sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Raras razões da "humanidade" (Crônicas)

Salomão Ferreira de Souza*

Antes de propor razões para pensar julguei conveniente procurar esse objeto e, pela observação atenta, descobrir sua forma e anatomia, buscar a realidade objetiva da coisa. Acreditei que, dessa forma, uma vez descoberta as propriedades do objeto razão, poderia, num grande achado, propor seu uso prático para algum fim.

Conjecturei, talvez por minha estreita relação com a mídia, a possibilidade de lançar um catálogo contendo alguma variedade de razões em oferta, não sem o devido acompanhamento de manual de instrução em inglês, francês, alemão, chinês, russo, japonês, espanhol e português. Porém, para apresentar o raro produto nesse meu catálogo imaginário, achei conveniente contar um pouco a história da coisa em oferta.

Encontrei, num velho livro de mitologia, um pouco do que precisava para esta apresentação inicial. Dizia tal livro que foi Zeus, um Deus muito poderoso e vingativo, quem inventou a coisa e esse fato me deixou mais otimista, porque as pessoas gostam de velharias. Temos grande apego ao antigo. É como comprar tradições em antiquários.
Dizia aquele livro que, certa feita, Zeus achou conveniente colocar alguns animais no mundo porque a convivência com seus iguais era assombrosamente tediante. Zeus já não tolerava seus pares. Decidido alegrar o mundo, criou os bichos que povoam a terra.
Acontece que, por descuido, o deus maior do Olimpo não dotou os animais das ferramentas necessárias à sobrevivência. Somos todos vitimados pelo descuido de Zeus. Mas isso não importa. O que conta é que, ao notar o engano, chamou Epimeteu, o mais desmiolado dos deuses, e ordenou que ele descesse à terra e cuidasse de criar tais ferramentas. Parece um propósito sacana de Zeus. Porque não escolheu um deus mais ajuizado? É, mas isso também não importa, ou será que importa?

Bom, o certo é que, atendendo às recomendações feitas por Zeus, Epimeteu criou uma ferramenta para cada animal: patas para o leão, dentes enormes para o tigre, trompas fortes para o elefante, garras para o gavião, asas ágeis para o beija-flor - nem sei se àquela época Zeus havia criado beija-flor -, pernas velozes para a gazela, olhos profundos para a águia, chifres para os ruminantes e presas venenosas para as serpentes.
Munido todos os animais com as ferramentas adequadas para sobrevivência das espécies, ficou faltando o homem para quem Epimeteu, já esgotado seu esforço inventivo, nada encontrou que pudesse prover esse animal.

Muito preocupado e cheio de medos da ira de Zeus, quando soubesse de sua incompetência, Epimeteu voltou para o Olimpo e, temeroso, relatou o acontecido. Qual não foi sua surpresa e até alegria disfarçada, ao perceber a compaixão de Zeus com sua impossibilidade, embora o Deus maior não deixasse de entender a urgência desta solução, mesmo porque, como criatura sua, o homem não poderia perecer por tal descuido. Chamou ao irmão de Epimeteu, Prometeu, e deu-lhe a ordem de providenciar alguma ferramenta para o animal homem.

Sem nenhuma ideia na cabeça, Prometeu desceu à terra, andou muito e não conseguiu resolver o problema por aqui. Foi então, no desespero de sua falta de criatividade, que teve a ideia de roubar o fogo do carro sagrado e dá-lo aos homens. Acreditara que, de posse do fogo, o homem fosse capaz de forjar alguma ferramenta e, dessa maneira, projetar a imagem de um Prometeu competente, valorizando-o junto ao chefe dos deuses. Mas a astúcia de Prometeu não deu certo. Os homens usaram o fogo para fazer guerra e matar outros homens, de tal forma que Zeus quase viu exterminada sua criatura.

Foi então que, chamando Prometeu de lado, ficou sabendo o que acontecera. Pelo roubo do fogo do carro sagrado, e menos pelo quase extermínio dos homens, Zeus puniu Prometeu amarrando-o fortemente a duas montanhas, em lugar deserto, e ordenando que um abutre comesse seu fígado todos os dias. Como Prometeu era um deus, o órgão regenerava à noite para ser novamente comido durante o dia. Não sei por que isso me faz lembrar antigos filmes americanos, mas deve ser um engano ou uma falta de razão mesmo que me provoque essa impressão. O que importa é que, segundo aquele livro antigo, foi assim que aconteceu.

Há! Mas a história não acabou. Zeus, ao ver que os homens se matavam pelo fogo da guerra, produto do roubo de Prometeu (o homem é novamente vítima por se tornar, sem o saber, o receptador e também cúmplice do roubo), teve a brilhante ideia de, como chefe dos deuses e também como o primeiro culpado por esse descuido e falta de projeto, deu aos homens a razão. Com ela imaginou que eles aprenderiam a moderar, a buscar outros usos para o fogo criando, dessa maneira, ferramentas como flecha, arco, espada, escudo, enxada, foice, arado e, porque não, tratores, tanque de guerra e bombas.

Penso que Zeus, ao nos prover de Razão, acreditou que ela fosse multiplicar-se como multiplicaram suas criaturas na terra. Dessa vez o chefe do Olimpo enganou feio. Essa ferramenta é uma raridade por aqui.

Foi aí que tive a ideia de apresentar, como adepto da acumulação e das trocas, um catálogo com o que restou desse raro objeto.
Os preços, considerando a antiguidade e a escassez do produto, são uma verdadeira pechincha.

Vale a pena conferir!
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* - Salomão Ferreira de Souza - é escritor e graduando em pedagogia na FAE (Faculdade de Educação) - BH - UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais).

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