quinta-feira, 10 de julho de 2014

Formação de docentes é ineficiente, conclui pesquisa

Cerca de 70% das ações de municípios, Estados e do governo federal voltadas a atividades de qualificação de Docentes no exercício da rede pública brasileira no exercício têm baixa eficácia. Essa é a principal conclusão do estudo "Formação Continuada de Professores no Brasil", produzido pelo Instituto Ayrton Senna (IAS) e Boston Consulting Group (BCG), que ouviu cerca de 3 mil Professores, diretores de Escolas, gestores de secretarias de Educação e acadêmicos.
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A principal mensagem do documento sugere que avançar na formação continuada dos 2 milhões de Professores em atuação nas redes municipais e estaduais é a opção "mais acionável", um atalho, para melhorar a qualidade da Educação brasileira. Nas entrevistas, os Docentes elencaram seis problemas nas políticas atuais de formação continuada: falta de incentivos formais (ajuda de custo), falta de tempo, problemas de conteúdo, falta de prioridade, desalinhamento das ações de formação com plano de carreira, e alta rotatividade.
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Dos pontos levantados pelos Professores, Daniela Arai, analista de projetos de Educação e desenvolvimento do IAS, diz que o mais preocupante é a "desconexão" entre as atuais práticas de formação e a realidade do cotidiano dos Professores na sala de aula. "Não há ações customizadas e práticas, relacionadas com o dia a dia da sala de aula, resultando em ações de baixa eficácia. Mentorias foram relatadas por menos de 2% dos profissionais brasileiros, mas são consideradas as mais eficazes em redes de Ensino nacional e estrangeiras consideradas referência", avalia Daniela.
Diante do diagnóstico apresentado pelo estudo do IAS e do BCG, o ministro da Educação, José Henrique Paim, reconheceu que a formação continuada e inicial de Professores no Brasil é o maior gargalo do setor atualmente. "É preciso priorizar políticas que aproximem as necessidades do Professor no trabalho e de sua formação ao longo da carreira", comentou Paim.
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O ministro também disse que sua gestão prioriza a formação Docente e que o MEC está reorganizando o financiamento público dessa área. "Boa parte dos recursos do ministério vai para formação inicial [bolsas de estudo para Alunos de pedagogia e licenciaturas]. Os recursos que temos no MEC sofreram ao longo dos anos vários processos de reorientação", acrescentou o titular do MEC.
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Paim citou o exemplo do [Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), lançado em 2012], que tem como eixo a formação continuada de Professores para atingir o objetivo alfabetizar plenamente crianças até o fim do terceiro ano do Ensino fundamental. "O estudo do IAS não contemplou o Pnaic, que trabalha justamente com o foco na formação continuada para a Alfabetização. Estamos no meio de um processo, a organização do sistema de formação é resultado de um diagnóstico que está sendo feito, esse estudo ajuda", completou Paim.
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Douglas Woods, executivo do BCG, diz que o Brasil precisa de atividades mais eficazes de treinamento. "As iniciativas de formação têm que ser mais práticas e menos teóricas, acontecer de fato dentro da sala de aula."
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Fonte: Valor Econômico e Todos pela Educação

