sábado, 22 de junho de 2013

Técnicas para a fabricação de um novo engodo, quando o antigo pifa


13.06.20_Silvia Viana_Técnicas para a fabricação de um novo engodo
Por Silvia Viana.*
.
Um bom começo para a reflexão que deve se seguir ao dia de ontem (e acompanhar aqueles que virão): observar atentamente a reconstrução do discurso da grande mídia. Nesse momento, é possível assistir, com nitidez cristalina e ao vivo, cada etapa da linha de produção de uma nova ideologia. E já que a mercadoria ainda não está pronta, é fundamental tomarmos nota de seus componentes para não corrermos o risco de fornecer matéria-prima.
.
As anotações que se seguem são relativas à audiência da cobertura do Globo News de ontem e da quinta-feira passada; do Jornal da Record e do Jornal do SBT de ontem; e do Cidade Alerta de quinta (sim, eu ainda tenho estômago).
.
O elemento central do discurso que ora se monta é a minimização dos fins em relação aos meios. Ao longo das duas horas que assisti ao GN, em momento algum foi discutida a questão do aumento das tarifas. O fundamental são os meios: o manifesto foi violento ou não, houve, ou não, negociação entre as partes, quais os trajetos e pontos ocupados, quantas pessoas aderiram etc. Essa técnica tem um foco político autoevidente: ignorar o objetivo do movimento; e outro opaco: apontar para a manifestação como um fim em si.
.
Não os subestimemos, a manobra é esperta, pois reflete uma forma de fazer política que tem se tornado usual em SP: ocupar espaços públicos por ocupar, “sem bandeiras”, “por amor”, “porque a cidade é nossa” etc. Desse modo, a manifestação se assemelha a uma forma de terapia: faz bem, é gostoso, alivia frustrações etc. Ela é democrática, logo, vale por si mesma…
.
Mas não mencionar o verdadeiro mérito da questão é apenas uma das técnicas de anulação da causa e, nesse momento, seria frágil, não fosse a técnica complementar de abstração dos fins: “não são só 20 centavos, não é só o transporte, não é só a copa…”. As negativas crescem até que o protesto pareça um movimento por nada.
.
Por outro lado, é importante construir uma falsa positivação, também ela vaga. Uma matéria significativa foi feita na GN nesse sentido (e reprisada duas vezes): os repórteres entrevistaram pessoas aleatórias na passeata, cada qual com uma demanda diferente e nenhuma delas referente à finalidade concreta do ato: “saúde”, “educação”, “segurança” etc.
.
Essa tipificação clássica e simplificadora é útil, pois, por um lado, compartimenta a política em módulos passíveis de gestão, excluindo a estrutura que as amarra; por outro, recusa soluções imediatas – por exemplo, a exigência é por educação, e não pelo aumento de 17% para os professores da rede municipal. Nesse âmbito médio, tanto a crítica sistêmica quanto a exigência do movimento se esfumam.
.
Nesse tópico (abstração dos fins), cabe um comentário: assisti ontem aos dois blocos finais do Roda Viva, com os líderes do Movimento Passe Livre, sua postura foi um belo antídoto contra o que estou descrevendo: eles afirmaram que as passeatas são sim pela redução dos R$ 0,20. A partir dessa “migalha” foi possível a construção de inúmeras contradições e a recomposição de questões estruturais: dos 20 centavos ao transporte, à estrutura urbana, ao sentido do público, chegando à matriz que, hoje, o organiza: o mercado.
.
Então vamos à terceira técnica no que tange aos fins. Como eu afirmei antes, a classificação da política por nichos de demanda é útil por excluir a lógica estrutural subjacente. Mas a mídia está fabricando uma amarração artificial: a “corrupção”. As palavras finais da âncora de um dos jornais do GN foram mais ou menos essas: “Encerramos, então, nossa cobertura desse dia de manifestações contra a corrupção, o superfaturamento e tudo o que está errado no país”.
.
A corrupção, que também é uma abstração, aparece como fonte original de todas as mazelas e móbile principal das expressões de descontentamento. Trata-se da falsa bandeira mais útil para a grande mídia por uma razão ideológica: ninguém em sã consciência seria favorável à corrupção, trata-se de uma bandeira imune ao conflito (que é o princípio da política). Mas é útil também por ser moeda valiosa nas negociatas entre as grandes empresas de mídia e os partidos e governos.
.
Por fim, a corrupção é um produto ideológico pronto. Ela aparece como um problema moral, portanto pontual, que toca apenas o poder público, e não tem relação alguma com o assim chamado “livre mercado”.
.
Também nesse ponto, o Movimento Passe Livre e sua reivindicação precisa, são uma criação política extraordinária. É impossível discutir o aumento das tarifas sem nos darmos conta da origem sistêmica da corrupção: a relação, ao mesmo tempo espúria e estrutural, entre as empresas privadas (nesse caso, de transporte) e o poder público.
.
Dito isso, cabe pensar o gigantismo dos meios nos discursos midiáticos. O ponto central é, evidentemente, o uso ou não da violência. Quanto a isso, foi possível acompanharmos quatro momentos discursivos claramente delimitados:
.
1. “Os manifestantes são vândalos, bárbaros, imbecis e a polícia cumpriu muito bem o seu papel” (Marcante nesse momento foi aquela coisa proferida por Arnaldo Jabor, que dispensa adjetivações).
.
2. “Há uma violência equivalente de ambos os lados, a polícia está despreparada para lidar com esses malditos vândalos”.
