segunda-feira, 11 de julho de 2011

Violência, redescrição e democracia liberal

Por Paulo Ghiraldelli

O Brasil é um país onde em relação a tudo “se dá um jeitinho”. Somos um povo que não leva a vida a ferro e fogo. Verdade? Os dados estatísticos não confirmam tal imagem.Dados recentes do IBGE mostram que passa de 43% o número das mulheres brasileiras que já sofreram agressão doméstica. O Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo, também em indicação recente, revelou que mais de 86% dos professores paulistas já sofreram, da parte de alunos, alguma agressão física ou psicológica dentro do ambiente escolar. Números do movimento gay revelam que, nos últimos tempos, há o registro de mais de 220 mortes de homossexuais por ano, sendo tais mortes ocorridas por conta de as vítimas serem homossexuais – sendo que esse número, por falta de um monitoramento maior, abrangendo todo o Brasil, pode ser o dobro. Pelo senso do IBGE, entre 2002 e 2008 o assassinato de brancos caiu 30% no Brasil, sendo que o de negros, no mesmo período, teve um aumento de 13%.

É claro que essa violência contra grupos específicos é vista pelos setores conservadores como algo que nada revela. Os setores conservadores tendem a dizer que a violência em geral tem aumentado. Eles não mentem. Os dados mostram que o número de assassinatos no Brasil, em vinte anos, cresceu 237%. Por dados da ONU, o Brasil abriga 11% (por ano) das vítimas de assassinatos do nosso planeta. Isso representa 40 mil pessoas por ano! Os conservadores erram é quanto à solução que eles fornecem: sempre indicam como necessário o aumento do contingente policial. Mas, aí os dados não os favorecem muito. O Brasil tem um policial para cada 304 habitantes, o que é um número igual ao das democracias ocidentais desenvolvidas, preocupadas com a segurança. Talvez esteja em questão a qualidade do policial, a concentração regional da polícia e, enfim, o que está ligado à qualidade: o treinamento e o salário (o que é parte da solução da corrupção policial).

De tudo que disse acima, nota-se que há violência e violência. A violência geral tem a ver com uma política nacional de segurança e bem-estar. Há de se pensar melhor na questão das drogas e do tráfico se quisermos de fato levar a sério a violência brasileira. Mas, quanto às violências específicas, dirigidas a grupos, elas ainda estão ligadas a elementos de ordem cultural que seguem uma lógica um pouco diferente da violência em geral. A agressão, que tem por vítima a criança, a mulher, o professor, o homossexual, o negro etc, está ligada ao que os conservadores tendem a não aceitar como sendo digno de nota. Eles se prendem a um modelo de sociedade que vê o cidadão como sendo o “eu” liberal, que se apresenta ao Estado na condição de livre, desenraizado e despersonalizado. Ele é o cidadão, apenas. Como cidadão, mostra-se segundo esse conceito que o faz computado como vítima de violência pelos gráficos da violência em geral. Mas, se apimentarmos um pouco a visão liberal (não creio que precisamos sair dela e adotar o comunitarismo para falar o que vou falar), há como vê-lo sob a violência que o coloca em um quadro que tem de tomá-lo como semilivre, situado e personalizado. Um cidadão visto dessa maneira no quadro da violência é que nos dá a relação brasileira entre violência e práticas culturais relativamente pessoais que precisam ser mudadas.

Eu explico. Quando da violência geral, aquele que a pratica não está movido diretamente pelo preconceito ou pela desvalorização real do outro. Ele está movido por um objetivo que não é o outro. O outro é meio. Ele quer a droga ou o dinheiro. Então, mata ou maltrata. Quando da violência em relação a cidadãos enraizados, semilivres e personalizados, a violência e a vítima não são meios, são fins. O que o agressor quer é realmente firmar o seu poder, a sua superioridade sobre aquele que ele toma como inferior e que, por alguma razão, ergueu o nariz contra ele ou pareceu erguê-lo contra ele. As vítimas são tomadas como aqueles que deveriam se calar, mas que não se calam, falam e falam até demais, impondo um tipo de regime não econômico de palavras que o agressor não quer ouvir, pois elas contrariam algo nele, em geral, a própria imagem do agressor em seu meio. Qual? A de que eles mandam ou deveriam mandar – em alguém, claro. Esse alguém deveria ser a potencial vítima que, então, em algum momento pior, se torna realmente a vítima. Esse desejo de subordinar alguém aliado ao preconceito contra a vítima – que faz dela alguma coisa que permite ou até pede a violência contra ela – ajudam o quadro a se configurar: o fraco se põe diante do potencial agressor, e precisa ser punido para “voltar ao seu lugar”. Feito isso, a imagem do agressor em seu meio parece restituída. Ele manda. Ele manda ao menos em alguém. Ele resolve e põe as coisas “no lugar” ao menos no seu canto – sua casa principalmente, sua rua, às vezes.

