terça-feira, 20 de setembro de 2011

A traição dos olhos



Por Salomão Ferreira de Souza*

Os olhos às vezes nos traem, outras muitas são fiéis como bois, que sabem se fixar no chão que os alimentam. Os meus, quando no cio, costumam ficar incontrolavelmente traidores, principalmente na primavera e no outono quando sou mais afeito ao perdão. No campo, eles passeiam preguiçosamente e aproveitam a lentidão do passo para suas maiores traições. Já na cidade, o tropel, muitas vezes, rouba-lhes a cena impossibilitando maiores infidelidades. Mas há aqueles momentos incontroláveis em que nada impede os olhos de nos traírem a confiança, como parceiros urbanos de falsas fidelidades.

Hoje, para maior desagrado e revolta, meus olhos cometeram uma daquelas traições que não merecem desculpas. Nem perdão! Enquanto eu e meus olhos passeávamos pelas ruas da cidade, deixei-os muito à solta explorando as árvores, os pequenos pedaços de céu por entre os edifícios. Livremente passearam pelos rostos velhos e jovens; repararam, sem censura, as alegrias e tristezas expressas naquelas faces; acompanharam, furtivos, os passos apressados das pessoas rindo de suas urgências. Nas calçadas, detiveram-se nos mínimos restos de coisas e nelas mesmas: um fragmento de jornal, um estilhaço de retrovisor, cartão de loteria e pombos tristes catando migalhas. Mais à frente, notaram folhas vermelhas espalhadas pelo passeio, denunciando castanheiras próximas e fazendo lembrar outonos, como prenúncio de invernos.

Ao deixar a Carandaí e adentrar a Paraíba tudo teria continuado igual, inclusive a liberdade de meus olhos, não fosse essa máxima traição. Quando percebi já era tarde e eles se fixaram numa pequena mancha verde no meio da calçada. Num grande esforço, tentei faze-los fugir. Sem sucesso! Aquela coisa estava lá, como uma pasta disforme, ladeada por meia dúzia de pedrinhas. Para maior traição, meus olhos retiveram o passo num instante suficiente para consumar o ato. Repararam que, além do verde, havia uma mancha marrom estendendo-se na direção do asfalto. Viram, redobrando a atenção, que a mancha marrom estava delimitada por um delicado fio vermelho. Repararam, também, que uma espécie de asa estendia aquela coisa para o lado oposto da mancha, sugerindo um movimento, um vôo, que reacendia lembranças de velhas casas de joão-de-barro e a tagarelice de seus hóspedes em antigas primaveras. Não deixaram passar despercebido um minúsculo pontinho preto lembrando olhos que, igualmente, já traíram muito.

Num esforço maior, consegui seguir em frente. Já no Centro de Convivências da FaE (Faculdade de Educação), resolvi falar um pouco dessa grande traição dos olhos, ante as coisas que prefiro ignorar, principalmente aquela, pastosa e disforme, que acabara de ver na calçada. Pensei nessa como um grito cortando céus e que agora é só silêncio; um vôo encerrado na fria imobilidade do chão da cidade.

Foi aí que descobri, como numa revelação súbita, que aquela pequena mancha fora um periquito e agora é apenas um número, que se soma às tantas coisas invisíveis espalhadas pelos espaços urbanos.

Hoje estou danado comigo, porque já não consigo a fidelidade de meus olhos.
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* - é escritor em Belo Horiozonte

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