domingo, 15 de dezembro de 2013

Por quem os sinos calam

Mark Joseph Ster - Slate*
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Ontem, em todas as igrejas de Connecticut os sinos deram 26 badaladas, a pedido do governador: uma para cada vítima da tragédia de Sandy Hook. No entanto, no massacre morreram 28 pessoas: 20 estudantes, 6 professoras, a mãe do autor dos disparos e o próprio. Por que os sinos não tocaram para todos?
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A questão angustiante e complexa de se prestar uma homenagem ao perpetrador de uma atrocidade juntamente com suas vítimas por muito tempo perturbou essas cerimônias fúnebres. As 15 cruzes erguidas para lembrar as vítimas de Columbine - inclusive 2 para os atiradores - foram rapidamente reduzidas a 13, e então a zero. Depois da tragédia de Virginia Tech, os estudantes empilharam 33 pedras como uma espécie de memorial, mas a pedra que representava o atirador mais tarde foi retirada. No sábado, os sinos não deixaram de tocar apenas por Adam Lanza, mas também por sua mãe, que morreu pelas mãos do filho e postumamente foi considerada em parte culpada pelo massacre.
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É fácil compreender o motivo pelo qual um assassino deve ser excluído. Depois de uma tragédia, o atirador torna-se o vilão. E os membros de sua família, cúmplices. As famílias das vítimas de Columbine processaram as famílias dos autores do massacre, afirmando que elas deveriam ter previsto o desenlace, e ganharam um acordo. Em Newtown, afinal, foi a mãe de Adam quem comprou as armas que ele usou. Mas ela não somente forneceu os instrumentos para o filho mentalmente perturbado como foi sua primeira vítima, morta com um tiro em sua cama. Seria desonesto e perigoso simplificar o luto privando-a de uma homenagem adequada.
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Qualquer que seja a culpa que as pessoas atribuam a Nancy Lanza, Adam Lanza foi quem fez os disparos: primeiramente contra a mãe, depois na escola, e então contra si mesmo. Seu ato, pela voz corrente, foi uma retaliação insana, maldade, covardia. Adam jamais mereceria viver e, portanto, evidentemente, mereceu morrer. Agora que está morto, afirmam, sua memória não deve ser homenageada, mas amaldiçoada.
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A ideia tem um apelo óbvio. Qualquer um que concorde com ela tem todo o direito de fazê-lo. Mas, por mais atraente que possa ser o retrato em branco e preto do vilão em relação às vítimas, ele subestima o valor de nossa humanidade. Embora seja doloroso reconhecê-lo, Adam e a mãe eram seres humanos, tanto quanto suas vítimas. A tragédia de Newtown - e do mundo - é exatamente esta: a humanidade daquelas lindas crianças e de suas devotadas professoras lhes foi tão cedo roubada. Mas não é útil para ninguém fingir que o jovem torturado, de 20 anos, do outro lado do fuzil - e também sua mãe, morta naquele mesmo dia - não era, num sentido fundamental, absolutamente humano.
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Segundo a argumentação típica, se Adam era humano, era um ser humano profundamente mau, um flagelo execrável que não merece indulgência. Mas tampouco isso é certo. Olhando para as imagens das 20 crianças, pensando nas indescritíveis atrocidades que ocorreram no interior daquele edifício, não vejo nisso um ato de maldade. Vejo apenas o caos, um horror psicótico desencadeado contra seres que menos tinham condições de se defender. É tentador chamá-lo mal - mas "mal" implica algum raciocínio por trás da ação, algum motivo, alguma compreensão da dor medonha infligida a inocentes.
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Não há o que compreender sobre o que aconteceu em Sandy Hook. Não há nenhum sentido, nenhuma lógica num massacre. As normas usuais de comportamento humano simplesmente não se aplicam. Não há razão para aqueles cinco minutos de brutalidade. Há apenas a escuridão total de uma mente que perdeu a razão. Vemos as fotografias, lemos as inscrições, estudamos os sinais de advertência e debatemos as respostas, mas não há compreensão do que aconteceu em Newtown um ano atrás. Foi um ato inumano cometido por um ser humano.
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Esse é o paradoxo das duas badaladas emudecidas, das duas cruzes excluídas, da pedra ausente. É o cerne da luta entre ira e clemência. Cabe a nós, após todo esse sofrimento sem sentido, afirmar nossa própria humanidade, rejeitar o fascínio horrendo do niilismo, levantar-nos acima do caos. Enquanto lamentamos as vidas destruídas sem nenhum sentido em Newtown, devemos ter em mente a humanidade comum que nos obriga a lamentar por aqueles que não conhecemos e jamais conheceremos. Em certo momento, Adam compartilhou dessa humanidade. O fato de que a tenha perdido é uma tragédia para todos nós.
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TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
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Fonte: Estadão

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