Quando ouvimos os relatos dos que presenciaram os atos dos agressores a pessoas dos grupos citados, as palavras que são contadas como saídas da boca do agressor são muito semelhantes. “Cala a boca” é uma expressão comum. “Você não vale nada” também aparece muito. “Você vai ficar no seu lugar” é outra coisa comum. Nos três casos, o agressor diz claramente que sua agressão não tem a ver com qualquer coisa que não com a própria figura do outro. Ele, o outro, está ali e, por estar ali e ser o fraco, precisa se portar como o fraco. Ele está ali como serviçal a ser chicoteado. Mas … êpa, está começando a ficar ousado, a falar o que não deve falar ou o que não deve mais falar. Não lhe foi dada voz. Como, então, que fala?

Alguns podem estranhar por eu colocar nesse meio o professor. Mas, aí também, ao menos atualmente, estamos diante de uma figura que encarnava poder até há pouco tempo, mas que agora se parece muito, em termos socioeconômicos, com o agressor. Então, por que diabos uma figura assim deveria estar na frente de uma sala dando ordens? O adolescente, criado em uma situação em que quem fala é o diferente, o realmente rico ou o realmente forte, não vai tolerar que alguém que tem apenas um saber inútil fale mais grosso. Também o professor deve calar a boca – como a criança e a mulher no lar, como a “bicha louca” na rua e como o “pretinho safado” no trabalho. Alguns dos agressores lembram os nazistas, uma vez que se dedicam a molestar pessoas com dificuldades físicas e psíquicas, o que também já se configura um grupo na mira da agressão urbana. Assim, a violência que cresce tendo como vítimas pessoas de grupos sociais determinados é um problema que os setores conservadores não querem ver. O que os setores não conservadores observam é que de fato o chamado “preconceito” fala alto. Não há como lidar com isso, como se lida com a violência em geral. Há de se lidar com isso considerando a necessidade de uma mudança de vocabulário, de redescrições dessas potenciais vítimas, para que elas saiam do lugar em que foram colocadas, como os que são um nada, ou seja, os que devem obedecer e se calar exatamente porque “foram feitos para isso”.

As políticas e leis contra a violência praticada contra crianças, mulheres, negros, homossexuais, professores, prostitutas, portadores de características físicas ou mentais diferenciadas etc forçam a sociedade a encontrar novas formas de descrição desse pessoal. Essas redescrições é que permitem que vários dos potenciais agressores não possam mais, a partir de um determinado momento, ver nas pessoas desses grupos aqueles que são indignos de abrir a boca ou falar em tom altivo. A redescrição cria novas imagens e então, de um modo às vezes até rápido, ninguém mais possui a velha imagem no horizonte, aquela que favorecia o tratamento desigual ou a atração da mão maldosa.

As leis ajudam bem na mudança de vocabulário. As mudanças de vocabulários não podem se restringir a uma ação social desprovida da colaboração da punição dada pela lei. É necessária a coerção social feita pela cultura em geral, pelo modo como conversamos, mas é necessária também a coerção dada pela punição da lei. Lei contra homofobia ou Lei Maria da Penha ou lei contra a “palmada pedagógica” ou a legislação das cotas étnico-raciais (e não “cotas para pobres”) e assim por diante ajudam os potenciais agressores no ganho de uma nova percepção, aquela que supõe que as vítimas, se são protegidas pela lei, são especiais, ou seja, são tão valorizadas pela sociedade que merecem leis próprias para cuidar delas. Isso realmente muda a face de uma sociedade. Faz ela aprender os conceitos e abandonar os preconceitos quando ela, uma vez sem escola boa, não consegue fazer isso por meios regulares. Mas, ainda com escola boa, essas leis devem existir. O fato de nossa sociedade ter optado por elas não é de agora, é uma longa história.

Redescrever é um lado da mudança social, o outro é a alteração da legislação que dá um empurrãozinho na redescrição, ensinando a todos nós, quiçá também aos conservadores, que o “somos iguais” da doutrina liberal depende, às vezes, de tratar alguns de modo desigual, favorecendo-os, exatamente para que todos voltem a ficar no mesmo patamar de igualdade. Assim, o liberalismo realmente consegue, nisso, se dizer um regime bom para se acoplar à democracia, fazendo vingar a democracia liberal.

*Paulo Ghiraldelli Jr é filósofo, escritor e professor da UFRRJ.

Fonte: http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2011/07/10/artigo-violencia-redescricao-e-democracia-liberal/

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