segunda-feira, 7 de julho de 2014

A doença da "normalidade" na universidade

Renato Santos de Souza*
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Doença sempre foi algo associado à anormalidade, à disfunção, a tudo aquilo que foge ao funcionamento regular. Na área médica, a doença é identificada por sintomas específicos que afetam o ser vivo, alterando o seu estado normal de saúde. A saúde, por sua vez, identifica-se como sendo o estado de normalidade de funcionamento do organismo.
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Numa analogia com os organismos biológicos, o sociólogo Émile Durkheim também sugeriu como identificar saúde e doença em termos dos fatos sociais: saúde se reconhece pela perfeita adaptação do organismo ao seu meio, ao passo que doença é tudo o que perturba essa adaptação. Então, ser saudável é ser normal, é ser adaptado, certo? Não necessariamente: apesar de Durkheim, há quem considere que do ponto de vista social, ser normal demais pode também ser patológico, ou pode levar a patologias letais.
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Os pensadores alternativos Pierre Weil, Jean-Ives Leloup e Roberto Crema chamaram isto de Normose, a doença da normalidade, algo bem comum no meio acadêmico de hoje. Para Weil, a Normose pode ser definida como um conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir, que são aprovados por consenso ou por maioria em uma determinada sociedade e que provocam sofrimento, doença e morte. Crema afirma que uma pessoa normótica é aquela que se adapta a um contexto e a um sistema doente, e age como a maioria. E para Leloup, a Normose é um sofrimento, a busca da conformidade que impede o encaminhamento do desejo no interior de cada um, interrompendo o fluxo evolutivo e gerando estagnação.
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Estes conceitos, embora fundados sobre um propósito de análise pessoal e existencial, são muito pertinentes ao que se vive hoje na academia. Aqui, pela Normose não é apenas o indivíduo que adoece, que estagna, que deixa de realizar o seu potencial criador, mas o próprio conhecimento. E não apenas no Brasil, também em outras partes do mundo.
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Peter Higgs, Prêmio Nobel de Física de 2013 disse recentemente que não teria lugar no meio acadêmico de hoje, que não seria considerado suficientemente produtivo, e que, por isso, provavelmente não teria descoberto o Bosão de Higgs (a “partícula de Deus), descrito por ele em 1964 mas somente comprovado em 2012, quase 50 anos depois, com a entrada em funcionamento de uma das maiores máquinas já construídas pelo homem, o acelerador de partículas Large Hadron Collider. Higgs contou ao The Guardian que era considerado uma “vergonha” para o seu Departamento pela baixa produtividade de artigos que apresentava, e que só não foi demitido pela possibilidade sempre iminente de um dia ganhar um Nobel, caso sua teoria fosse comprovada. Ele reconheceu que, nos dias de hoje, de obsessão por publicações no ritmo do “publique ou pereça”, não teria tempo nem espaço para desenvolver a sua teoria. À sua época, porém, não só o ambiente acadêmico era outro como ele próprio era um desajustado, um anormal, uma espécie de dissidente que trabalhava sozinho em uma área fora de moda, a física teórica expeculativa. Então, sua teoria é também fruto desta saudável “anormalidade”.
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A mim, embora não surpreendam, as declarações de Higgs soam estarrecedoras: ou seja, com os sistemas meritocráticos de avaliação de hoje, que privilegiam a produção de artigos e não de conhecimentos ou de pensamentos inovadores, uma das maiores descobertas da humanidade nas últimas décadas, que rendeu a Higgs o Nobel em 2013, provavelmente não teria ocorrido, como certamente muitos outros avanços científicos e intelectuais estão deixando de ocorrer em função dos sistemas atuais de avaliação da “produtividade em pesquisa”. É a Normose acadêmica fazendo a sua maior vítima: o próprio conhecimento.
