretudo quando até hoje, não problematizamos ou politizamos devidamente, com debates e discussões mais inteligentes, a necessidade da igualdade como valor. Ora, uma cabeça hierarquizada operando e dirigindo num espaço igualitário resulta sempre em nervosismo, chilique, agressão e crime.


Sua análise sobre a cultura do brasileiro no trânsito privilegia a linguagem, em expressões como “você sabe com quem está falando?”, “dar uma fechadinha”, “fé em deus e pé na tábua” ou “motorista barbeiro”. As palavras, neste caso, são mesmo reveladoras?
O ‘sabe com quem está falando’ indica esse choque entre quem se pensa como superior e um funcionário que está cumprindo o seu papel, em geral fiscalizando alguma coisa. A revelação deste drama é mais ou menos assim: a regra vale para todos, mas não para mim que sou isso ou aquilo! Ou seja, a situação é resolvida porque entre igualdade e desigualdade, tendemos ficar com a desigualdade. O dado crítico é a descoberta que, no Brasil, a igualdade inferioriza porque nossa história de reis, senhores e escravos indicavam claramente que quem obedecia as regras eram os inferiores. Os superiores que as fabricavam e estavam no governo não tinham que segui-las ou delas prestar contas. Como está ocorrendo hoje.

E a expressão “fé em Deus e pé na tábua”, que você tomou como título para o livro?
No trânsito, "fé em Deus e pé na tábua" é a tradução dessa concepção especial de quem se sente ofendido quando, dentro de um carro novo, acha que os outros são todos atrapalhadores de seu destino. É neste sentido que os termos são reveladores. Eles mostram concepções profundas e enraizadas de como nós nos pensamos socialmente e como os outros, para nós, só existem como inferiores ou superiores. Temos dificuldades de lidar com o outro como um igual.

Em entrevista à revista “Trip”, você defende que nosso comportamento terrível no trânsito é resultado da incapacidade de sermos uma sociedade igualitária, de instituirmos a igualdade como um guia para a nossa conduta. Esta questão é mais visível no trânsito que em outras instituições nacionais?
Sim porque no trânsito não tem jeitinho e, pior que isso, você paga na hora o preço pela imprudência ou pelo descaso aristocrático com o sinal ou o cruzamento. O trânsito é como o mercado: é um sistema auto-regulável com um alto grau de automatismo. E isso é um problema para quem, como nós, tende a operar num universo onde dependendo da pessoa, a regra muda ou simplesmente não se aplica. Basta ler os jornal hoje para ver como esse é um desafio dos mais profundos para a nossa vida democrática, para quem é de fato liberal e democrata.

E a “gramática da buzina”? Será algo específico do comportamento do brasileiro ou também está enraizada em outros povos, outros países?
Dirigi por 18 anos em South Bend, Indiana, Estados Unidos e me lembro que fui buzinado duas vezes! O uso da buzina é o grito de superioridade diante do inferior ou do barbeiro que não deixa você passar. É um gesto revelador de nossa impaciência com o igual, com o companheiro que compartilha do mesmo público conosco.

E as normas? Seu livro alerta que qualquer legislação está destinada ao fracasso caso a sociedade que a recebe dela não necessite ou não esteja preparada para suas inevitáveis implicações disciplinadoras...
Esse é um ponto crítico. O estado tem que estar em contato e sincronia com a sociedade. Algo que não está ocorrendo no Brasil. Sem esse dialogo não há lei que pegue porque, primeiro, as leis não são seguidas pelos donos do poder. Segundo: as leis são feitas não para facilitar a vida, mas para corrigir o comportamento. E muitas vezes elas vão contra o bom-senso e as tradições da sociedade.

O que esperar para um futuro próximo desta dinâmica de relações que envolvem pedestres, ciclistas e motoristas de todos os tipos?
Se a gente não morrer, espero que surjam aqui e ali programas de igualdade no trânsito que, como estamos planejando realizar no estado do Espírito Santo, possam alertar as pessoas para esse tipo de problema. A saber: a construção de um espaço público mais saudável, mais prazeroso e mais civilizado.

Fonte: Jornal Hoje em Dia (BH - MG)

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