Salomão Ferreira de Souza - Belo Horizonte, 14 set. 2010
É como pássaro pequeno tentando sair do ninho para o primeiro vôo, que busco analisar o conceito de cultura. Entendo que uma planta crescida difere significativamente da semente que lhe deu origem. Dessa forma penso que as expressões simbólicas, míticas e religiosas de um povo, grupo ou sujeito são insuficientes para definir os objetivos práticos que, como semente, enraizou, criou um tronco e se projetou com seus galhos, folhas e frutos inumeráveis. Comparativamente, a cultura é como essa árvore imaginária que foi semente atirada ao solo e não só regada e cuidada mas, também, judiada pelas intempéries, açoitada pelos ventos, balançada pelos temporais e castigada pela seca e rigor de invernos. Nesse processo, umas galhas se quebram e morrem, folhas secam e caem, flores vingam se transformando em fruto e outras nem tanto. Nessa floresta imaginária, embora a matriz seja bastante homogênea, as árvores que dela resultam são bem diversas, mesmo quando descendem de uma gema comum. Assim sendo, tentarei transportar essa figura de linguagem para o campo conceitual, visando entender os ingredientes históricos, os mitos e religiões bem como as crenças, gostos, regras e costumes que perpassam a formação individual e grupal desse bípede chamado homem, cujos hábitos coletivos denominamos cultura.
Embora tendo estruturado o pensamento evolucionista, os estudos de Edmund B. Taylor podem ser questionados por considerar a "cultura" ou "civilização" como um processo linear onde os níveis são distintamente mais ou menos avançados. Vale lembrar que a semente deve ser vista com o olhar de quem percebe nela a essência da planta e a semente que dela retornará ao solo. Talvez devamos ter como sensatas as considerações de Bronislaw Malinowski quando propõe ao etnógrafo que saia do escritório ou laboratório e parta para o campo buscando entender que uma folha vermelha no chão pode significar não só a presença de uma determinada espécie de árvore, mas uma estação, um lugar geográfico, a humidade do ar e que, dessa mesma forma, um viajante ou um camelo podem revelar uma cultura que escapa até mesmo ao mais prescrutador olhar antropológico.
Visando conhecer a essência da semente cultural propomos uma leitura da teoria biológica de Humberto Maturana e Varela. Aqueles autores mostram a afetação do organismo biológico pelo meio e a interação desses, resultando daí o processo de aprender e trazendo respostas para o enfrentamento dos medos, das necessidades de sobrevivência e da defesa pessoal e coletiva. Para esses dois biólogos a complexidade está tanto no micro como no macro, embora haja constante assimilação e readaptação que se multiplica pela autorreprodução. Podemos interpretar esses processos como movimentos de afetação do meio sobre o organismo resultando daí a compreensão individual e coletiva desses sinais e a gestação de mecanismos de equilíbrio garantidores da sobrevivência de cada um e do conjunto. Afirmam aqueles biólogos que um alce, quando quebra as regras do grupo, de alguma forma que não compreendemos, está protegendo o bando. Ele se oferece ao predador tal como o farmacós, ou seja, a vítima sacrificial que morre para salvar. Essa disposição biológica e natural é bem diferente da realidade cultural onde os códigos e as regras geram instâncias de poder que determinam quem manda e quem obedece, quem se salva e que está condenado ao sacrifício.
Uma vez colocado um princípio primeiro dos mecanismos naturais de sobrivência, é justificável a concepção de Levy-Strauss quando afirma que homens e mulheres serão sempre seres biológicos e culturais, jamais viverão em estado de natureza. O homem é cultural na medida de suas organizações sociais que resultam do trabalho transformador da natureza em benefício da coletividade. Ao agir coletivamente estabelecem regras, códigos, leis e jogos de poder que são determinantes na distribuição geográfica das comunidades e no controle que alguns indivíduos exercem sobre outros. A cultura tanto está na tribo que se isola na floresta amazônica como no milionário que se refugia em algumas coberturas de luxo, alternando entre elas, visando a proteção de sua fortuna e a integridade de seus familiares. O primeiro garante a integridade do grupo pelo controle do território de coleta e caça e o segundo se desfigurando num ambiente de coisas sobre as quais perdera definitivamente o controle. O objetivo primordial da cultura como regras e modos que determinam o “ser” é engolido pela lógica bêbada do “ter”. Assim, confundem a razão de grupos humanos por uma de interesses econômicos, o farmacós pelo ataque assassínio ao outro, a família por grupos de interesse e a sociedade como potenciais clientes interpretados como objetos de acumulação e restos ou descuidos convenientemente esquecidos na lata de lixo das periferias.
Fazendo uma leitura da "vida como ela se apresenta", podemos perceber o quanto essa cultura avança sobre o homem, confundido-o em sua identidade de sujeito social, controlador e conhecedor de suas ações no mundo e levando-o para o lugar desse outro indivíduo que perdeu o controle sobre suas ações. Esse sujeito se vê cada vez mais imobilizado pelo produto de consumo resultante de suas ações transformadoras do mundo, transformações essas que vão além do necessário pois opera na lógica da acumulação capitalista. Essa nova lógica, cultural porque humana, está longe das determinações primeiras e primárias da essência do ser natural. Seus objetivos já não ligam o biológico - razão de sobrevivência e de organização do grupo -, aos princípios básicos de conservação do meio, garantidor da sobrevivência das gerações futuras e do controle sobre as ações individuais e coletivas que justificam os códigos, os símbolos e as regras cujo sentido só se assenta na aceitação coletiva. Não existe sociedade sem essas e não se justificam regras, símbolos e códigos absolutamente individualizados.
Por fim, voltando à nossa imaginária floresta, procuraremos compreender o emaranhado de galhos e cipós, que confundem o observador, para tentar encontrar, talvez na semente, a lógica essencial do matagal. Ali poderemos perceber a diversidade das plantas e sementes da mesma forma que num passeio pela cidade, podemos encontrar culturas diversas e saber que cada uma tem, ou pelo menos deveria ter, na sua essência, as mais diversas percepções de mundo que, imbricadas, ou seja, sobrepostas, visam garantir a sobrevivência e a integridade dos grupos sociais. Como visto, os rumos tomados pela acumulação capitalista afasta alguns membros sociais dessa primordial significação do “ser”. Vale pensar que, comparativamente, estamos perdendo o controle sobre essa selva que se estende por um território sem fronteiras, cujas sementes são lançadas pela mediação da comunicação de massa.
Assim a meditez determina o ritmo de crescimento dessa selva, suas fronteiras, seu tempo real e virtual. Nela o agigantamento de uns sufoca a maioria e, ao lançar sua sombra sobre as sementes, eliminam a essência da própria floresta. Essa reflexão, uma vez colocada, pode ser considerada essencial para a compreensão da diversidade cultural humana e da importância de se perceber o essencial que existe em cada uma delas. Uma vez compreendido esse mecanismo, fica mais fácil pensar os movimentos, as implicações presentes e futuras das tendências de aculturação, principalmente na sociedade contemporânea embriagada pelo mercado de consumo, pela mediatez da informação e pela falta de sentido das sociedades de espetáculo, onde os sujeitos se assemelham a rebanho pastando trivialidades como afirma Du Bois em sua interpretação da sociedade de consumo americana.
Salomão Ferreira de Souza - é aluno do terceiro período da Faculdade de Educação da UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais). Belo Horizonte, 14 de setembro de 2010.
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