por Lúcio Alves de Barros*
Se existe um grupo de agentes que definitivamente perderam com a modernidade foi o conjunto das pessoas que fazem parte da fase do ciclo da vida que denominamos de infância. É mais do que lamentável o fenômeno em apreço. Não faz muito tempo que a criança era entendida como o futuro de um país e/ou a possibilidade iminente de dias melhores. Ledo engano: hodiernamente a infância é tratada como algo qualquer, um adulto em miniatura, um proletariado em potencial, uma projeção ininterrupta dos pais e uma fonte de renda para agentes do mercado.
O fenômeno é vergonhoso quando se torna banal e ostensiva a percepção de crianças andando a esmo, pedindo dinheiro e comida nas esquinas e nas ruas das grandes e pequenas cidades. Adultos chegam a mencionar a necessidade de trabalho, à guisa de aprendizagem, e maior tempo nas organizações escolares. Boa forma de diminuir a responsabilidade em tempos de crise de autoridade e atenção. Lugar de criança é na escola e suas atividades principais são a de estudar, conhecer e brincar. Ponto final. Perdoem-me os pais que colocam os ainda infantes para laborar na lida diária: que não tivessem filhos ou que se preparassem melhor para tê-los. Pode-se argumentar que o trabalho é bom e crescer rápido é comum em determinadas subculturas. Como tudo na vida, as conseqüências são imprevistas e não é por acaso que perdemos um exército de crianças para o tráfico de drogas e para o hedonismo desenfreado da cultura de mercado.
Muitos culpam a família, a escola, o Estado e até Deus pelas condições que perpassam o mundo infantil. Todavia, a questão é simples e está patente para todo mundo ver e se preocupar. Claro, se existir pelo menos a boa vontade para isso. O curioso é que não faltam aqueles que asseveram ser o “dono da criança no banho”, mas que não se arriscam a pegar para criar. A começar pelos proprietários dos discursos. Como não é bom dar nomes aos bois, até porque seria difícil, nada como ver o famigerado campo normativo que tenta através do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) garantir alguns direitos. Ele pode até funcionar em certos casos, principalmente, quando em xeque está o direito das crianças mais abastadas. No entanto, partir do pressuposto de que o término da infância se dá aos 12 anos e, após essa idade tem início a adolescência é, além de um precário sinal, é um mal começo de conversa. De qualquer forma não deixa de ser um discurso legitimado pela sociedade e levado a cabo pelos donos da lei.
Na esfera do discurso é forçoso mencionar aqueles que se apegam ao campo da psicologia, da medicina (notadamente a pediatria) e da pedagogia para definir infância, um conceito por definição e natureza polissêmico e de difícil manejo. Não raro, muitos profissionais ainda misturam tais esferas ao campo normativo e, nas muitas entrevistas que entopem jornais e outros meios de comunicação, acabam caindo no discurso forense e, por ressonância, criminalizando, culpabilizando, adoecendo ou enlouquecendo as crianças. De duas uma: (1) ou desejam notoriedade, ou (2) optam por um discurso já legitimado (mas sem fundamentos poderosos) para não correr o risco do debate, da crítica e do contraditório.
Na realidade estamos perdidos: teorias com fortes modelos heurísticos como a de Jean Piaget (1896-7980), Georg Herbert Mead (1863-1931), ou mesmo de Sigmund Freud (1856-1939) não mais respondem nossas questões. A infância mudou de perfil e se é para “melhor” ou para “pior”, não se sabe. O fato é que muitas vezes facilmente somos surpreendidos com adultos exigindo das crianças atitudes que elas não têm competência para tomar. Mais que isso, muitos induzem a criança a virar rapidamente adultos e “produtivos”. Ate até os marketeiros já não as deixam em paz, vendo nelas um potente grupo de consumidores.
De consumidoras compulsivas a alienadas obsessivas não é preciso ir longe para a comprovação de certos “fenômenos infantis”. Lembro-me do fenômeno "Xuxa": uma adulta, uma personagem histérica, uma eterna criança que vê gnomos e faz filmes sem o mínimo de sentido. Na esteira da sua sempre jovem personagem não é de se esperar outra coisa senão crianças desejando cabelos loiros, silicones salientes, plásticas sem fim e uma possível produção independente no futuro. Nada contra a figura em si, mas tudo contra a disseminação de uma cultura perversa do consumo infantil. E é de causar perplexidade a conveniência dos pais que no desejo de se livrar da garotada consumidora e cheia de energia não poupa recursos para ir às compras de brinquedos, utensílios, sapatos e roupas que praticamente sexualizam a criança dando margem para desejos e perversões do mundo adulto.