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Aliás, nunca se usou tanto a autoridade do Nobel para apontar os desvios doentios do nosso sistema acadêmico e científico como em 2013. Randy Schekman, um dos ganhadores do Nobel de Medicina deste ano, em recente artigo no El País, acusou as revistas Nature, Science e Cell, três das maiores em sua área, de prestarem um verdadeiro desserviço à ciência, ao usarem práticas especulativas para garantirem seus mercados editoriais. Schekman menciona, por exemplo, a artificial redução na quantidade de artigos aceitos, a adoção de critérios sensacionalistas na seleção dos mesmos e um absoluto descompromisso com a qualificação do debate científico. E afirmou que a pressão para os cientistas publicarem em revistas “de luxo” como estas (de alto impacto) encoraja-os a perseguirem campos científicos da moda em vez de optarem por trabalhos mais relevantes. Isto explica a afirmação de Higgs sobre ser improvável a descoberta que lhe deu o Nobel no mundo acadêmico de hoje.
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O próprio Schekman publicou muito nestas revistas, inclusive as pesquisas que o levaram ao Nobel: diferentemente de Higgs, que era um dissidente, Schekman também já sofreu de Normose. Porém, agora laureado, decidiu pela própria cura e prometeu evitar estas revistas daqui para adiante, sugerindo não só que todos façam o mesmo, como também que evitem avaliar o mérito acadêmico dos outros pela produção de artigos. Foi preciso um Nobel para que se libertasse da doença.
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A atual Normose acadêmica se deve à meritocracia produtivista implantada nas universidades, cujos instrumentos, no Brasil, para garantir a disciplina e esta doentia normalidade são os sistemas de avaliação de pesquisadores e programas de pós-graduação, capitaneados principalmente pela CAPES e CNPq. Estes sistemas têm transformado, nas últimas décadas, docentes e alunos em burocráticos produtores de artigos, afastando-os dos reais problemas da ciência e da sociedade, bem como da busca por conhecimentos e pensamentos realmente novos. A exigência de produtividade é um estímulo ao status quo, obstruindo a criatividade, a iniciativa, o senso crítico e a inovação, pois inovar, criar, empreender, fugir ao normal pode ser perigoso, pode ser incerto, pode ser arriscado quando se tem metas produtivas a cumprir; portanto, não é desejável: o mais seguro é fazer “mais do mesmo”, que é ao que a Normose acadêmica condenou as universidades e seus integrantes ao redor do mundo.
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Eu escrevi em um artigo de 2013 que a meritocracia leva a uma ilusão de eficiência e progresso que não podem se realizar, porque as meritocracias modernas são burocracias. Como bem ensinou Max Weber, a burocracia é uma força modeladora inescapável quando se racionaliza e se regulamenta algum campo de atividade, como acontece no sistema científico atual. Para supostamente discriminar por mérito pessoas e organizações acadêmicas, montou-se um tal sistema de regras, critérios avaliativos, hierarquias de valor, indicadores, etc., que a burocratização das ações acadêmicas tornou-se inevitável. Agora é este sistema que orienta as ações dos acadêmicos, afastando-os de seus próprios valores, desejos e convicções, para agirem em função da conveniência em relação aos processos avaliativos, visando controlar os benefícios ou penalidades que eles impõem. Pessoas sob regimes de avaliação meritocráticos se tornam burocratas comportamentais; e burocratas, como se sabe, pela primazia da conformidade organizacional a que se submetem, tornam-se inexoravelmente impessoalistas, formalistas, ritualistas e avessos a riscos e a mudanças. Tornam-se normóticos, preferindo, no caso da academia, uma produção sem significado, sem relevância, sem substância inovadora porém segura, a aventurarem-se incertamente em busca do novo.