.
3. A mudança no segundo discurso ocorreu ao vivo, durante a transmissão do ato de quinta-feira, em São Paulo: a tarja explicativa das imagens (não sei o nome técnico dessas tiras de engodo destilado) no GN afirmava: “briga e confusão no protesto…”. Após a divulgação da notícia de que alguns repórteres haviam sido feridos, a frase mudou: “confronto no protesto…”. Já a fala do âncora do Cidade Alerta se tornou esquizoide, oscilando entre posições irreconciliáveis contra e a favor da ação da polícia, do Estado, dos manifestantes, da violência.
.
4. O quarto momento é (está sendo) a reorganização desse ponto de ruptura. Os telejornais já não podem manter o primeiro ou o segundo discursos, não apenas pela aprovação popular às manifestações, mas porque o reacionarismo anti-manifestação, que se alastrou nos últimos anos, apareceu em seu paradoxo de modo irrecusável: não é possível defender a democracia e ser contra o conflito.
.
Visto que, de uns dias para cá, ficou inviável associar qualquer forma de dissenso à violência (oh! Meu direito de ir e vir…), a solução, por ora, é negar o conflito por outra via: o problema não são as manifestações, mas o momento em que elas “descambam” graças a alguns “elementos extremistas desgarrados”.
.
Esses, que passaram do total de manifestantes, no primeiro momento, a parte do movimento, no segundo, tornaram-se uma exceção que deve ser prontamente eliminada. Ontem, esse argumento apareceu de modo sutil no GN através de uma interminável e repetitiva entrevista a um repórter que acompanhou os conflitos no Rio – sua visão “objetiva” dispensou o âncora de articular a mentira de forma direta.
.
Já no Jornal SBT, bem menos sofisticado, a balela era escancarada, algo como: “a imensa maioria é pacifista e apenas quer se manifestar, os demais são aproveitadores que só querem fazer baderna; para esses, a força policial ainda é indispensável e deve ser enérgica”. Mais uma vez, os fins somem: uns estão lá para uma linda terapia de massa, outros para fazer baderna.
.
Essa dualização ficou plasmada na transmissão ao vivo da Record. Intencionalmente ou levados por algum tipo de automatismo inconsciente, os editores dividiram a tela ao meio: de um lado, imagens dos manifestantes na avenida Paulista, em um ponto no qual já não caminhavam, pois haviam chegado a seu destino; do outro, imagens dos confrontos no Rio de Janeiro. Naquela metade, a imagem estava clara e brilhante; na outra, a iluminação vinha das fogueiras, tudo em volta era escuridão. A narração confirmava a edição (lembremo-nos: edição, pois as imagens em São Paulo eram ao vivo e as do Rio, corriam em loop): o bem e o mal, o aceitável e o inaceitável.
.
Através dessa simplificação é possível a construção, não apenas de um novo discurso, mas também de uma nova pauta: o importante é a Paz!!! Os meios, então, se convertem, ainda uma vez, em objetivo e o reacionarismo se segura como pode, rearticulando os acontecimentos sob a chave-mestra da ideologia contemporânea: a segurança.
.
Outra técnica para lá de esperta, pois a mídia não apenas desloca o conflito verdadeiro, como dá a pinta de ter matizado seu segundo momento discursivo (e as “desculpas” do Seu Jabor se encaixam aqui); ou seja, a noção de que há uma equivalência de forças e razões entre manifestantes e o aparato repressivo dos estados, se mantém: os policiais ainda “apenas reagem”.
.
Há ainda muito a se refletir se partirmos desse material asqueroso que subitamente se tornou rico (para quem quer pensar, é claro!): o retorno de uma patriotada descabida (nada como uma ideologia basilar como a Nação para nublar o conflito); os descontentamentos específicos que ficaram de escanteio, como os reais motivos das manifestações contra a copa (o problema não é a corrupção, mas o fato de que os grandes eventos são, em si mesmos, a subtração de tudo o que ainda possa haver de público); o ponto de inflexão que foi a brutalização dos jornalistas na quinta-feira passada – e a ideia subjacente de que há os espancáveis e os não espancáveis; o uso descarado dos embates em torno das bandeiras partidárias nas manifestações; a fácil apropriação do slogan “acorda Brasil”, que poderia ter sido formulado pelo publicitário da Johnnie Walker, e por aí vai.
.
Mas muito ainda pode mudar tendo em vista a despolitização, pois se há algo ilimitado é a cara-de pau de nossa mídia monopolista, bem como o poder de urgência das ruas.
.
Eu acabei de escutar, no boteco aqui em frente, o Marcelo Rezende afirmando: “eu também estou nas ruas com eles”. Para que não esteja, e saiba que não está, vale a pena escutar quem importa. O atendente do boteco, um motoboy e um morador de rua, que presta serviços esporádicos para o comércio local, conversavam: “Eles estão certos, quem é pobre que sabe o que é pagar ônibus”. “Mas tem o vandalismo…”. “Eu acho que só não tem que quebrar comércio pequeno, se quebrar o Congresso vou achar ótimo”. “Não é vandalismo não, que vandalismo é quando não tem porquê”.
.
* É socióloga. Artigo Publicado originalmente no site Prática Radical, em 19 de junho de 2013.
.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/2013/06/21/tecnicas-para-a-fabricacao-de-um-novo-engodo-quando-o-antigo-pifa/

Nenhum comentário:

Postar um comentário