segunda-feira, 30 de julho de 2012

Brasil ainda tem 1 milhão sem escola

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São apenas cinco letras, mas rabiscá-las é um tremendo desafio. Com um caderno sobre as pernas, Mário, de 11 anos, quase desenha seu nome, a única palavra que sabe escrever, manuseando o lápis sem intimidade. O nome é fictício, a história, real. A deslumbrante paisagem que se vê da casa do menino, que só entrou para a escola há cerca de um mês, revela um problema que ainda persiste mesmo nos estados mais ricos. O franzino Mário vive seu drama particular no Morro do Vidigal, em São Conrado, debruçado sobre os bairros de maior renda do Rio.
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Os números do Censo do IBGE mostram que, apesar de o problema ser mais grave nas regiões Norte e Nordeste, nenhum estado conseguiu até hoje incluir todas as crianças de 6 a 14 anos na escola. Esta população de não estudantes representa 3% do total da faixa etária. Pode parecer um percentual pequeno, mas é grave quando se considera que é quase um milhão de crianças que ainda não têm garantido um de seus direitos mais básicos, previsto pela Constituição de 1988: estudar. Se a esse grupo forem incorporados as crianças de 4 e 5 anos e os jovens de 15 a 17 (que passam a fazer parte da faixa etária de escolaridade obrigatória a partir de 2016), o número aumenta para 3,8 milhões, ou 8% do total.
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Tabulações feitas pelo GLOBO nos microdados do Censo mostram que o problema é maior entre os mais pobres e crianças com algum tipo de deficiência. Os números também revelam que a maioria (62%) das crianças que não estudam dos 6 aos 14 chegou um dia a frequentar a escola, mas abandonou os estudos. O problema é ainda mais grave se consideradas as faixas etárias de 4 e 5 anos e de 15 a 17, que desde 2009 passaram a ser também obrigatórias, mas com prazo para adequação dos sistemas até 2016.
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As razões mais citadas por especialistas para isso são falta de interesse, repetência, gravidez precoce e necessidade de trabalhar. Mas há situações difíceis de entender. Como a de Mário (nome fictício). No Morro do Vidigal, há uma creche municipal e uma escola, a poucos metros da casa dele. Tímido, ele é um menino saudável, apto a aprender e que não esconde de ninguém que queria muito, muito estudar.
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— Agora eu estou feliz — sorri e mais não diz o menino, que não conhece sequer o “i”, uma das vogais de seu nome (o verdadeiro também tem a letra). Ele revela apenas o que pretende fazer com os conhecimentos que começa a adquirir com seu primeiro professor. — Quero ler jornal e gibi.
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Ex-representante da Unesco no Brasil e doutor em Educação pela Universidade de Stanford, o assessor internacional para a área de educação, Jorge Werthein, diz que o primeiro passo, nada fácil, é identificar essas crianças e adolescentes.
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— O Brasil é um país de contrastes. Há estados importantes com uma grande periferia urbana e muitas desigualdades econômicas. Há estados com uma área rural significativa que sofrem com a falta de escolas. Num país continental, é uma tarefa árdua chegar a essas crianças e adolescentes por estado, por capital, por região metropolitana. Mas é preciso achá-los e depois convencê-los a ingressar ou a voltar para a escola — diz.
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— Depois, nós temos que repensar a escola para que ela seja um espaço não apenas prazeroso, mas em que os alunos sintam que estão aprendendo. Uma escola ruim em qualquer lugar do mundo expulsa os alunos, com repetências e abandono. Deixa para eles a mensagem de que não são capazes, o que marca de forma brutal meninos e meninas — completa Werthein.
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— Houve uma evolução inegável nos últimos dez anos. Mas ainda há muita criança fora da escola, situação agravada pelas desigualdades. Entre 4 e 5 anos, há 83% estudando no Sudeste, o que ainda é ruim, mas pior é haver só 69% dentro de sala de aula no Norte — afirma Andrea Bergamaschi, do movimento Todos pela Educação. — Para reverter este quadro, precisamos de políticas públicas cirúrgicas, específicas para cada situação.
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Na Zona Sul, 508 jovens voltaram a estudar
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De um lado a escola, do outro, a vida. Juntar as duas coisas numa rotina de conhecimento e prazer é a única saída, segundo especialistas, para manter adolescentes em sala de aula. O Conselho Tutelar da Zona Sul do Rio calcula que, desde 2008, já tirou do exílio escolar 508 adolescentes, disputando-os com o tráfico e com as dificuldades financeiras, que levam os menores mais cedo ao mercado de trabalho. Ana Maria (nome fictício), de 17 anos, é uma das jovens assistidas pelo programa Emplacando Vidas, do Detran. Aos 15 anos, ela abandonou os bancos escolares. Recentemente, voltou, e cursa o terceiro ano do ensino médio.
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— Nunca fumei um cigarro de maconha. Mas vivia um momento ruim. Eu tinha perdido o meu pai cedo, e corríamos até o risco de perder nossa casa. Não aguentava mais a escola, só queria zoar. Eu mentia muito. Saía de casa com uniforme e, na rua, trocava de roupa. Comecei a faltar às aulas. Quando a minha mãe descobriu, eu já tinha abandonado a escola — conta a jovem, que logo explica por que as coisas começaram a mudar, depois de dois anos. — Vi que, do jeito que estava, não chegaria a lugar nenhum.
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Moradora do Morro Azul, no Flamengo, Ana Maria, graças ao trabalho, ajuda a mãe nas despesas com a casa. Ela batalhou sozinha por uma bolsa de estudos num curso de inglês, e conseguiu. Agora, quer fazer vestibular para Economia.
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O conselheiro tutelar Edmilson Ventura observa que o trabalho é uma forma de atrair jovens com mais de 16 anos.
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— Não somos um balcão de empregos, mas, na faixa etária permitida por lei, o trabalho pode ser um atrativo. Muitos jovens que chegam aqui ou quase entraram no tráfico ou são órfãos dele. E a primeira consequência é se afastar da escola — diz, acrescentando que a contrapartida ao trabalho é estudar.
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O projeto Escolas do Amanhã, da Secretaria municipal de Educação, é uma das políticas públicas municipais que tentam combater o problema da evasão. Desde 2009, 152 escolas oferecem educação integral em áreas conflagradas na cidade. A secretária, Cláudia Costin, diz que o verdadeiro desafio é a universalização da qualidade:
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—Sempre que se oferece qualidade, a resposta é boa.
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A evasão escolar caiu na rede municipal de 2,6%, em 2008, para 2,3%, em 2011. E, nas Escolas do Amanhã, de 5,1% para 3,2%, no mesmo período.
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Fonte: O Globo

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