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Agora, depois de já ter escrito isto naquele artigo, descubro que o Nobel de Medicina de 2002, o sul-africano Sydney Brenner, em entrevista de fevereiro deste ano à King’s Reviw, afirmou exatamente o mesmo. Dentre outras coisas, disse ele que as novas ideias na ciência são obstruídas por burocratas do financiamento de pesquisas e por professores que impedem seus alunos de pós-graduação de seguirem suas próprias propostas de investigação. É ao menos alentador perceber que esta realidade insólita não é apenas uma versão tupiniquim da busca tardia e equivocada por um lugar o sol no campo acadêmico atual, mas uma deformação que assola também os “grandes” da arena científica mundial. E também constatar que os laureados com a distinção do Nobel tem se percebido disto e denunciado ao mundo.
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De certa forma, todos na academia sabem que estes sistemas de avaliação acadêmicos têm levado a um produtivismo estéril, mas isto não tem sido suficiente para mudar nem as condutas pessoais, nem as diretrizes do sistema, porque a Normose é uma doença coletiva, não individual. Ela advém da necessidade de legitimação do indivíduo frente ao sistema de regras, normas, valores e significados que se impõe a ele. Por isto é que o pesquisador australiano Stewart Clegg afirmou, certa vez, que “pesquisadores que buscam legitimação profissional podem com muita facilidade ser pressionados a aprender mais e mais sobre problemas cada vez mais desinteressantes e irrelevantes, ou a investigar mais e mais soluções que não funcionam”.
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Mas agora me advém uma questão curiosa: por que tantos Nobéis tem denunciado este sistema? Creio que porque do alto da distinção recebida, eles já não tem mais nenhum compromisso com a meritocracia acadêmica, e podem falar do dano que ela causa às ideias realmente inovadoras que, inclusive, podem levar à láurea. Mas também porque o Nobel foge à lógica da meritocracia, ele não é um mecanismo meritocrático, portanto, não é burocrático. Ele é até mesmo político, antes de ser meritocrático e burocrático! É um reconhecimento de “mérito” sem ser uma “cracia”. Ou seja, não há, através dele, um sistema de governo das atividades científicas, e por isso ele não leva a uma racionalidade formal, pois ninguém em consciência normal pautaria sua atividade acadêmica quotidiana pela improvável meta de, talvez já na velhice, ganhar o Nobel; e mesmo que tivesse este excêntrico propósito como pauta, teria que fugir da meritocracia que governa os sistemas científicos atuais para chegar a um lugar reconhecidamente distinto, pois ser normal não leva ao Nobel.
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Mas este não é o mundo da vida dos seres acadêmicos de hoje, aqui vivemos em uma meritocracia burocrática, e num contexto assim, pouco adiantam as advertências da editora-chefe da revista Science, Marcia McNutt, publicados no Estadão, de que a ciência brasileira precisa ser mais corajosa e mais ousada se quiser crescer em relevância no cenário internacional. Segundo ela, para criar essa coragem é preciso aprender a correr riscos, e aceitar a possibilidade de fracasso como um elemento intrínseco do processo científico. Mas quando as pessoas são penalizadas pelo fracasso, ou são ensinadas que fracassar não é um resultado aceitável, elas deixam de arriscar; e quem não arrisca não produz grandes descobertas, produz apenas ciência incremental, de baixo impacto, que é o perfil geral da ciência brasileira atualmente, segundo ela. É a Normose acadêmica “a brasileira” vista de fora.
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Somos todos normóticos em um sistema acadêmico de formação de pesquisadores e de produção de conhecimentos que está doente, e nossa Normose acadêmica tem feito naufragar o pensamento criativo e a iniciativa para o novo em nossas universidades. Sem eles, porém, não há futuro significativo para a vida intelectual dentro delas, nem na ciência nem nas artes.
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Texto de Renato Santos de Souza, publicado no E-Book: NASCIMENTO, L.F.M. (Org.) Lia, mas não escrevia (livro eletrônico): contos, crônicas e poesias. Porto Alegre: LFM do Nascimento, 2014. Fonte: Pragmatismo Político

