terça-feira, 30 de novembro de 2010

MEIOS E FINS: O SENTIDO CULTURAL DAS COISAS

Salomão Ferreira de Souza*

Falaram-me em homem, em humanidade.
Mas eu não tenho visto nenhum homem, nem humanidade.
Vi muitos homens assombrosamente diferentes entre si,
separados por um espaço sem homens.

Alberto Caieiro em Fernando Pessoa, 2001, p. 169.

É por meio da semeadura que os homens garantem o sustento biológico para o corpo. Mas o semear, na simbologia humana, tem um significado que vai além de lançar germes de vegetais sobre um solo preparado. Isso porque os homens, ao coletar frutos ou caçar animais numa floresta natural, não estão lançando sementes sobre o solo em sentido literal, mas cultivando um jeito, uma maneira própria de fazer a coleta e transportá-la, fabricar instrumentos de caça, usá-los de tal ou qual maneira criando, por meio dessas ações, um cultivo próprio cujo fim vai além de saciar a fome.

São nossos órgãos dos sentidos os primeiros instrumentos decodificadores do mundo, do espaço geográfico e das condições materiais e é por eles que cultivamos simbologias, criamos regras e estabelecemos fronteiras e divisões de poder, trabalho e gênero, determinante dos modos de resolver os problemas essenciais da sobrevivência coletiva. A cultura é, dessa forma, um modo particular de cada grupo garantir seu sustento dentro das determinações materiais e temporais dos mais diversos espaços geográficos.

Dessa maneira não é cabível dizer do culto e do não-culto. Por exemplo, dentro do espaço urbano, nas condições reais de seus diversos grupos, o sujeito se sustenta e se resolve, estabelecendo suas relações de poder e regulação próprias. Esse mesmo sujeito, com sua cultura forjada nesse ambiente, não seria capaz de resolver os problemas de sobrevivência e relações humanas dentro de uma floresta, coisa que um indígena resolveria com facilidade. Aquele sujeito urbano teria que semear outras sementes, novas ou híbridas, num campo de preparo difícil e colheita demorada. O tempo de semeadura e de colheita dependeria, diretamente, da capacidade do indivíduo ler e dar significados ao novo espaço.

Por fim, as relações de poder seriam estabelecidas dentro de regras e códigos numa condição totalmente nova, posto que a origem urbana do sujeito, ao adentrar outro espaço, levaria consigo alguma cultura que não o abandona totalmente. Esse sujeito, ao mudar de ambiente, traz consigo sementes que serão usadas de forma natural ou híbrida no campo novo.

Essa é a compreensão que devemos ter da cultura: que é diversa; que se acha em todo espaço das convivências humanas; que não tem a hierarquia metafísica aristotélica - objeto ideológico legitimador das hierarquias das ações -; que não é definitiva nem cristalizada; que não se faz igual nos diversos espaços temporais e geográficos; que são determinantes dos modos de vida de seus atores e, finalmente, que se dá no e pelo consenso entre os membros do grupo e desses com os outros por meio da assimilação onde a minoria fornece suas melhores sementes ao grupo dominante, no pluralismo cultural pela divisão de espaço e poder ou hibridismo das sementes culturais e na concepção multiétnica que pressupõe ensinar às minorias o cultivo da semente do grupo dominante.

Uma vez compreendido essa particularidade da cultura fica mais fácil entender as condições reais de cada grupo detro do espaço global, onde o exercício de poder está centrado no Norte e as condições de trabalho abaixo do Equador.

Historicamente, como podemos perceber na geografia global, temos para além dos limites simbólicos de cada território nacional, um outro limite imaginário cuja fronteira oscila nas proximidades do Equador, numa suposta divisão entre poder e não-poder, progresso e atraso, culta e não-cultura.

Quando falamos dessa divisão de poder (Norte) e trabalho (Sul), estamos nos referindo à ideologia aristotélica e medieva que considera, na hierarquia dos quatro movimentos (qualitativo, quantitativo, locomoção e geração ou corrupção dos corpos), na visão grega ou nas quatro causas (material, formal, motriz ou eficiente e final) na visão filosófica medieval. Essa metafísica aristotélica coloca o desejo de ter algo hierarquicamente superior à ação de fabricar este algo desejado.

