sábado, 29 de junho de 2013

"A classe média descobriu a brutalidade policial, que os pobres e negros nunca ignoraram"

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Luiz Eduardo Soares*
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A sociedade brasileira tomou as ruas e sequestrou para si o título que lhe custara bilhões de reais e, por decisões autocráticas, a excluíra: o grande evento. Centenas de milhares de pessoas deslocaram o campo de futebol para o meio da rua e vestiram a camisa do país, assumindo inaudito protagonismo histórico. Resta ao intérprete calçar as sandálias da humildade e admitir sua ignorância e perplexidade ante o fenômeno radicalmente novo. O interesse público fora confiscado pela tecnocracia, aliada a empreiteiras e subserviente à tutela arrogante (e voraz) da Fifa. Os chamados “grandes eventos” serviram de justificativa para lucros extraordinários e para a festa da especulação imobiliária, sob a retórica do legado social, enquanto a mobilidade urbana tornava-se, crescentemente, uma contradição em termos. A massa rompeu expectativas e a tradição de apatia, inventando um movimento que será, por suas lições e efeitos, o verdadeiro legado às gerações futuras. A narrativa passou a ser escrita, nas ruas e nas redes virtuais, por milhões de mãos e vozes, desejos e protestos, inscrevendo seus autores na cena global, em diálogo com outras praças, outras multidões, outras lutas. A sociedade virou o jogo.
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Aplicar velhos esquemas cognitivos serve apenas para exorcizar o novo, domesticar a diferença e mascarar a insegurança intelectual, confirmando velhas crenças e categorias. O momento exige humildade do intérprete e o reconhecimento de que também as categorias tradicionais com que opera estão em xeque, desestabilizadas pela potência disruptiva e criadora do movimento social. Além disso, é necessário reconhecer que a disputa central agora é pelos significados do que está acontecendo, porque do consenso que se construir sobre o sentido dependerá o desdobramento do processo político. Projetando-se os modelos cognitivos convencionais sobre o que é radicalmente diferente, só se vê o que o movimento não é: “não organizado, sem liderança ou centro, desprovido de ideologia e de objetivos, irracional etc.” Entretanto, ele existe. Como descrever sua positividade? Comecemos por ecoar sua polifonia.
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A terra treme porque o país avançou, e as desigualdades, embora ainda imensas, reduziram-se significativamente. As manifestações não são sintoma de declínio, mas afirmação de força e fé no futuro, ainda que pelo avesso, isto é, sob a forma de protesto indignado contra o que, contrastando com os avanços – e mesmo tendo sido por décadas naturalizado – agora tornou-se inaceitável. O pensador francês do século 19 Tocqueville nos ensinou que a miséria e a vulnerabilidade social só conduzem à reiteração da impotência. Rebelam-se os que têm a perder, conquistaram avanços, sentem-se potentes e sob ameaça. A sociedade brasileira aprendeu a valorizar a cidadania e despertou da inércia.
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Os atores reunidos nas ruas, na maioria jovens, são os mais diversos, têm diferentes origens sociais, falam todas as línguas ideológicas e vocalizam as mais variadas denúncias e reivindicações. Seria artificial e contrário ao espírito das manifestações submeter o coro de contrários a uma univocidade ortopédica. Entretanto, uma certeza é consensual: a representação política ruiu. Não é de hoje, mas somente agora o escárnio das esquinas, a repulsa ao mundo político que se limitava às conversas cotidianas ganhou corpo e visibilidade, tanto quanto ganharam visibilidade e reconhecimento milhões de cidadãos antes unidos pelo ressentimento, sentindo-se diariamente desrespeitados pelas autoridades, pelas instituições, pelo transporte público, pelas condições da saúde e da educação. O colapso da representação vinha sendo coberto pela competência do executivo federal, por políticas públicas exitosas, pelo carisma de Lula. Na atual conjuntura, o executivo não é mais escudo protetor para a ilegitimidade do Parlamento, em razão de inúmeros tropeços: repique inflacionário, retrocesso na proteção ao meio ambiente, passividade ante assassinato de indígenas, alianças com impostores venais que tornaram “governabilidade” sinônimo de vale tudo, passividade ante chantagens obscurantistas e regressivas de religiosos fundamentalistas, e tantas hesitações e contradições de um governo claudicante, que recorre ao BNDES para selecionar vencedores, não tem capacidade de investimento, convive com uma infraestrutura sucateada, é insensível ao desafio da competitividade industrial e mantém-se fiel a um modelo econômico insustentável, voltado para o consumo e a proliferação epidêmica de automóveis. Observe-se que nesta lista de problemas há munição ampla o suficiente para atingir a todos, à direita e à esquerda. O colapso da representação política significa o divórcio entre o Estado e a sociedade.
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Um fator determinante foi a cooptação do PT e de um grande número de sindicatos e movimentos sociais por parte do governo federal. A história é pródiga em exemplos de desastres provocados pela superposição entre Estado, governo e partido. Resultado: o PT perdeu a rua, e a UNE, devorada pelo aparelhismo do PCdoB, foi a grande ausente. Erro dramático do PT e do governo federal: no começo, um mar de rosas, ruas vazias, aplausos das categorias, paz para governar. Agora, o vazio, a impotência, a impossibilidade para liderar, dirigir e até mesmo disputar. E o país diante da necessidade de reinventar a política.
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E a violência nas ruas?
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Imaginemos a seguinte descrição do despertar da sociedade brasileira:
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O paciente coletivo respirava por instrumentos na UTI. Graças às melhorias socioeconômicas das últimas duas décadas, recuperou a consciência e os movimentos do corpo, ergueu-se, descobriu que sua casa fora ocupada por políticos venais interessados na reprodução de seus mandatos, cúmplices de empreiteiras e do capital financeiro vinculado à especulação imobiliária, vândalos oficiais a serviço do modelo automotivo de desenvolvimento insustentável, arruaceiros do interesse público, baderneiros bem-comportados de paletó e gravata, desordeiros de colarinho branco. Furioso, o paciente, agora impaciente, espana os parasitas com o vigor redescoberto.
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Creio que esse relato traduza o sentimento que flui nas manifestações. O que parecia ser ordem, antes da onda de protestos, correspondia a transgressões continuadas à Constituição e aos princípios mais elementares da moralidade pública.