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Ao mestre com carinho

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A maior parte dos Professores brasileiros acredita que a profissão é desvalorizada no país. Mais precisamente, 90% deles confirmaram isso em respostas à Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem (Talis) da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que ouviu 100 mil Professores e diretores Escolares em 34 países.
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Mesmo com essa porcentagem atingindo um índice tão alto, foi quase unânime a resposta dos profissionais da Educação no país, no tocante à realização profissional. Uma coisa não exclui a outra. Embora reconheçam a desvalorização da profissão, 87% deles disseram se sentir realizados no magistério, o que aproxima da média global que é de 91%.
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Ainda sobre a questão da valorização, apenas 12% dos Professores brasileiros, disseram se sentir valorizados. O resultado também apontou que nos países em que os Professores se sentem valorizados, os resultados no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) tendem a ser melhores. Revelou também um dado preocupante em relação aos Docentes brasileiros. Eles se sentem profissionalmente sós. Os entrevistados elencaram a falta de apoio tanto no período de formação acadêmica quanto depois, no mercado de trabalho como fator preponderante para que o resultado final na sala de aula não seja melhor.
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Vale dizer, que nossos mestres estão entre os Professores que mais trabalham no mundo. Ficam atrás dos profissionais da província de Alberta, no Canadá com 26,4 horas por semana e do Chile com 26, 7 horas. Os brasileiros trabalham em média 25 horas por semana.
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E o que pensar sobre a constatação que mesmo trabalhando mais que a média dos profissionais que participaram da pesquisa, desperdiçam 20% desse tempo, com a indisciplina dos Alunos, quando a média mundial é de 13%?.
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Com todas as dificuldades inerentes à profissão e mais as de ordem estrutural que se agravam à medida que se enxerga as condições educacionais do interior do país, especialmente das zonas rurais, os entrevistados disseram que não trocariam a profissão por outra. Como se chama isso? Amor ao que se faz!
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Os desafios que a categoria enfrenta são muitos, são clássicos, e em termos de história, pouco se tem avançado para uma melhora significativa. Os Professores não querem só bons salários, querem se qualificar, querem crescer, evoluir, fazer a diferença para aqueles os quais estão sob a sua tutela educacional. Mas para isso é preciso que verdadeiramente hajam políticas públicas eficazes e eficientes. As eleições batem à porta. A hora é de apagar da lousa tudo aquilo que não faz mais sentido existir e escrever uma nova história.
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quarta-feira, 2 de julho de 2014