Não estou exagerando e, para colocar mais fogo no debate, sugiro aos leitores que façam viagens ao litoral brasileiro no intuito de verificar adultos - muitos “gringos” - de olhos bem abertos sobre a carne nova que está à solta a pedir esmolas nas esquinas, praças e praias da cidade. Se não existe uma grave crise no campo do que se convencionou chamar “infância”, não sei do que podemos isso chamar. Em algum lugar na história perdemos a capacidade de entender o ser que ainda “não sabe perfeitamente o que faz”. É isso mesmo: em uma livre enquete em salas de aulas perguntei aos meus alunos de pedagogia sobre o que entendiam sobre a infância. As respostas foram as mesmas dos meus alunos de direito e administração: “é inocência”, “é brincadeira”, “é curiosidade”, “é ignorância”, “é beleza”, “é carinho”, “é busca de conhecimento”, “é medo”, é insegurança”, “é transparência”, e “é um ser que precisa de respeito”. Pois bem, temos as respostas e estão na ponta da língua. Contudo, da teoria à prática e da fala à ação a distância é enorme. Não creio que seja por pura ignorância, mas por covardia, cansaço e falta de entendimento do fenômeno é que estamos perdendo o que realmente está ocorrendo com nossos infantes.
E não venham com o livro do historiador Philippe Áries, “História Social da Criança e da Família”, o qual marcou uma série de estudos apontando para a acepção da existência de “infâncias” e idades socialmente construídas através do tempo. Infelizmente, a historia também é utilizada para legitimar discursos, mas nada como o aqui e o agora. Nesse momento, rascunho parte do presente texto sentado em um ponto de ônibus e vejo duas crianças a esmolar. Um pouco mais tarde três passaram a correr descalças atrás de um coletivo urbano. E não longe, no carnaval de três capitais brasileiras, eram observáveis crianças jogadas em carros alegóricos com poucas roupas a sambar como mulatas, sem falar das constantes investidas do Senhor Sílvio Santos contra uma menor na TV. Se a criança é respeito, sinceramente, não o vejo e nem percebo uma política pública nesse sentido. E não seria uma má ideia. Imaginem secretarias e ministérios responsáveis somente pelo “ser criança”. Já passou da hora do tema “infância” sair do quintal das organizações (públicas e privadas), bem como do consciente e do inconsciente das autoridades para se transformar em uma poderosa máquina de política pública.
Faz tempo que deixamos de ouvir a voz dos pequenos. Quando escutamos, por vezes atrapalhamos e caminhamos em sentidos duvidosos. A criança não escapou nem da politização e dos interesses escusos de muitos adultos. Crianças produzem cultura. Forjam aqui e ali subculturas e funcionam como elos fortes de cadeias sociais. Suas representações encantam o mundo adulto. E se estamos carentes de saída para o vazio existencial, erro pouco em afirmar que ela está em nossa frente, carregada de inocência, esperança, perseverança e ações que podem modificar a realidade.
Finalmente, vale uma sugestão: há tempos perguntamos e acreditamos no mundo adulto. Sugiro perguntar e observar o mundo da criança deixando espaços para que elas possam encantar o coração já falido, a ideia já morta, a escola sem autoridade, a política já corrupta e a família desestruturada. Talvez, diante dos acontecimentos modernos, seria melhor para elas. (Não) Tenho ciência absoluta da sugestão, mas diante do quebra cabeça familiar, da “salada mista” da televisão, dos bandidos e policiais da política e das bruxas e gnomos das escolas, seria bom nos divertir com brincadeiras de verdade, das quais sabemos as regras, principalmente quando do início, do meio e do fim.
* Doutor em sociologia e professor da UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais). Texto publicado em Revista Educação Pública. Reflexão e interação de educadores. Disponível em: http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/comportamento/0039.html
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