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Consultemos, agora, imaginariamente, os sentimentos e as percepções difusas dos jovens mais pobres que têm convivido, diariamente, com a brutalidade policial. Tomo como exemplo acontecimentos desta semana, no complexo de favelas cariocas da Maré: policiais do Bope invadiram residências (derrubando portas e sem mandado judicial), quebraram utensílios domésticos, humilharam, agrediram e ameaçaram moradores dentro de suas casas. Na operação, morreram 10 pessoas: um policial, sete considerados suspeitos de participação no tráfico de drogas e dois oficialmente tidos por inocentes. Contemplemos por um instante outros fatos recorrentes no Rio e em vários outros Estados: chacinas são perpetradas por policiais, milicianos tiranizam comunidades, armas e drogas são apreendidas a ferro e fogo, em incursões bélicas que ferem e matam inocentes, mas são devolvidas em seguida, mediante negociações com traficantes locais ou facções rivais, à luz do dia, diante da comunidade. As autoridades prometem investigar com rigor – e não alteram os protocolos da ação policial. O Ministério Público é responsável pelo controle externo da atividade policial, mas tem sido omisso, com plena anuência da Justiça – ressalvadas as honrosas exceções, entre elas a saudosa juíza Patrícia Acioli, assassinada com 21 tiros por policiais. Quantos profissionais das polícias, envolvidos em chacinas, no rastro dos ataques do PCC em São Paulo, em 2006, foram punidos? Quantos foram investigados e punidos no Rio, onde 9.231 mortes foram provocadas por ações policiais entre 2003 e 2012? Esses dados deveriam levar-nos a compreender a fonte da indignação furiosa de quem depreda – deixo de lado, evidentemente, os criminosos que se aproveitam da situação. Não se trata de justificar a violência, mas de entender suas raízes e, sobretudo, de explicar por que a massa considera hipócrita o foco da mídia na ação dos assim chamados “vândalos”. Antes das manifestações, não havia ordem e normalidade, mas vandalismo continuado, praticado por aparelhos do Estado contra muitos, nas periferias, Brasil afora. Falta equidade no tratamento por parte do Estado e da mídia. A ordem tida como natural antes da eclosão das manifestações não era menos destrutiva do que a desordem promovida por alguns manifestantes. Esse é o ponto – o qual, insisto, não justifica a violência, mas a torna inteligível.
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A violência cometida nas ruas por grupos sempre atuantes, embora francamente minoritários, têm sido o maior obstáculo ao sucesso do movimento. Quem pratica saques e quebra-quebras põe-se como inimigo da massa que se manifesta nas ruas e contribui para a estigmatização do movimento e seu esvaziamento. Essa prática coloca para qualquer polícia, mesmo a melhor do mundo e a mais democrática, um desafio trágico, um problema insolúvel. Uma polícia para a democracia tem o dever de garantir direitos. É este seu mandato constitucional. Há os direitos dos cidadãos à livre manifestação e também aqueles que estão sendo violados por quem age com violência destrutiva. Está em jogo o interesse público seja na plena liberdade do movimento, seja na proteção ao patrimônio público. Quando manifestantes depredam, criam um dilema incontornável para o poder público e a polícia – e por isso o fazem: projetam seu ódio e buscam um cadáver, geram as condições para o surgimento do mártir, diante do qual as manifestações seriam empurradas para o abismo das retaliações recíprocas intermináveis. O que deve fazer uma polícia comprometida com a legalidade constitucional? Reduzir danos, atuar no limite superior da tolerância e inferior do uso da força, buscar o diálogo, apostar na compreensão da imensa maioria sobre os impasses. O que uma polícia que serve à cidadania, cumprindo o mandato constitucional democrático, não deve fazer? Aquilo que tem sido a rotina no Rio e tem ocorrido em outras cidades e Estados: investir na vingança, provocar manifestantes, prender discricionariamente, agredir indivíduos desarmados e isolados, acuar grupos em vez de suscitar condições para que dispersem, atacar arbitrariamente, ostentar o sorriso de escárnio como bandeira de seu ressentimento, reafirmando pela prepotência a profundidade de sua própria insegurança e de seu descompromisso com a legalidade. Tampouco deve usar armas menos letais como se fossem não letais. Pior: como se fossem brinquedos inofensivos de uso ilimitado. De sua parte, cabe ao movimento, mesmo mantendo-se descentralizado e apartidário, organizar-se minimamente para inibir as práticas que, de fato, tentam desqualificá-lo, politicamente.
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Duas questões me parecem decisivas:
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(1) A classe média descobriu a brutalidade policial, que os pobres e negros nunca ignoraram. Polícia tornou-se um dos temas chave, nas ruas. Por que a presidente omitiu o debate em torno da mudança do modelo policial, que envolve a desmilitarização, e que vem sendo adiada desde a transição democrática? É urgente estender a transição à segurança pública. O silêncio oficial tem sido cúmplice de milhares de execuções extrajudiciais, de torturas, violações cotidianas, inclusive contra os próprios policiais. Até quando reinará a negligência? Nada mais desconectado das ruas e da realidade do que a proposta patética das oposições: “mais verbas para a segurança pública”. Como alimentar essa máquina de morte, essa fonte de violações? Nenhum centavo deveria ser concedido antes que se refundassem as polícias.
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(2) A proposta presidencial sobre reforma política sem dúvida dialoga com o eixo dos protestos, isto é, focaliza o colapso da representação. Entretanto, só fará sentido se mostrar-se capaz de quebrar os mecanismos em curso. Isso não guarda relação clara para a maioria dos manifestantes com sistema eleitoral – distrital, simples ou misto, ou proporcional –, voto em lista, financiamento de campanha etc. O que poderia conversar com as ruas seria uma proposição radical, que sepultasse a representação política como carreira e negócio. Eis um exemplo: para o parlamento, eleições a cada dois anos com apenas uma reeleição, candidaturas avulsas da sociedade seriam possíveis, salários dos deputados seriam iguais aos dos professores, cada um teria três assessores, nada de carro oficial, verba de gabinete ou aposentadoria por oito anos de trabalho, dinheiro para campanha apenas aquele doado por cidadãos (tendo 500 reais como teto – sobre os recursos deveria haver plena transparência com informação em tempo real via internet), nada de tempo na TV, que virou moeda (utilize a internet quem quiser e puder mobilizar sua rede). Eleitos seriam os mais votados, sem os coeficientes partidários e as coligações. Para o Senado, não haveria suplente, os mandatos seriam de quatro anos sem reeleição e as condições seriam as mesmas dos deputados. Para o executivo, apenas um mandato de cinco anos e regras específicas. Enfim, uma transformação realmente profunda poderia sensibilizar a maioria da sociedade e reconectá-la à representação.
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*Antropólogo, cientista político, escritor, professor da UERJ
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Fonte:http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/cultura-e-lazer/segundo-caderno/noticia/2013/06/a-classe-media-descobriu-a-brutalidade-policial-que-os-pobres-e-negros-nunca-ignoraram-4185349.html