Educação e desigualdade


Navegar, estudar e aprender

Beatriz Cardoso*
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Três verbos complementares entre si, que denotam atividades cognitivas diferentes, cada uma com sua especificidade. Todavia elas tendem a ser tratadas como se fossem a mesma coisa. Embora a relevância dessa afirmação pareça secundária, na prática, o fato de compreendê-las como ações equivalentes tem impactado o Ensino e a aprendizagem da leitura, bem como limitado as possibilidades de apropriação de conteúdos das diferentes áreas do conhecimento.
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No Brasil, segundo os resultados do Sistema de Avaliação da Educação básica (Saeb 2011), apenas 40% dos Alunos do 5.º ano do Ensino fundamental atingiram um nível adequado em compreensão leitora. A situação é mais grave considerando as desigualdades regionais. No Norte e no Nordeste outros 40% se encontram num nível considerado crítico na realização das mesmas atividades (Brasil, 2006, 2012).
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Tal urgência exige inovação, quase sempre atrelada à tecnologia. O envolvimento dos diferentes setores e a preocupação com o resultado da Escolaridade dos Alunos é um ótimo sinal, mas deve-se evitar o reducionismo, que pode pegar carona num panorama de crise. Com frequência, em diferentes fóruns, explicita ou implicitamente, surge o discurso que culpabiliza a Escola por tudo. Há uma expectativa geral de se "tirar a Escola da caixa", que precisa mesmo ser revista. O desafio, contudo, é separar o joio do trigo, identificar as fragilidades e encontrar caminhos para tornar o sistema ajustado aos desafios contemporâneos.
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A Escola pode cumprir papel relevante, desde que reorientada para isso. "Abandonar" esse equipamento, historicamente tão relevante, em troca da oferta direta ao Aluno, que desconsidera a mediação no aprendizado, transferindo-a para contextos virtuais e individuais com o apoio horizontal de uma rede de acesso à informação, pode incidir apenas na superfície do problema. Navegar, estudar e aprender não são sinônimos. A oportunidade de acesso à internet e o contato com conteúdos de diversas áreas do conhecimento não promovem, necessariamente, capacidade de compreensão. A sociedade atual exige o domínio de práticas de leitura e apropriação de "chaves" para a análise e compreensão dos textos, bem como a capacidade crítica para lidar com as informações acessadas.
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O desafio é aprender a decifrar, interpretar, analisar, parafrasear, reproduzir, citar, comentar e produzir textos escritos. Cada uma dessas dimensões requer aprendizagem específica, oportunidade e experiência com o objeto de conhecimento. Temos de migrar da formação de consumidores de leitura para produtores de conhecimento. Isso se faz não apenas por leitura, mas por meio da configuração de contextos intencionais em que o Aluno tenha a oportunidade de explorar essas diferentes dimensões.
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A Escola pode e deve ter protagonismo nesse sentido. Em vez de criar atalhos que corram paralelamente a ela, precisamos encontrar caminhos que potencializem seu papel na sociedade atual. Como dar um lugar inteligente e generativo para a Escola e para o Professor?
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Navegar consiste em categorizar, selecionar e identificar informação. Estudar equivale a saber estabelecer uma rede de conexões entre conhecimentos, experiência e informação. É preciso aprender a fazer isso. Mediar para construir categorias de análise, tornar observáveis determinadas dimensões de um texto, interagir e rever o conhecido, processar a experiência, pensar sobre o objeto de conhecimento, etc. Assim, estudar é aprender a trabalhar com textos escritos de maneira a construir conhecimentos, resolver problemas e desenvolver projetos.
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A inclusão de milhares de Alunos nesse outro patamar, que transitem livremente pelas práticas próprias do discurso letrado, depende de um trabalho intencional e planejado. São necessárias estratégias que os auxiliem a se relacionar de um modo epistêmico com os textos, para que aprendam com e sobre eles, e não apenas para que extraiam informações pontuais sobre um tema em questão. E, nesse contexto, o Professor, como um parceiro experiente, tem papel fundamental.
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É ao "desconstruir" os textos, estudando-os, segmentando-os, analisando-os e interpretando-os, que se avança. O segredo está em como ajudar os estudantes a entrar na camada interna dos textos, a explorar suas formas e características metalinguísticas. Estudar é, portanto, resultado de um conjunto de processos cognitivos que se manifestam por meio dessas microatividades, que se superpõem. Uma das funções da Escola é criar condições para que cada Aluno possa experimentar, isoladamente e em conjunto, cada uma delas. É, no entanto, possível passar por uma Escolaridade que não produza esse contexto de aprendizagem. E na urgência de resolver tal problema há o risco de se investir em programas e propostas que, sob as premissas da inovação, da tecnologia da informação e da atenção individualizada ao Aluno, enfraqueçam cada vez mais a atuação do Professor e, em consequência, o tipo de relação que os Alunos têm com o conhecimento.
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Quais serão as consequências individuais e coletivas dessa opção daqui a uma década?
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Nesse contexto, se quisermos atingir todos os Alunos, e não apenas uma parcela que tem acesso a oportunidades contingenciais, devemos encarar os desafios de valorizar o papel da Escola, de investir na formação dos Professores e no desenvolvimento de conhecimento aplicável e de metodologias que lhes deem suporte. E se quisermos, de fato, garantir igualdade de oportunidades para todos, é mais racional e produtivo capacitar esse quadro, em lugar de criar soluções individualizadas, que vão direto a cada Aluno, como caminho de correção de um problema sistêmico.
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*DOUTORA EM Educação PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), É DIRETORA EXECUTIVA DO 'LABORATÓRIO DE Educação' E FELLOW 2013 DO HARVARD AD-VANCED LEADERSHIP INITIATIVE
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Fonte: O Estado de S. Paulo (SP)

