Para Sandra, minha aluna na UEMG
Lúcio Alves de Barros*
É sempre bom rever conceitos e firmar determinadas vulnerabilidades. Tais condições deveriam ser naturais entre o professorado. Muitas vezes somos tomados por dúvidas, conflitos e vira e mexe com problemas em relação a certos conhecimentos. Talvez as preocupações devessem ser menores neste campo. Por vezes esquecemos de nossa humanidade e tentamos responder a todos e a todas de uma só vez. Não sou daqueles que temem errar. Corro atrás da verdade mesmo sabendo que talvez ela inexista. Mas gosto quando a dúvida e o equívoco aparecem. Fico mais entusiasmado com a vida e tento repor o conhecimento perdido ou que nunca fora encontrado.
Este é o caso das dúvidas que me esforço em pelo menos responder aos alunos acerca da existência de Deus, da forma como os seres humanos tentam encontrá-Lo e, dependendo do estado de espírito, das várias maneiras que Ele se manifesta entre nós. O último episódio não foi diferente. Há tempos ando distante da sociologia das religiões e dos meus fracos e poucos estudos de teologia. Todavia, ainda recordo de minha viagem a Salvador e ao sertão baiano, locais nos quais guardei muitas informações sobre a busca de Deus e do sentido de nossa vida. Também não faz muito tempo que encontrei muitas das referências religiosas nas escolas de samba de Vitória, São Paulo e Florianópolis. Estou me referindo às maravilhosas e fantásticas entidades divinas que fazem parte do que se convencionou denominar religião afro-brasileira. Não vou alongar por aqui, somente estou escrevendo para não mais esquecer as figuras que tenho que lembrar quando alunos e alunas perguntam. Talvez o texto tente responder mais ao ego do que às dúvidas do outro. Pouco importa, creio que vai ter lá sua utilidade para quem um dia se interessar pelo assunto.
O caso em questão se refere às entidades que fazem parte do Candomblé e da Umbanda. Grosso modo, pode-se dizer com certa exatidão que o Candomblé no Brasil encontrou espaço privilegiado no estado da Bahia no qual vem enfrentando sérios preconceitos dos protestantes. Trata-se de uma religião da nação africana Ioruba, um grupo étnico da África que fala a língua ioruba. Boa parte dele vive na Nigéria. As principais entidades desta religião são o Olorum, um deus poderoso que criou o Obatalá (o céu) e o Odudua (a Terra). Da união encantada do "céu" e da "terra" nasceu a maravilhosa Iemanjá (yeye ma ajá = mãe cujos filhos são peixes), essa deusa das águas e que vigia com cuidado o mar. Também nasceu a Aganju, a "terra firme" e fértil que se uniram na criação de Orungã, essa entidade deificada que entra no nosso corpo através do ar.
Como visto, nada a temer nesse mundo encantado de explicações maravilhosas em torno da existência de Deus. Na maioria das vezes, os fiéis os chamam de Orixás, associando-os à força da natureza e a determinadas condições objetivas da vida. Em uma sensação talvez normal de nervosismo uma mãe de santo me disse que "estava no vento" e reagiu à minha pergunta dizendo que Ele estava "dentro de mim". Maravilhoso e poético o episódio, pois não deixou de afirmar que a principal manifestação de Olorum estava presente, o Oxalá. Difícil não se comover com a representação deificada daquele momento quente da noite de luar em Salvador. E naquele mesmo momento foi reafirmado o que havia lido e aprendido ao longo da vida em busca de Deus. Retomei minhas anotações e encontrei em meios a muitos papéis amarelados que algumas entidades africanas, devido principalmente ao nosso passado escravocrata e excludente, foram associadas aos santos católicos. Dentre tantos, vale mencionar Ogum, o deus do ferro e da guerra, várias vezes lembrado nos romances de Jorge Amado que aparece materializado na figura cândida de Santo Antônio ou na persona forte e robusta de São Jorge. O deus das doenças, Omolu, é o curioso e apaixonante São Lázaro, o protetor dos animais que andava com muitos cães em seu encalço a lamber suas feridas. Em Salvador ele tem uma igreja e nela os animais podem entrar com direito a banho de pipoca na saída e tudo mais.
O deus Oxumarê, representado por uma serpente, é São Bartolomeu. Oxóssi, o deus guerreiro da caça também encontra em São Jorge um bravo defensor dos mais fracos e vencedor de lutas contra os dragões do pecado na igreja católica. Um dos mais lembrados é Xangô, esse deus do trovão que recebe fortes tintas na figura de São Jerônimo. Não que Xangô fosse mulherengo, mas suas três mulheres também receberam novas tintas dos negros encarcerados. Iansã, um nome que acho maravilhoso, é a deusa dos ventos e das tempestades, representada pela bela Santa Bárbara; Oxum, talvez nestes tempos modernos a mais agraciada, é a deusa das fontes, da inteligência e da beleza. Sua representação no catolicismo é a Nossa Senhora das Candeias. A última, e não menos importante, é Obá, uma deusa associada à água, também guerreira e lembrada pela sua forte capacidade de amar. Um amor absoluto e indestrutível presente nas mulheres fortes de temperamento e que se anulam quando amam. A representção dela é Santa Catarina, conhecida por suas investidas junto aos Papas influentes nas Cruzadas.