quinta-feira, 27 de junho de 2013

O caráter das novas manifestações

Leonardo Boff*
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"Estou fora do pais, na Europa a trabalho e constato o grande interesse que todas as mídias aqui conferem às manifestações no Brasil. Há bons especialistas na Alemanha e França que emitem juízos pertinentes. Todos concordam nisso, no caráter social das manifestações, longe dos interesses da política convencional. É o triunfo dos novos meios e congregação que são as mídias sociais.
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O grupo da libertação e a Igreja da libertação sempre avivaram a memória antiga do ideal da democracia, presente, nas primeiras comunidades cristãs até o século segundo pelo menos.Repetia-se o refrão clássico:"o que interessa a todos, deve poder ser discutido e decidido por todos". E isso funcionava até para a eleição dos bispos e do Papa. Depois se perdeu esse ideal nas nunca foi totalmente esquecido. O ideal democrático de ir além da democracia delegatícia ou representativa e chegar à democracia participativa, de baixo para cima, envolvendo o maior número possível de pessoas, sempre esteve presente no ideário dos movimentos sociais, das comunidades de base,dos Sem Terra e de outros. Mas nos faltavam os instrumentos para implementar efetivamente essa democracia universal, popular e participativa.
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Eis que esse instrumento nos foi dado pelas várias mídias sociais. Elas são sociais, abertas a todos. Todos agora têm um meio de manifestar sua opinião, agregar pessoas que assumem a mesma causa e promover o poder das ruas e das praças. O sistema dominante ocupou todos os espaços. Só ficaram as ruas e as praças que por sua natureza são de todos e do povo. Agora surgiram a rua e a praça virtuais, criadas pelas mídias sociais.
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O velho sonho democrático segundo o qual o que interessa a todos, todos tem direito de opinar e contribuir para alcançar um objetivo comum, pode em fim ganhar forma. Tais redes sociais podem desbancar ditaduras como no Norte da África, enfrentar regimes repressivos como na Turquia e agora mostram no Brasil que são os veículos adequados de revindicações sociais,sempre feitas e quase sempre postergadas ou negadas: transporte de qualidade (os vagões da Central do Brasil tem quarenta anos), saúde, educação, segurança, saneamento básico. São causas que tem a ver com a vida comezinha, cotidiana e comum à maioria dos mortais. Portando, coisas da Política em maiúsculo.
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Nutro a convicção de que a partir de agora se poderá refundar o Brasil a partir de onde sempre deveria ter começado, a partir do povo mesmo que já encostou nos limites do Brasil feito para as elites. Estas costumavam fazer políticas pobres para os pobres e ricas para os ricos. Essa lógica deve mudar daqui para frente. Ai dos políticos que não mantiverem uma relação orgânica com o povo. Estes merecem ser varridos da praça e das ruas. Escreveu-me um amigo que elaborou uma das interpretações do Brasil mais originais e consistentes, o Brasil como grande euforia e empresa do Capital Mundial, Luiz Gonzaga de Souza Lima. Permito-me citá-lo: "Acho que o povo esbarrou nos limites da formação social empresarial, nos limites da organização social para os negócios. Esbarrou nos limites da Empresa Brasil. E os ultrapassou. Quer ser sociedade, quer outras prioridades sociais, quer outra forma de ser Brasil, quer uma sociedade de humanos, coisa diversa da sociedade dos negócios. É a Refundação em movimento".
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Creio que este autor captou o sentido profundo e para muitos ainda escondido das atuais manifestações multitudinárias que estão ocorrendo no Brasil. Anuncia-se um parto novo. Devemos fazer tudo para que não seja abortado por aqueles daqui e de lá de fora que querem recolonizar o Brasil e condená-lo a ser apenas um fornecedor de commodities para os países centrais que alimentam ainda uma visão colonial do mundo, cegos para os processos que nos conduzirão fatalmente à uma nova consciência planetária e a exigência de uma governança global. Problemas globais exigem soluções globais. Soluções globais pressupõem estruturas globais de implementação e orientação. O Brasil pode ser um dos primeiros nos quais esse inédito viável pode começar a sua marcha de realização. Dai ser importante não permitirmos que o movimento seja desvirtuado. Música nova exige um ouvido novo. Todos são convocados a pensar este novo, dar-lhe sustentabilidade e fazê-lo frutificar num Brasil mais integrado, mais saudável, mais educado e melhor servido em suas necessidades básicas.
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* Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também escritor. É dele ''O destino do homem e do mundo' (Vozes, 2000). - lboff@leonardoboff.com
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Fonte: Jornal do Brasil (RJ)
 

Educação e humor


Câmara aprova 75% dos royalties para Educação e 25% para Saúde

Contrariando a intenção manifestada pela presidente Dilma Rousseff de destinar 100% dos recursos dos royalties do petróleo para a Educação, a Câmara dos Deputados aprovou, na madrugada de hoje, proposta que obriga a destinação de 75% destas receitas à Educação e os outros 25% para a Saúde. Além disso, o projeto aprovado criou um gatilho que vincula a aplicação de 50% dos recursos do Fundo Social (criado com as novas regras de exploração do pré-sal) ao cumprimento da meta de investir 10% do PIB em Educação, prevista no Plano Nacional de Educação (PNE). O projeto agora terá de ser aprovado pelo Senado.
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A proposta original da presidente Dilma destinava à Educação apenas os "rendimentos" de 50% do Fundo Social. Com a mudança do texto na Câmara, os valores vão subir consideravelmente. O autor do novo texto é o líder do PDT, deputado André Figueiredo (CE). Ele disse acreditar que as mudanças trarão mais cerca de R$ 280 bilhões para as áreas de Educação e Saúde. A proposta original do governo previa mais R$ 25,8 bilhões em dez anos.
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Apesar de o projeto ter sido aprovado em votação simbólica, o líder do governo na Câmara, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), avisou que o governo não tem compromisso com as mudanças no texto, sinalizando que Dilma poderá vetar alguns trechos.
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- O governo não tem nenhum compromisso. Queremos 100% para a Educação - disse Chinaglia.
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Os novos percentuais de destinação dos royalties foram negociados entre os partidos governistas e a oposição.
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No caso do Fundo Social, a proposta prevê que serão destinados à Educação 50% dos recursos do fundo, que foi criado com as regras de exploração do pré-sal. Esta é uma mudança substancial no texto da presidente Dilma, que previa a destinação apenas dos rendimentos do Fundo Social, ou seja, um valor bem menor.
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Pelo novo texto, os 50% dos recursos do Fundo Social serão destinados à Educação até o cumprimento da meta de investimentos de 7% do PIB em Educação, em cinco anos, e de 10% do PIB, em dez anos. Estas metas estão no Plano Nacional da Educação, que foi aprovado na Câmara e que está tramitando no Senado. O governo é contra essas metas.
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Outra mudança aprovada na Câmara foi no tipo de contrato. No primeiro artigo, o projeto prevê que serão destinadas a Educação e Saúde as receitas provenientes dos royalties relativas a áreas cuja declaração de comercialidade tenha ocorrido a partir de 3 de dezembro de 2012, relativas a contratos celebrados sob os regimes de concessão e de partilha de produção.
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O projeto sobre a destinação dos recursos dos royalties foi enviado ao Congresso pela presidente Dilma Rousseff com urgência constitucional, e anunciado com pompa pelo governo.
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Os parlamentares sustentaram que a Saúde também precisa se recursos e não apenas a área da Educação. Nos bastidores, os líderes governistas concordaram com a nova divisão dos percentuais, já que havia o risco de o projeto do governo ser derrotado, e de ser aprovado um substitutivo que daria mais problemas ao governo.
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A proposta de investimentos também em Saúde foi apresentada formalmente pelo líder do DEM, deputado Ronaldo Caiado (GO), mas teve o apoio de líderes da base aliada, como o líder do PMDB na Câmara, deputado Eduardo Cunha (RJ). A bancada da Saúde tem até mais peso na Câmara que a da Educação.
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Assessores do Ministério da Educação criticaram o acordo feito em torno do novo texto. A avaliação é de que o item que mais preocupa é justamente a mudança na destinação do Fundo Social, ao fazer a vinculação com as metas do PNE. O presidente da Câmara, deputado Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), chegou a negociar o cancelamento da votação, com a retirada da urgência constitucional, para votar primeiro projeto sobre critérios de repasse do Fundo de Participação dos Estados (FPE). Mas o próprio PT fez um acordo em torno do novo texto, derrubando a estratégia de Alves.
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Fonte: O Globo (RJ) 

segunda-feira, 24 de junho de 2013

O outro Leviatã


O Brasil não é para principiantes (Tom Jobim)