Dessa maneira, desejar um carro é mais importante que retirar todos os produtos naturais que o compõem e que estão dispersos pelo planeta de forma bruta. Colher esses elementos, purificá-los, transportá-los até um espaço geográfico determinado, dar-lhes a forma e as funções de um carro, nessa visão ideológica, tem pouco valor nas relações de poder. O iluminado é quem deseja, pois esse tem as idéias, o acesso à luz, ao divino e por vezes, para justificar essa proximidade, legitima-se religiões, alinham-se aos sacerdotes que são legitimados e legitimadores, numa clara troca de interesses. Enquanto isso, aqueles que produzem as condições materiais, sustentáculo daquelas condição de poder, são considerados o estamento inferior da sociedade, o lado obscuro do humano. A isso chamamos ideologia.

Todas as culturas estão impregnadas de ideologias e, sem que percebamos, usamos dos mesmos mecanismos nas relações com os outros: no trabalho há quem deseja fazer e quem faz. E isso, por sua vez, determina quem manda e quem obedece, quem pode e quem não pode e, por vezes, esconde uma outra relação que é a de quem supostamente sabe e aquele que não sabe, a quem só resta a ação, como se essa não tivesse um saber necessário.

Para além das ideologias somos humanos. Antes mesmo de sermos humanos, somos seres vivos. Ser vivo exige troca constante entre o biológico e o mineral. Esse fenômeno é primordial à reprodução e manutenção da vida em todos os estágios. Para haver trocas é necessário um afetamento ou seja, uma capacidade do organismo vivo ler, interpretar e agir sobre o mundo. A falta dessa capacidade imobiliza o organismo e inviabiliza a vida.

Essa é a determinação natural da vida na Terra. Vale lembrar que não dispomos de outro planeta: ele é único e finito e é aqui que devemos compartilhar espaços. A apartir dessa realidade fica fácil perceber que precisamos pensar nossas relações com o outro. Sabemos que os homens e as mulheres, como seres culturais que são, criaram novos sentidos para o afetamento, as leituras e as ações no mundo.

Embora a essência da vida dependa do afetamento, da leitura e da ação dos organismos sobre o ambiente, na cultura esse sentido se perde por meio do estabelecimento de instâncias de poder onde uns poucos podem usufruir das trocas e outros apenas agir no mundo por determinação ideológica daqueles que desejam. Dessa maneira, as transformações resultantes das ações dos homens sobre os elementos naturais, transformando-os em objetos de uso, na absurda maioria das vezes, serve ao desejo de poucos. Vejam a espantosa quantidade de seres que se deslocam diariamente das periferias para as áreas centrais das grandes metrópoles mundiais. De onde vem e para onde vai essa gente toda? No burburinho cotidiano a que acostumamos, ignoramos os rumos que essa gente toma e, pior que isso, não perguntamos pelo trabalho que elas produzem. Alguém, por acaso, ao entrar em um grande shopping center, pergunta quais as mãos que o construíram? Os enfeites, as luzes, as vitrines, tudo conduz ao consumo, à afloração de desejos os mais apurados e mais estravagantes possíveis. Mas a pergunta que se nega a fazer, talvez pelo ofuscamento daquela enorme quantidade de luzes, não é quem deseja tudo isso, mesmo porque os desejos são vários e distintos. Há aqueles que se realizam e muitos que se perdem na impossibilidade material e temporal porque os desejosos, uma vez ocupados com as ações cotidianas de atender o desejos dos outros, fica impossibilitada de realizar os seus. Dessa forma se perdem na sua própria condição alienada. A pergunta que se instala é: que mãos fizeram tudo isso? E no fim da tarde ou da noite uma enorme multidão volta calada para dormitórios distantes dos shoppings e dos grandes edifícios da cidade. Essa esquece as mãos que a construíram e que atende prontamente seus mais sofisticados desejos e vai dormir no sossego de sua alienação programada.

* - Salomão Ferreira de Souza - é escritor e graduando em pedagogia na FAE (Faculdade de Educação) - BH - UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais).

Nenhum comentário:

Postar um comentário