terça-feira, 1 de julho de 2014

A Copa de poucos e a Educação de todos

Vítor Wilher*
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A Copa do Mundo está em curso. Uniram-se em torno dela governadores, empreiteiros, catolas de clubes e da CBF, deputados, senadores, presidentes e outros. Estádios foram demolidos e reconstruídos para atender aos padrões da Fifa. Alguns foram construídos em estados cuja média de público e o interesse por futebol são baixos. Bilhões de reais foram injetados, via subsídio do BNDES, na construção de arenas multiuso que foram concedidas para consórcios que hoje cobram preços maiores que os praticados antes das reformas. A Copa do Mundo é mais um exemplo de que as decisões equivocadas de poucos têm causado enormes retrocessos para o desenvolvimento do país. Inclusive no que diz respeito à Educação.
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Os tempos em que a Copa foi sancionada por todos eram de crescimento, inclusão dos excluídos, inflação sob controle, câmbio favorável. Tempos bem distintos dos atuais. Em algum momento naqueles tempos alguns poucos decidiram que a Copa seria a cereja no bolo do nosso desenvolvimento.
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Muito se falou, ao longo desses anos, da infraestrutura necessária para se sediar uma Copa do Mundo ou uma Olimpíada. Matérias, artigos, análises e outros extensos trabalhos detalharam a situação dos nossos portos, aeroportos, rodovias etc. Tudo foi vistoriado e diagnosticado com o pessimismo que já conhecemos muito bem. Mas e a Educação, o que disseram dela?
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Educação é o início de qualquer processo de desenvolvimento. Não há país desenvolvido que não tenha investido seriamente em Educação. A despeito disso, no Brasil alguns poucos decidiram construir, nas décadas de 50 e 60, um sistema de Ensino superior caro e complexo, gastando 50 vezes mais com esses Alunos que com a Educação básica. Preferimos pegar um atalho para o desenvolvimento?
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Hoje o país gasta cerca de 5 vezes mais em Educação superior do que em Educação básica. Dos 200 milhões de brasileiros, apenas 7 milhões estão matriculados em alguma universidade. É uma razão baixíssima, mesmo entre países de desenvolvimento similar. A que custo? Gastamos US$ 13 mil por Aluno, enquanto os países da OCDE gastam US$ 11 mil. É muito, em termos relativos: no Ensino básico e médio gastamos US$ 2,6 mil por Aluno enquanto os países da OCDE gastam US$ 8,4 mil. Preferimos pegar o atalho, produzindo mão de obra “qualificada” na ponta para a indústria e para os serviços protegidos, enquanto mais de 40 milhões de Alunos fingem que aprendem alguma coisa em nossas Escolas básicas estatais.
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E o que pedem os poucos? Apenas mais recursos. Grevistas da USP querem aumento do repasse do ICMS. O Plano Nacional de Educação acabou de ser aprovado no Congresso, pedindo, entre outras coisas, 10% do PIB para a Educação. Mais recursos públicos para a USP, onde a maioria dos Alunos poderia tranquilamente pagar mensalidades? Mais recursos públicos nesse sistema de Educação básica, descentralizado e caótico, onde Professores são formados em cursos de licenciatura aparelhados por ideologias, diretores são eleitos sem nenhuma qualificação, políticos viram ministros e qualquer esforço de implementar meritocracia e produtividade é visto como economicista?
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Hoje investimos 5,3% (dados do MEC; pela OCDE, são 5,8%) do PIB em Educação, porcentual similar ao dos países desenvolvidos. Em 2003 eram 3,9%. A adição de mais de R$ 50 bilhões nesse período causou melhora? No Pisa continuamos nas últimas posições e o avanço não tem seguido tendência crescente. Pelo contrário, somos piores hoje em leitura do que éramos em 2009. Desconfio que, se nada for feito em termos de gestão e melhor formação de Professores, dobrar a quantidade de recursos não será a resposta. Quanto desses 5% adicionais de PIB serão cooptados pelo sistema de Ensino superior? Programas como o Prouni e o Fies hoje servem como tábua de salvação para universidades privadas ineficientes. Será que essas universidades ficarão com uma fatia do bolo?
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A Copa do Mundo tem tudo a ver com isso. Ela é mais um exemplo de nosso capitalismo de Estado, que elege poucos para controlar muitos. Poucos que controlam 37% da renda anual de todos. Poucos que tomam decisões equivocadas e que são sentidas (e pagas) por todos. Até quando?
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Vítor Wilher, economista, é especialista do Instituto Millenium.
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Concepção de infância: o que mudou?