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Por Lúcio Alves de Barros*
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A presidente Dilma Rousseff acaba de falar, após reunião com governadores e prefeitos das capitais, da necessária e obrigatória ação conjunta no intuito de melhorar os serviços públicos no Brasil. Finalmente, a presidente abriu um buraquinho na “caixa de pandora”. Ainda é pouco e muito pouco, mas como ela diz, “escutei as vozes da rua”. Sábia, a senhora defendeu a república e ações participativas. Tratou de deixar a coisa meio didática e delineou cinco pontos:
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(1) estabilidade fiscal (o que não é mais que a obrigação);
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(2) uma reforma política com a proposição de um plebiscito para uma Constituinte com fim exclusivo de tratar desse assunto (espero que fique por aqui mesmo. Uma PEC seria interessante também);
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(3) Recursos e ações exclusivas para o SUS (óbvio e claro como a lua cheia. A dengue e outras falácias do SUS já mostraram a necessidade de maiores investimentos neste campo);
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(4) plano para o transporte público, com o anúncio de desoneração de PIS e COFINS para o diesel e para a energia que move veículos da rede de transporte (já deveria ter feito isso antes, cumpre perguntar por que não o fez. Empresários do setor de transportes são crias políticas e mandam e desmandam no executivo);
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(5) ações para a educação com destinação de 100% dos recursos do pré-sal para o setor (só acredito vendo, pois as escolas públicas já estão um lixo há anos e esperar o pré-sal para solucionar o caos da educação pública é desejar manter o povo na ignorância em que se encontra). As propostas de escolas de tempo integral e outras práticas que ela disse são velhas e morreram com as políticas vigentes. Vamos ver.
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De todo modo, quem achou que as mobilizações não dariam em nada caiu do cavalo. Ela pode estar ganhando tempo e respondendo anseios e apelos internacionais (A Fifa tem um poder enorme). Muitas das propostas são de longo prazo e “em longo prazo o povo já morreu”.
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Neste sentido, ela pode estar esperando o cansaço da população e o remédio da violência que se alastrou pela e através da polícia no Brasil. O fato é que boa parte da população ainda permanece no espaço público e ainda se encontra indignada com os gastos da COPA (sem falar da falta de transparência) e desejam muito mais. Desejam porque podem. Desejam porque querem. Desejam porque merecem. Desejam porque o Brasil tem o que oferecer. Se nada mudar, restam as eleições. Pena que o povo tem memória curta.
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PS1: É obrigação e dever dos governadores a revelação do estrago que fizeram e ainda vão fazer no campo da segurança pública (a repressão anda solta e não por acaso falaram em golpe). Muita gente apanhou, se machucou e duas pessoas morreram nesta brincadeira de pega ladrão da polícia. É necessário que cada caso seja apurado e que o Ministério Público responsabilize os funcionários que saíram do controle.
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PS2: Não creio que as mobilizações vão parar. Também não acho que vão muito mais longe. Muitas reivindicações que tocam o judiciário e o legislativo precisam de ampla discussão. O congresso ainda está calado e poucos se atreveram a dizer algo. De duas uma: (1) ou o legislativo se escondeu entre o medo e a esperança da coisa ficar feia para o executivo ou (2) aposta no hiper poder do executivo que tende a tomar as dores e a liderar as mudanças que deveriam ter nascido no congresso.
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Detalhe: O judiciário ainda é campo minado e é uma instituição para poucos. Passou da hora de saber os rumos do mensalão e de outras falcatruas que andam paradas nos recursos daqueles que ainda teimam em furtar o país.
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*Professor da FAE / Campus BH / UEMG
 