Duas figuras sempre chamam a atenção, talvez pelos mistérios que guardam ou pela desviante vida deificada dos santos. A primeira é a figura do Exu. Uma entidade controversa que no espiritismo tem recebido a roupagem dos maus espítiritos. No Candomblé ou mesmo em algumas faces da Umbanda ele aparece como o mais humano dos orixás. No catolicismo recebeu o símbolo do demônio, da perversidade, do sadismo e da "coisa ruim". Mas longe do maniqueísmo do cristianisnmo como ideologia, ele é entendido como a entidade que revela nossa vulnerabilidade, finitude, maldades, instintos de morte presentes em nossa alma e certas condutas. Não se trata de uma entidade boa ou má: ela é a própria ambivalência de nosso inconsciente que navega entre o ego e o superego. É extremamente comprrensível essa representação, uma forma simples e singela que nos dá uma explicação racional tanto para o bem quanto para o mal que andamos fazendo por aí.
A segunda entidade a ser lembrada é a famosa Pombagira. Temida por muitos e amada por outros essa entidade é considerada um Exu feminino. Resultado do choque de tradições - na Umbanda principalmente - encontra raízes religiosas afro-brasileiras com o espiritismo kardecista francês. Ela também trabalha tanto para a esquerda (o mal) como para a direita (o bem). É capaz para os crentes de devolver a mulher amada, o homem que partiu ou simplesmente dividir um casal romântico e colocar uma pulga atrás da orelha do machão mulherengo. Não é por acaso que esta entidade espiritual é associada à luxúria, aos prazeres da carne, à sensualidade e ao sexo. Muitos a entendem como um conceito, outros, notadamente os kardecista, como espíritos de mulheres que encarnadas se deram ao trabalho de ser amantes, boas prostitutas ou mulheres sensuais ligadas aos "prazeres da carne". Não deixa de ser uma entidade curiosa, geralmente representada como uma mulher de vestimenta vermelha e de forte personalidade. Sempre bonita, jovem, elegante e feminina, recebe o devido respeito, pois impõe medo. Tal como a mulher traída, é capaz de tudo. Suas ações podem resultar em bons conselhos, curas, felicidades e proteção. Por outro lado, ela pode ser extremamamente má usando o seu poder para desmanchar amores, carregar outros espíritos, atormentar os vivos e, por vezes, levar à morte.
Não vejo a necessidade de tantas críticas oriundas dos evangélicos em relação às maravilhosas entidades da religião afro-brasileira. Não há o que temer: ao pesquisar o assunto somos surpreendidos por um mundo tal como ele é. Não existe essa de rápidas mudanças ou de enganações de toda ordem. Tal como outras religiões, encontramos a fé, um mundo encantado, cheios de paradoxos, ambivalências e contradições próprias da vida dos bípedes humanos repletas de sofrimento e dor. Nos cultos do Candomblé o pedido e o encontro com as divindades são realizados nos "terreiros" de um "pai de santo" (babalorixá) ou "mãe de santo" (ialorixá). Por tradição e ritual social alguns oferecem aos orixás animais sacrificados. Prática que não é deixada para qualquer um. Aos iniciados os cultos são democráticos, abertos e não passam de oferendas e consultas aos orixás por meio de búzios jogados em uma mesa ou peneira, ou consultas acompanhadas por copos de água e muita fumaça proveniente de charutos. É bom lembrar que vários rituais são acompanhados de tambores, atabaques e cantos. Muitos ritmos seguem a efervescência religiosa que dificilmente passa despercebida pelo visitante.
Na Umbanda a coisa não é tão diferente. Ela recebeu forte influência do espiritismo e se desenvolveu - principalmente - no Brasil. Mas, tal como o Candomblé, é resultado da complexa mistura de tradições religiosas africanas, indígenas e católicas. É notável nos cultos a presença dos respeitados "caboclos", normalmente chamados de "pretos-velhos", ou seja, espíritos dos antepassados que servem de guias ou conselheiros aos crentes. Todavia, já se sabe que o kardecismo forjou a "Umbanda de mesa" e a "Umbanda de salão", espaços nos quais se encontram pontos de sessões de passe e de consulta aos espíritos através de "pessoas especiais e respeitadas", os médiuns. O culto também é marcado por belas músicas, muitas delas melancólicas e conformistas, mas que não deixam de trazer certo bem estar a alma da gente.
O Candomblé e a Umbanda funcionam na verdade tal como os dogmas, santos, rituais e doutrinas da igreja católica; e também não estão distantes das músicas, festivais de fé, normas e regras do protestantismo hodierno. O interessanate nas religiões afro-descendentes foi a sua necessária e obrigatória flexibilização de alternativas em relação aos preceitos, doutrinas e santos da igreja católica. Impossível não pensar que tratou-se de uma adaptação, uma alternativa com méritos e que, certamente, operou em favor da manutenção de relações sociais e preservação do tecido cultural de um povo que veio rasgado, levianamente usurpado e violentado da África. Impossível, neste sentido, não pensar na existência de Deus, o Qual se manifesta de todas as formas na crença do ser humano de que existe um mundo diferente do que este. Graças a Ele estamos por aqui e graças a Ele continuamos com as dúvidas de minha aluna e com a possibilidade de livremente pedir ou suplicar ajuda na hora em que mais precisamos.
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* - Professor de sociologia e antropologia.
Infelizmente o preconceito dos protestantes, ditos hoje, evangélicos é grande em relação a qualquer outro tipo de religião. E é duro enfrentar o diálogo com quem se acha dono da verdade. Claro, nem todos são assim, mas grande parte ...
ResponderExcluirQue texto lindo! Sou uma apaixonada por esses assuntos de espiritualidade. É sempre bom um contato com um texto desses: claro, limpo, livre de preconceitos. Um poema à liberdade e um canto ao Patrimônio Cultural. Culturas que atravessaram oceanos para se juntar a nossa e formar o que somos: o povo brasileiro.
ResponderExcluirAbraços:
Silvia