sexta-feira, 22 de julho de 2011

As Casas


Gaston Bachelard (1884-1962)

Salomão Ferreira de Souza*
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Quantos milhões de anos a terra fermentou seus líquidos para destilar a primeira vida? A precisão científica ainda não conseguiu dizer, mas posso imaginar que esse macerar durou muito mais que a própria existência de Géia*, pois antes mesmo de nosso planeta tomar essa conformação, os fenômenos já fermentavam elementos para este e outros fins ignorados. É do lugar onde moramos, juntamente com inumeráveis hóspedes, que pretendo dizer das casas: uma que denominamos planeta Terra e outras que foram surgindo aos poucos ao longo das eras.

A primeira casa, generosa, portas e janelas abertas, em cujos salões seus moradores interagem, se entendem, devoram ou fazem guerras. Outras que a vida, para se proteger dos fenômenos, fincou na epiderme do planeta, nas lamas dos oceanos, lagos e rios, nos picos das montanhas, nos apêndices e interior de outros corpos. Uma última, mais complexa, de duas dimensões: a primeira interna, de paredes invisíveis, cuja estrutura é subjetiva; outra externa, concreta, porém diferente das casas forjadas na relação da vida com os fenômenos, posto que, uma vez impregnada com os signos culturais humanos, se reveste de múltiplos significados.

Como construtor dessa última modalidade de casa, pretendo falar um pouco mais sobre ela e suas dimensões, buscando esclarecer os significados culturais que lhes damos com vistas a entender melhor as diferenças entre o animal humano e o animal natural.

Primeiramente falo da dimensão interna, aquela que Bachelard (1993) divide em três espaços: o porão, os salões e o sótão. É essa dimensão psicológica e implícita da casa que esconde ou desvela, prende ou libera nosso mobiliário ao olhar do outro. Abrimos seus salões aos visitantes, quando buscamos projetar nossa imagem no ponto central das atenções dos outros; escondemos no sótão as coisas que só podem ser confiadas aos mais íntimos; nos porões velamos aquelas que tememos que o outro veja, mesmo na intimidade. Essas últimas, de tão obscuras, evitamos contemplar. Por isso as encerramos no mais secreto da casa, um lugar sem janelas nem iluminação, para que fiquem bem seguras e distantes da vista daqueles que visitam nossos salões ou que, na intimidade, tem acesso aos segredos do sótão. Transformamos essa casa interna – principalmente os porões – numa fortaleza e, como em Clarisse (1999), “trancamos as portas, deixando de fora tudo que nos ameaça”. Esquecemos que é dentro dela que habita não só a vida, mas também a morte, os medos, os demônios que nos atormentam. É aí também que nos encontramos presos ou nos sentimos libertos. É sobre a proteção dessa casa interior que reproduzimos nossos leões e cordeiros.

Uma vez sabedores da obscuridade desses espaços, escondemos, tão bem, nossas mobílias e ferramentas de guerra. Elas ameaçam integridade dos seus e, muito mais, daqueles que a visitam, aos quais, apesar do disfarce, desejamos que morram ou se danem, pois quase sempre, concorrem ao reflexo dos espelhos, onde acreditamos projetar, absolutos, nossa imagem narcísica. O outro furta os desejos mais íntimos do dono da casa; são obstáculos nos caminhos de mediações inaceitáveis, alem de potenciais concorrentes ao posto de poder que julgamos nosso. Se o outro é, enquanto nosso concorrente, um elemento indesejado, repulsivo ou apenas indiferente, por outra via é nosso querido convidado, de quem esperamos seja testemunho da condição de poder que julgamos detentores.

A outra dimensão da casa, a externa e concreta, também ganha, pela cultura, outros tantos significados, diferentes aqueles originalmente determinados. Edificada naturalmente para abrigar o animal humano, a casa tornou-se cultural ao ganhar a dimensão de poder, estilo de vida, lugar de memórias, crenças e expressões da arte. Uma das nuances da casa externa é a de que, embora possa nos pertencer por imposição das convenções reguladoras, quem a fabrica não são, por princípio, seus moradores. Nisso ela diferencia muito das casas dos animais naturais. Outro fator de distinção são os espaços bem delimitados e que servem, principalmente, para conter seus habitantes colocando-os em seus devidos lugares. Aí, além de representar, pela exuberância ou não, uma condição primordial de exercício de poder, internamente, ao reter seus membros em compartimentos delimitados, exerce um poder que não é visível do lado de fora e, muitas vezes, nem por aqueles que dividem seus espaços.

Essa dupla dimensão de poder que a casa externa exerce na cultura humana é a que faz com que os espaços urbanos sejam determinados por uma disposição de construções indicativas, no geral, das condições econômicas, históricas e sociais de seus habitantes, alem de conter um poder oculto na divisão geográfica das cidades e dos territórios terrestres.

Vejam as mansões de classe alta, com seus imensos espaços vazios, fachadas e jardins, entregues aos cuidados dos empregados, ou simplesmente guardadas pelos cães e aparatos eletrônicos. Apresentam-se como verdadeiras fortalezas garantindo o isolamento do outro, na e pela distância de seus amplos espaços. Guardam em silêncio e na obscuridade de seus porões, os mecanismos que forjaram as riquezas que as ostentam.

Reparem o contraste entre aquelas edificações e os barracos dos aglomerados: nesses os espaços são insuficientes para abrigar todos os seus habitantes. Aqui animais são relegados ao espaço público pela impossibilidade de dividir ainda mais o exíguo território das moradias. Enquanto aqui, cães soltos nas vias públicas acompanham qualquer andante, lá eles ladram pedestres distantes, tentando espantar a solidão de vastos e luxuosos canis ou, como seus donos, buscando impor uma autoridade simbólica que só existe na estrutura fria dos pilares daquelas mansões. Esquecemos a verdadeira dimensão daquilo que nos abriga e por isso, como nos salões da casa interna, voltamos ao espelho para projetar, não somente a imagem de nossas flácidas caras, mas uma, emprestada pelas construções concretas, que acreditamos ser, para além de nosso poder imediato, a própria imortalidade de seus donos e idealizadores. Esquecemos que os homens morrem, as casas caem e sobre seus escombros outras casas vão sendo construídas, apagando a memória de antigos moradores. Só a terra persiste com sua superfície levemente enrugada, mas pronta para regenerar-se e abrir espaços para outras possibilidades de moradas e moradores futuros. Que certeza temos das possibilidades de nossa primeira casa?

(*) Na mitologia grega Géia é a Terra primitiva, que surge depois de Eros, o desejo. Esse desejo de existir, de se fazer matéria e que atribuo, livremente, ao princípio de confinamento das energias, tão essencial aos arranjos e rearranjos do universo.

BIBLIOGRAFIA

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
LISPECTOR, Clarice. Para não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
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* Salomão Ferreira de Souza é escritor em Belo Horioznte

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