sábado, 22 de junho de 2013

Técnicas para a fabricação de um novo engodo, quando o antigo pifa


13.06.20_Silvia Viana_Técnicas para a fabricação de um novo engodo
Por Silvia Viana.*
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Um bom começo para a reflexão que deve se seguir ao dia de ontem (e acompanhar aqueles que virão): observar atentamente a reconstrução do discurso da grande mídia. Nesse momento, é possível assistir, com nitidez cristalina e ao vivo, cada etapa da linha de produção de uma nova ideologia. E já que a mercadoria ainda não está pronta, é fundamental tomarmos nota de seus componentes para não corrermos o risco de fornecer matéria-prima.
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As anotações que se seguem são relativas à audiência da cobertura do Globo News de ontem e da quinta-feira passada; do Jornal da Record e do Jornal do SBT de ontem; e do Cidade Alerta de quinta (sim, eu ainda tenho estômago).
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O elemento central do discurso que ora se monta é a minimização dos fins em relação aos meios. Ao longo das duas horas que assisti ao GN, em momento algum foi discutida a questão do aumento das tarifas. O fundamental são os meios: o manifesto foi violento ou não, houve, ou não, negociação entre as partes, quais os trajetos e pontos ocupados, quantas pessoas aderiram etc. Essa técnica tem um foco político autoevidente: ignorar o objetivo do movimento; e outro opaco: apontar para a manifestação como um fim em si.
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Não os subestimemos, a manobra é esperta, pois reflete uma forma de fazer política que tem se tornado usual em SP: ocupar espaços públicos por ocupar, “sem bandeiras”, “por amor”, “porque a cidade é nossa” etc. Desse modo, a manifestação se assemelha a uma forma de terapia: faz bem, é gostoso, alivia frustrações etc. Ela é democrática, logo, vale por si mesma…
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Mas não mencionar o verdadeiro mérito da questão é apenas uma das técnicas de anulação da causa e, nesse momento, seria frágil, não fosse a técnica complementar de abstração dos fins: “não são só 20 centavos, não é só o transporte, não é só a copa…”. As negativas crescem até que o protesto pareça um movimento por nada.
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Por outro lado, é importante construir uma falsa positivação, também ela vaga. Uma matéria significativa foi feita na GN nesse sentido (e reprisada duas vezes): os repórteres entrevistaram pessoas aleatórias na passeata, cada qual com uma demanda diferente e nenhuma delas referente à finalidade concreta do ato: “saúde”, “educação”, “segurança” etc.
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Essa tipificação clássica e simplificadora é útil, pois, por um lado, compartimenta a política em módulos passíveis de gestão, excluindo a estrutura que as amarra; por outro, recusa soluções imediatas – por exemplo, a exigência é por educação, e não pelo aumento de 17% para os professores da rede municipal. Nesse âmbito médio, tanto a crítica sistêmica quanto a exigência do movimento se esfumam.
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Nesse tópico (abstração dos fins), cabe um comentário: assisti ontem aos dois blocos finais do Roda Viva, com os líderes do Movimento Passe Livre, sua postura foi um belo antídoto contra o que estou descrevendo: eles afirmaram que as passeatas são sim pela redução dos R$ 0,20. A partir dessa “migalha” foi possível a construção de inúmeras contradições e a recomposição de questões estruturais: dos 20 centavos ao transporte, à estrutura urbana, ao sentido do público, chegando à matriz que, hoje, o organiza: o mercado.
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Então vamos à terceira técnica no que tange aos fins. Como eu afirmei antes, a classificação da política por nichos de demanda é útil por excluir a lógica estrutural subjacente. Mas a mídia está fabricando uma amarração artificial: a “corrupção”. As palavras finais da âncora de um dos jornais do GN foram mais ou menos essas: “Encerramos, então, nossa cobertura desse dia de manifestações contra a corrupção, o superfaturamento e tudo o que está errado no país”.
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A corrupção, que também é uma abstração, aparece como fonte original de todas as mazelas e móbile principal das expressões de descontentamento. Trata-se da falsa bandeira mais útil para a grande mídia por uma razão ideológica: ninguém em sã consciência seria favorável à corrupção, trata-se de uma bandeira imune ao conflito (que é o princípio da política). Mas é útil também por ser moeda valiosa nas negociatas entre as grandes empresas de mídia e os partidos e governos.
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Por fim, a corrupção é um produto ideológico pronto. Ela aparece como um problema moral, portanto pontual, que toca apenas o poder público, e não tem relação alguma com o assim chamado “livre mercado”.
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Também nesse ponto, o Movimento Passe Livre e sua reivindicação precisa, são uma criação política extraordinária. É impossível discutir o aumento das tarifas sem nos darmos conta da origem sistêmica da corrupção: a relação, ao mesmo tempo espúria e estrutural, entre as empresas privadas (nesse caso, de transporte) e o poder público.
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Dito isso, cabe pensar o gigantismo dos meios nos discursos midiáticos. O ponto central é, evidentemente, o uso ou não da violência. Quanto a isso, foi possível acompanharmos quatro momentos discursivos claramente delimitados:
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1. “Os manifestantes são vândalos, bárbaros, imbecis e a polícia cumpriu muito bem o seu papel” (Marcante nesse momento foi aquela coisa proferida por Arnaldo Jabor, que dispensa adjetivações).
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2. “Há uma violência equivalente de ambos os lados, a polícia está despreparada para lidar com esses malditos vândalos”.
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3. A mudança no segundo discurso ocorreu ao vivo, durante a transmissão do ato de quinta-feira, em São Paulo: a tarja explicativa das imagens (não sei o nome técnico dessas tiras de engodo destilado) no GN afirmava: “briga e confusão no protesto…”. Após a divulgação da notícia de que alguns repórteres haviam sido feridos, a frase mudou: “confronto no protesto…”. Já a fala do âncora do Cidade Alerta se tornou esquizoide, oscilando entre posições irreconciliáveis contra e a favor da ação da polícia, do Estado, dos manifestantes, da violência.
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4. O quarto momento é (está sendo) a reorganização desse ponto de ruptura. Os telejornais já não podem manter o primeiro ou o segundo discursos, não apenas pela aprovação popular às manifestações, mas porque o reacionarismo anti-manifestação, que se alastrou nos últimos anos, apareceu em seu paradoxo de modo irrecusável: não é possível defender a democracia e ser contra o conflito.
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Visto que, de uns dias para cá, ficou inviável associar qualquer forma de dissenso à violência (oh! Meu direito de ir e vir…), a solução, por ora, é negar o conflito por outra via: o problema não são as manifestações, mas o momento em que elas “descambam” graças a alguns “elementos extremistas desgarrados”.
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Esses, que passaram do total de manifestantes, no primeiro momento, a parte do movimento, no segundo, tornaram-se uma exceção que deve ser prontamente eliminada. Ontem, esse argumento apareceu de modo sutil no GN através de uma interminável e repetitiva entrevista a um repórter que acompanhou os conflitos no Rio – sua visão “objetiva” dispensou o âncora de articular a mentira de forma direta.
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Já no Jornal SBT, bem menos sofisticado, a balela era escancarada, algo como: “a imensa maioria é pacifista e apenas quer se manifestar, os demais são aproveitadores que só querem fazer baderna; para esses, a força policial ainda é indispensável e deve ser enérgica”. Mais uma vez, os fins somem: uns estão lá para uma linda terapia de massa, outros para fazer baderna.
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Essa dualização ficou plasmada na transmissão ao vivo da Record. Intencionalmente ou levados por algum tipo de automatismo inconsciente, os editores dividiram a tela ao meio: de um lado, imagens dos manifestantes na avenida Paulista, em um ponto no qual já não caminhavam, pois haviam chegado a seu destino; do outro, imagens dos confrontos no Rio de Janeiro. Naquela metade, a imagem estava clara e brilhante; na outra, a iluminação vinha das fogueiras, tudo em volta era escuridão. A narração confirmava a edição (lembremo-nos: edição, pois as imagens em São Paulo eram ao vivo e as do Rio, corriam em loop): o bem e o mal, o aceitável e o inaceitável.
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Através dessa simplificação é possível a construção, não apenas de um novo discurso, mas também de uma nova pauta: o importante é a Paz!!! Os meios, então, se convertem, ainda uma vez, em objetivo e o reacionarismo se segura como pode, rearticulando os acontecimentos sob a chave-mestra da ideologia contemporânea: a segurança.
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Outra técnica para lá de esperta, pois a mídia não apenas desloca o conflito verdadeiro, como dá a pinta de ter matizado seu segundo momento discursivo (e as “desculpas” do Seu Jabor se encaixam aqui); ou seja, a noção de que há uma equivalência de forças e razões entre manifestantes e o aparato repressivo dos estados, se mantém: os policiais ainda “apenas reagem”.
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Há ainda muito a se refletir se partirmos desse material asqueroso que subitamente se tornou rico (para quem quer pensar, é claro!): o retorno de uma patriotada descabida (nada como uma ideologia basilar como a Nação para nublar o conflito); os descontentamentos específicos que ficaram de escanteio, como os reais motivos das manifestações contra a copa (o problema não é a corrupção, mas o fato de que os grandes eventos são, em si mesmos, a subtração de tudo o que ainda possa haver de público); o ponto de inflexão que foi a brutalização dos jornalistas na quinta-feira passada – e a ideia subjacente de que há os espancáveis e os não espancáveis; o uso descarado dos embates em torno das bandeiras partidárias nas manifestações; a fácil apropriação do slogan “acorda Brasil”, que poderia ter sido formulado pelo publicitário da Johnnie Walker, e por aí vai.
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Mas muito ainda pode mudar tendo em vista a despolitização, pois se há algo ilimitado é a cara-de pau de nossa mídia monopolista, bem como o poder de urgência das ruas.
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Eu acabei de escutar, no boteco aqui em frente, o Marcelo Rezende afirmando: “eu também estou nas ruas com eles”. Para que não esteja, e saiba que não está, vale a pena escutar quem importa. O atendente do boteco, um motoboy e um morador de rua, que presta serviços esporádicos para o comércio local, conversavam: “Eles estão certos, quem é pobre que sabe o que é pagar ônibus”. “Mas tem o vandalismo…”. “Eu acho que só não tem que quebrar comércio pequeno, se quebrar o Congresso vou achar ótimo”. “Não é vandalismo não, que vandalismo é quando não tem porquê”.
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* É socióloga. Artigo Publicado originalmente no site Prática Radical, em 19 de junho de 2013.
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Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/2013/06/21/tecnicas-para-a-fabricacao-de-um-novo-engodo-quando-o-antigo-pifa/

terça-feira, 18 de junho de 2013

Sinfonia de gritos indignados


 
 