Silvio Profirio da Silva*
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O objeto de reflexão deste artigo são as modificações ocorridas na concepção de infância. Fazemos aqui um apanhado das principais concepções teóricas do que vem a ser infância, recorrendo para isso aos pressupostos teóricos trazidos por Dahlberg et al. (2003) e Kramer (2003). Objetivamos, desse modo, contrapor duas posturas antagônicas de conceituações sobre a infância. Uma, tradicionalista, concebia a criança como um ser homogêneo e passivo, que simplesmente reproduzia práticas presentes na sua realidade circundante. Outra, contemporânea, concebe a criança como um sujeito heterogêneo e ativo/atuante, ou melhor, como um ator e construtor social, como postulam os autores citados.
 
Nos dias de hoje, a temática da concepção de infância é objeto de debate de uma gama de pesquisadores provenientes de distintos campos de investigação. Pesquisadores advindos da Pedagogia, da Psicologia e da Sociologia aderem a essa temática adotando diversos enfoques e perspectivas, como: a) uma perspectiva histórica das concepções de infância e seus efeitos no tratamento dado à criança ao longo dos anos; b) uma perspectiva documental, mais especificamente a concepção de infância e seus reflexos nos documentos oficiais e propostas curriculares; c) uma perspectiva educacional, mais precisamente a concepção de infância e seus reflexos nas práticas pedagógicas, isto é, a forma como os profissionais da educação concebem a infância e como tal noção influi no seu fazer pedagógico. Há, portanto, vasta linha temática que predomina nos trabalhos acadêmicos acerca da infância.
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Os aportes teóricos trazidos por Dahlberg et al. (2003) mostram inicialmente uma concepção de infância ancorada na centralidade, por intermédio da qual a criança é vista como um ser unificado, estando dissociada do campo social. Dito de outro modo: os elos e os vínculos traçados entre a criança e o campo social não influem na sua constituição como sujeito. É desconsiderada, dessa maneira, a forma como os aspectos socioculturais influenciam o desenvolvimento da criança.
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Kramer (2003), em seus postulados, faz uma bem-sucedida abordagem das noções de infância surgidas ao longo dos anos. Abordaremos aqui duas delas: a concepção de infância homogênea e/ou a-histórica e a concepção de infância heterogênea e/ou histórica. Neste primeiro momento, colocamos em pauta a concepção de infância ancorada na homogeneidade, isto é, a-histórica. Essa concepção está em consonância com a noção de infância pautada na centralidade trazida por Dahlberg et al. (2003). Mesmo que tenham nomenclaturas distintas, ambas postulam a igualdade como aspecto que marca todas as crianças. O que erradica, nesse sentido, as distinções e as singularidades entre elas.
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Ampliando a discussão acerca da noção de infância, Dahlberg et al. (2003) trazem a concepção de criança como reprodutor de conhecimento, identidade e cultura. Tal concepção parte do pressuposto de que a criança consiste em um ser desprovido de conteúdos, ou seja, “uma tábula rasa”, como salientam os autores. Nesse viés, a criança simplesmente irá receber e, em especial, reproduzir conteúdos, conhecimentos e valores culturais advindos das práticas sociais. A criança, nessa perspectiva, é um ser passivo que vai receber e reproduzir mecanicamente os padrões culturais estabelecidos pela sociedade.
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As concepções postas até aqui são de caráter tradicional e/ou tradicionalista, na medida em que preconizam uma concepção de infância monolítica e universal, não atentando para as implicações dos fatores sociais e culturais para o desenvolvimento da criança (em seus múltiplos e diversificados aspectos). A perspectiva tradicional reflete-se ainda no fato de tais concepções defenderem a recepção e reprodução daquilo que é ditado pela sociedade. Nos anos 1980, as discussões acadêmicas atinentes à infância foram colocadas em pauta por diversos campos de investigação, proliferando-se de maneira considerável. Consoante Dahlberg et al. (2003), essa disseminação de postulados acerca da infância advém de distintos campos de estudos – Filosofia, Pedagogia, Psicologia (destacando-se a Psicologia do Desenvolvimento) e Sociologia (com destaque para a Sociologia da Infância). Esses campos de investigação ensejam a produção de novos paradigmas, dentre os quais destacamos aqui uma nova concepção de infância. Os referenciais teóricos trazidos por Dahlberg et al. (2003) mostram também uma concepção de infância pautada na descentralização. Isso significa dizer que a constituição da criança como sujeito está diretamente atrelada ao âmbito sociocultural. A infância é, diante dessa perspectiva, um construto social. No dizer dos autores,
a infância, como construção social, é sempre contextualizada em relação ao tempo, ao local e à cultura, variando segundo a classe, o gênero e outras condições socioeconômicas. Por isso, não há uma infância natural nem universal, nem uma criança natural ou universal, mas muitas infâncias e crianças (DAHLBERG et al., 2003, p. 71).
Essa concepção descentralizada vai ao encontro da segunda noção de infância, postulada por Kramer (2003). Referimo-nos, nesse ponto, à concepção de infância heterogênea e/ou histórica. A constituição da criança como sujeito, nesse viés, está intrinsecamente ligada aos múltiplos e diversificados contextos sociais, rompendo desse modo com a visão monolítica de infância e de criança.
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Aprofundando mais uma vez o debate acerca da noção de infância, Dahlberg et al. (2003) trazem à tona a concepção de criança como co-construtor de conhecimento, identidade e cultura. A criança é, aqui, tida como um ator social que age e participa ativamente da construção social do seu conhecimento. Ela, nesse viés, dá sentido e elabora significados para suas experiências socioculturais, em vez de simplesmente reproduzir as práticas já estabelecidas. Nessa perspectiva, a infância consiste em um construto social marcado pela singularidade e pelos elos/vínculos traçados entre a criança e o seu campo social.
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Estas últimas concepções de infância e de criança aqui postas refletem uma perspectiva contemporânea, na medida em que partem do pressuposto de que a criança é ser singular/único, autônomo e ativo. Essa guinada na concepção de infância é algo resultante dos postulados de diversas ciências (leiam-se Filosofia, Pedagogia, Psicologia e Sociologia). Os paradigmas produzidos por esses campos de estudos são complementares, visto que corroboram para a efetivação da atual concepção de infância como construção social – momento marcado pela singularidade – e da atual concepção de criança como ator social, como propõem Dahlberg et al. (2003).
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Referências
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DAHLBERG, G.; MOSS, P.; PENCE, A. Construindo a primeira infância: o que achamos que isso seja? In:DAHLBERG, G.; MOSS, P.; PENCE, A. Qualidade na educação da primeira infância: perspectivas pós-modernas. Trad. Magda França Lopes. Porto Alegre: Artmed, 2003.
 
KRAMER, S. Infância e sociedade: o conceito de infância. In: KRAMER, S. A política do pré-escolar escolar no Brasil: a arte do disfarce. São Paulo: Cortez, 2003.
Publicado em 01 de julho de 2014.
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*Auxiliar de Desenvolvimento Infantil na Secretaria de Educação, Esportes e Lazer da Prefeitura da Cidade do Recife.
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