 
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Fonte: O Tempo (MG)
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Lúcio Alves de Barros*
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Os protestos que ocorreram em muitas cidades e capitais do Brasil não podem ser entendidos como acontecimentos espontâneos. Não existem mobilizações sociais nascidas do nada. Elas são produto de histórias e configurações múltiplas que marcaram os indivíduos que antes permeavam o tecido social.
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Os movimentos tiveram início logo na parte da manhã. Jovens, adultos, mulheres, homens e crianças paulatinamente foram se reunindo em locais “estratégicos” das cidades. São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Belém, Porto Alegre, Curitiba e Salvador foram algumas das cidades que receberam milhares de pessoas que resolveram reivindicar por tudo e por nada ao mesmo tempo e agora.
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O movimento já vinha tomando corpo tanto em Porto Alegre como em São Paulo. Nestas cidades, principalmente a última, o movimento já vinha tomado proporções já esperadas, mas que não foram democraticamente aceitas. A polícia de lá reprimiu com força os manifestantes e acabou sobrando para muitos que foram parar em hospitais, páginas de jornais e nas redes sociais com marcas que ficarão por um bom tempo na memória.
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O grito dos muitos em São Paulo acordou outros os quais indignados organizaram e saíram às ruas no dia 17 de maio que inegavelmente ficará na história deste país. Os meios de comunicação oscilaram entre o apoio e a denúncia. A polícia, batendo cabeça em tempos de polícia comunitária, direitos humanos e respeito ao paisano, atuou à deriva e desproporcionalmente se refugiou na violência em detrimento do tão propalado uso da força física comedida. Em Porto Alegre e em Belo Horizonte a brutalidade correu solta. O Rio de Janeiro foi marcado por um início cordial e terminou no vandalismo puro e simples de alguns. Em Brasília o povo resolveu ocupar, mas não destruir. Interessante nossa jovem democracia, balança, mas não cai. De todo modo, a sinfonia de gritos quer dizer alguma coisa. Aposto em algumas:
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É claro o mal-estar da população. A insatisfação com a categoria política composta por autoridades que dormem há anos no poder é manifesta. Um vazio político aponta para o descrédito da representatividade que invade a alma da população descontente com os rumos do transporte público, da educação, da saúde, da política, da justiça, da economia e da segurança pública. Estas são algumas das reivindicações reveladas em cartazes, narrativas e faixas carregadas por vários manifestantes. É bom esperar que vereadores, prefeitos, deputados, senadores e governadores saibam ler.
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Não é possível subestimar o poder das redes sociais. No Brasil, onde a TV demorou a chegar, o celular e outros instrumentos eletrônicos tornaram-se moeda corrente e a internet já caiu nas graças da juventude desde a década de 1990. Entre curtidas, textos e imagens sem fim um acordo tácito foi forjado. Bastou em seguida um convite, a marcação do horário e o pedido de presença para que pelo menos as pessoas fossem às ruas em apoio às reivindicações. Trata-se de um movimento sem cor, cheiro, raízes partidárias e credo religioso. Já por aí ele merece o maior cuidado e respeito. Sem lideranças, mas com reivindicações as pessoas se uniram ao vivo e ao mesmo tempo se organizaram em três ou quatro lugares. Em determinados localidades a polícia agiu com perfeição esperando os ânimos se acalmarem. Em outros tanto a polícia como os manifestantes caminharam rápido para o desespero, o medo, a brutalidade e a crueldade.
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Toda mobilização é simbólica e como tal resulta em ações esperadas e não esperadas. Tenho sérias dúvidas de que alguém poderia esperar aquela multidão que tomou as ruas do Rio de Janeiro, de Brasília, Belo Horizonte, Belém e Salvador. Dificilmente se esperava tanta gente. Muito menos a ação da polícia em Porto Alegre. Ao contrário do que se pensa, não é muito bom mobilizações sem lideranças ou instituições que possam responder por elas. Na perda do controle o movimento social não sabe para onde ir e raramente não resulta em vandalismo, quebradeira, muita gente machucada e morte. A inexistência de uma liderança clara pode, por outro lado, levar mais pessoas às ruas, principalmente diante do estado da arte que revela nossa categoria política. Se a Copa das Confederações e o aumento abusivo das passagens do transporte público foram os sinais para que aflorassem a indignação é possível esperar mais pessoas nas ruas. Os gastos para o empreendimento internacional foram vergonhosos. Sem o mínimo de transparência governos aumentaram as passagens urbanas (que estão abaixando). Dois acontecimentos e muitos tapas na cara da população que indignada gritou. Toda ação irresponsável tem início, meios e fim. O começo todos sabem como é, o final é inesperado e para poucos.
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Finalmente, foi louvável a fala da presidente Dilma Rousseff que rapidamente resgatou e deu legitimidade às mobilizações. Ela tem falado que prefere o grito das ruas que o silêncio dos porões. Obviamente, ela sabe da importância e da envergadura de atos coletivos que clamam por direitos há muito vandalizados pelo próprio governo. Por outro lado, os governadores não parecem tão preparados como a presidente. Vaiada ela se encolheu. Diante dos holofotes, os donos da polícia, especialmente a militar, gritaram alto. Exigiram ordem. Bateram em adolescentes e demoraram a negociar limites e possibilidades de ordem e paz. Em Belo Horizonte, por exemplo, em plena negociação foram utilizadas balas de borracha, bombas de “efeito moral”, cassetetes e a Polícia Militar não descansou. Um jovem (Gustavo Magalhães Justino, de 19 anos) caiu de um viaduto quando corria das bombas. Quando avisada, a polícia cidadã foi clara: “não tava rezando não”, “ tava na confusão”.
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*Professor da FAE (Faculdade de Educação) - Campus BH / UEMG
 

sábado, 15 de junho de 2013

Povo, polícia e repressão em uma jovem democracia

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Lúcio Alves de Barros*
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São inaceitáveis as ações dos policiais militares contra os manifestantes de São Paulo, Rio de Janeiro e outras que certamente estão por vir. Tudo ficou claro diante da fumaça porca e fedorenta das bombas jogadas aqui e ali que vitimaram, inclusive, idosos e crianças.
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A coisa ficou mais feia porque agora atingiu em cheios os olhos da imprensa. Imagens revelaram que a polícia literalmente atirou nos jornalistas que estavam trabalhando. Penso que tudo reforça o retrocesso de uma democracia ainda jovem. São perigosas as ações que revelam o total despreparo das polícias em ordem democrática. Não podemos esquecer que esta polícia é fruto e imagem do seu governador, gerente e chefe maior deste exército de policiais militares que há muito já deveria ter deixado de ser militar.
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É óbvio que todos são contra a quebra de coletivos, órgãos públicos, equipamentos urbanos, etc. Mas não foi por isso que a polícia militar estava por lá. Não foi pela manutenção da ordem. Ela já existia antes que ela chegasse. A mobilização tornou-se perigosa com a presença do Estado armado e cheio de adrenalina. Ações violentas geram mais violência e desrespeito. E há tempos já sabemos que a polícia é violenta e mata mesmo.
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Os episódios, contudo, podem servir pedagogicamente para que tais acontecimentos não ocorram. Sei do romantismo das palavras e tenho certeza que elas de nada valem para as autoridades. A polícia militar, na esteira da Constituição de 1988, é força de manobra política, de repressão e violência do que se entende no Brasil por “Estado de Direito”. Neste caso, podemos esperar mais episódios. Aos poucos, os acontecimentos em favor do “passe livre” vão ficar na memória, histórias vão ser contadas e as versões vão tomar conta dos fatos.
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É triste saber que nossa democracia é manca e nos tempos modernos anda beijando os fundamentalistas, os autoritários e os que não suportam a diferença. Contra a oposição nada como o policial armado, com dentes para fora e apavorado para “mostrar serviço”.
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A questão é muito mais séria do que o aumento das tarifas dos coletivos que vivem do atraso, da precariedade, da bagunça das cidades, da intolerância dos seus donos e de boa parte do dinheiro público. A cultura brasileira é casada com a violência, armada com a repressão e amante do autoritarismo. Não por acaso, muitos aparecem nestes instantes para condenar os “vândalos”, mas se esquecem de que somos resultado de muita desorganização política, social e econômica. Não podemos esquecer um passado no qual o ataque aos direitos humanos era moeda corrente e fonte de desespero de pais e mães que perderam filhos e filhas que estão aparecendo na Comissão da Verdade.
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Também não podemos esquecer o casamento quase perfeito entre os órgãos policiais, as universidades e outras instituições que vem “mudando” a polícia com dinheiro público e fazendo experiências com a “polícia comunitária”, as UPPs, programas de fortalecimento da “população de risco” e assim por diante.
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Finalmente, penso que os episódios merecem o seu lugar porque mostram que muitos ainda estão de olhos abertos e, apesar da ingenuidade, tem a coragem de ir para as ruas. A polícia ganharia mais com ações pedagógicas voltadas para a configuração da cultura da paz e da tolerância. Ganharíamos todos inclusive as autoridades governamentais da ocasião que não cansam de investir em uma segurança pública bélica cuja tônica é a faxina social dos excluídos sob a batuta do gás de pimenta, de balas de borracha, pancada em manifestantes e cassetetes em mulheres, homens, crianças e idosos.
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*Professor na FAE (Faculdade de Educação) na UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais).

Violência policial muda tudo

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Renato Janine Ribeiro*
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Minha apreciação das manifestações em São Paulo mudou esta quinta-feira, após as cenas de violência da PM. A polícia mostrou-se totalmente incapaz de lidar com manifestações políticas duras, mas legítimas numa democracia. Para quem condena o movimento porque não tem líderes que controlem a massa, recomendo as análises de Manuel Castells sobre o assunto, em recentes palestras no Brasil. Quem não o conhece, saiba que é um sociólogo espanhol, amigo de FHC, estudioso atento das formas de sociabilidade no tempo da Internet. Pois Castells diz que hoje se protesta assim, no mundo árabe, na Turquia, em toda a parte: um rastilho de pólvora que se alastra sem líderes, sem pauta clara.
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Na democracia, essenciais são os métodos. Condeno quem queimou ônibus e quebrou janelas, mas jamais diria que “os manifestantes” fizeram isso, querendo dizer: “todos”. Não. Foram uma minoria, como se vê. Essa minoria está errada e deve pagar pelo que fez. Agora, a polícia tem de saber como lida com a divergência política, mesmo quando esta se radicaliza. O que a PM mostrou é que ela atua batendo. Depoimentos de dois jornalistas que testemunharam as agressões, Elio Gaspari e Armando Antenore, mostram o ataque que ela iniciou sem provocação – significativamente, na região da rua Maria Antônia, altamente simbólica tanto porque foi a “alma mater” dos grandes sociólogos paulistas, entre eles FHC, quanto porque ali, em 3 de outubro de 1968, um grupo paramilitar de extrema-direita atacou a Faculdade de Filosofia da USP, num dos graus finais da escalada que levaria ao Ato-5.
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A polícia trata descontentes tal como trataria bandidos perigosos, que estivessem atirando. Pelo menos sete jornalistas foram feridos, e alguns presos, no que anda perigosamente perto de fazer suspeitar de um, à primeira vista absurdo, plano determinado de intimidar a imprensa.
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Os governos estadual e municipal certamente precisam de dinheiro caso abram mão do reajuste das tarifas ou mesmo as zerem, mas, se vão usar os recursos públicos para isso ou para outros fins, é assunto a debater. Respeito a tese do transporte público urbano gratuito. É um desestímulo ao transporte individual e uma forma de transferência de renda para pessoas, pobres e uma causa nobre. Todos sabemos que os ônibus e trens suburbanos são péssimos no País, em termos de quantidade, conforto, frequência e rapidez. Muita gente gasta quatro horas por dia indo ou voltando do trabalho. Isso é inaceitável.
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Ora, ou se deixa claro aos governantes que o desrespeito a quem usa condução pública se tornou ele próprio inaceitável, ou os governos continuarão empurrando essas questões para o futuro. Esta é a grande questão de fundo.
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Mas há uma grande questão de método, também. É preciso que a polícia militar aprenda a viver na democracia. Testemunhei, estes anos, muitos casos em que admirei a ação da polícia, sobretudo a civil. Sei que tudo melhorou desde a ditadura. Mas o que choca é ver que, agora, se retrocede tanto. E choca, em especial, ver que o responsável pela polícia, o governador do Estado de S. Paulo, aceita esse tipo de conduta. O mínimo que deveria fazer era distinguir as coisas e, mesmo mantendo sua oposição à pauta de exigências dos manifestantes, garantir que a dignidade das pessoas seja respeitada. Porque estamos vivendo uma escalada de agressão. Quando um promotor usa de seu cargo para prometer impunidade a policiais que matem manifestantes, e até agora nada perdeu a não ser o emprego no Mackenzie, fica-se perigosamente – uso pela terceira vez esse advérbio ou adjetivo – perto demais da substituição dos princípios democráticos de convivência pelos ditatoriais. Estes parecem fáceis. Parecem assegurar a ordem, à custa da liberdade. Mas, quando se vai a liberdade, como diz Elio Gaspari nos seus livros sobre a ditadura e como bem sabe o Estadão, censurado por anos a fio após o Ato-5, cai-se na desordem armada. Isso, não podemos admitir.
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* Professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo, na qual se doutorou após defender mestrado na Sorbonne. Entre suas obras destacam-se "A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil" (2000, Prêmio Jabuti de 2001) e "A universidade e a vida atual - Fellini não via filmes" (2003). 
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quinta-feira, 13 de junho de 2013

Protestos: Por que esses vândalos não sofrem em silêncio?

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Leonardo Sakamoto*
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Alguém acha que a realidade vai mudar apenas com protestos on line ou cartas enviadas ao administrador público de plantão? Ou que a natureza de uma ocupação de terra, de uma retomada de um território indígena ou de uma manifestação urbana não pressupõe um incômodo a uma parcela da sociedade?
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Fiquei bege ao ler propostas de que manifestações populares em São Paulo passem a ser realizadas no Parque do Ibirapuera ou no Sambódromo. Pelo amor das divindades da mitologia cristã, o pessoal só pode estar de brincadeira! Desculpe quem tem nojo de gente, mas protesto tem que mexer mesmo com a sociedade, senão não é protesto. Vira desfile de blocos de descontentes, que nunca serão atendidos em suas reivindicações porque deixam de existir simbolicamente. “Quesito: Importância social. Sindicato dos Bancários, nota 10. Movimento Passe Livre, nota 10. Movimento Cansei, nota 6,5.”
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Parar a cidade, inverter o campo, subverter a realidade. Ninguém faz isso para causar sofrimento aos outros (“ah, mas tem as ambulâncias que ficam presas no trânsito” – faça-me um favor e encontre um argumento decente, plis), mas para se fazer notado, criar um incômodo que será resolvido a partir do momento em que o poder público resolver levar a sério a questão.
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Ser pacifista não significa morrer em silêncio, em paz, de fome ou baioneta. A desobediência civil professada por Gandhi é uma saída, mas não a única e nem cabe em todas as situações.
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Rascunhei em outro texto essas ideias, mas decidi dar prosseguimento a elas depois de ler os comentários de um post que fiz, na semana passada, sobre os protestos contra o aumento das passagens em São Paulo. É trágico como milhares de pessoas não entendem o que está acontecendo e, tomando uma pequena parte pelo todo, resumem tudo a “vandalismo”. Não defendo destruição de equipamentos públicos, por considerar contraproducente ao próprio movimento, pela escassez de recursos públicos, por outras razões que já listei aqui antes. Mas é impossível para os organizadores de uma manifestação controlarem tudo o que acontece, ainda mais quando – não raro – é a polícia que ataca primeiro.
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E, acima de tudo, não compactuo com uma vida bovina, de apanhar por anos do Estado, em todos os sentidos e, ainda por cima, dar a outra face, engolindo as insatisfações junto com cerveja e amendoim no sofá da sala. Muitos detestam sem-terra, sem-teto e povos indígenas. Abominam a ideia de que o direito à propriedade privada e ao desenvolvimento econômico não são absolutos. Mas os direitos humanos são interdependentes, indivisíveis e complementares. O que é mais importante? Direito à propriedade ou à moradia? Não passar fome, locomover-se livremente ou desfrutar da liberdade de expressão? Todos são iguais, nenhum é mais importante que o outro. Intelectuais que pregam o contrário precisam voltar para o banco da escola.
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E direitos servem para garantir a dignidade das pessoas, caso contrário, não são nada além de palavras bonitas em um documento quarentão.
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Leio reclamações da violência das ocupações de terras – “um estupro à legalidade” – feitas por uma legião de pés-descalços empunhando armas de destruição em massa, como enxadas, foices e facões. Ou contra povos indígenas, cansados de passar fome e frio, reivindicando territórios que historicamente foram deles, na maioria das vezes com flechas, enxadas e paciência.  Ou ainda manifestantes que exigem o direito de ir e vir, tolhido pelo preço alto do transporte coletivo, e que resolvem ir às ruas para mostrar sua indignação e pressionar para que o poder público recue de decisões que desconsideram a dignidade da população. Todos eles são uns vândalos.
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Por que essa gente simplesmente não sofre em silêncio, né?
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Caro amigo e cara amiga jornalistas, falo com todas as letras: não existe observador independente. Você vai influenciar a realidade e ser influenciado por ela. E vai tomar partido e, se for honesto, deixará isso claro ao leitor. Sei que há colegas de profissão que discordam, que dizem ser necessário buscar uma pretensa imparcialidade, mas isso é só metade da história. Deve se buscar ouvir com decência todos os lados de um fato para reconstruí-lo da melhor maneira possível. Afirmar que existe isenção em uma cobertura jornalística de um conflito, contudo, só seria possível se nos despíssemos de toda a humanidade.
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Isso sem contar que tentar manter-se alheio a reivindicações justas é, não raro, apoiar a manutenção de um status quo de desigualdade e injustiça. Coisa que, por medo, preguiça, vontade de agradar alguém ou pseudo-reconhecimento de classe, a gente faz muito bem.
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Manifestações populares e ocupações de terra e de imóveis vazios significam que os pequenos podem, sim, vencer os grandes. E os rotos e rasgados são capazes de sobrepujar ricos e poderosos. Por isso, o desespero inconsciente presente em muitas reclamações sobre a violência inerente ou involuntária desses atos.
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Muitas das leis desrespeitadas em protestos e ocupações de terra não foram criadas pelos que sofrem em decorrência de injustiça social, mas sim por aqueles que estão na raiz do problema e defendem regras para que tudo fique como está. Você pode fazer o omelete que quiser, mas se quebrar os ovos vai preso.
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Enquanto isso, mais um indígena foi emboscado e morto a tiros no Mato Grosso do Sul. Mas tudo bem. Devia ser apenas mais um vândalo, não um homem de bem.
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* - é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
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O combate de Jacob Gorender

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Por Eugênio Bucci.*
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Morreu nesta terça-feira, aos 90 anos, o militante comunista, historiador e intelectual Jacob Gorender. A voz aguda, contida, quase delicada, não denunciava a fortaleza moral e o texto destemido que marcaram seu caráter. Gorender não se dobrou a nada – não se dobrou ao dinheiro, não se dobrou à pobreza, não se dobrou às chantagens psicológicas dos camaradas patrulheiros, não se dobrou à força bruta. É desses que deixam por biografia uma linha reta e austera. Seguiu seu próprio pensamento, seu próprio juízo, e nos legou uma obra essencial.
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No final da década de 80, quando fui editor da revista Teoria & Debate (uma publicação trimestral ligada ao diretório paulista do Partido dos Trabalhadores), tive a honra de me aproximar desse grande homem. A primeira lembrança que guardo dele é o espírito crítico. Naquele tempo, quando a ortodoxia fanática ainda ditava – por inacreditável que possa parecer – a postura da militância de esquerda, com uma descabida reverência em relação a nomes de criminosos como Joseph Stalin, Gorender ensinava a autonomia intelectual e a razão livre, atributos que carregava pelo menos desde os anos 50 e que lhe cobraram um preço demasiadamente alto.
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Em 1990, ele concedeu a Alípio Freire e a Paulo de Tarso Venceslau uma entrevista que publicamos com destaque na Teoria & Debate. Num trecho particularmente saboroso de seu depoimento, Gorender contou um caso que ilustra muito bem a idolatria da mentalidade que vicejava em certos ambientes comunistas. Na década de 50, fora enviado pelo Partido Comunista à União Soviética (PCUS) para integrar um programa de estudos marxistas. Estava em Moscou quando a cúpula bolchevique começou a revelar os chamados “crimes de Stalin”, que dariam o tom dos debates no 20.º Congresso do PCUS, em 1956. Em reação àquelas denúncias, facções de stalinistas começaram a negar sistematicamente as barbaridades pelos próprios dirigentes soviéticos.
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Passemos a palavra a Jacob Gorender:
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“Durante o curso [que fazia em Moscou], realizou-se o 20.º Congresso do PC da União Soviética. O [Diógenes de] Arruda foi ao congresso como representante brasileiro, e a ele se juntaram [Maurício] Grabóis e Jover Telles, participantes do curso em Moscou. Para nossa surpresa, o jornal Pravda começou a publicar artigos e discursos de vários dirigentes com críticas a Stalin. Depois, veio o famoso informe confidencial de Kruchev. Não o lemos porque não nos foi distribuído. Só circulava dentro do âmbito do próprio PCUS. Mas nós ouvimos conferências de professores que nos transmitiram seu conteúdo. O informe fez a primeira revelação oficial de parte dos crimes de Stalin. Esse congresso vai abalar o PCB. Em maio de 1956, o informe foi publicado na íntegra pelo The New York Times e pelos grandes jornais do mundo inteiro. Aqui no Brasil ele foi, a princípio, declarado falso pelos comunistas. Porém, Arruda, ao regressar da viagem, confirmou a autenticidade do documento.”
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Na ocasião, os militantes do PCB liam aqui, neste jornal, as notícias que desmascaravam as engrenagens genocidas da burocracia stalinista e achavam que tudo não passava de uma campanha difamatória engendrada pelo imperialismo. Não era possível, diziam. Aquilo só poderia ser uma falsificação, só poderia ser propaganda anticomunista. Ficaram chocados quando os delegados brasileiros ao 20.º Congresso começaram a voltar e confirmaram: o material que a imprensa burguesa publicava era apenas a verdade. Foram tempos traumáticos para os marxistas, um mundo de utopias desmoronava. Gorender teve, ainda, uma decepção extra. Em sua volta de Moscou, fez escala na Hungria, onde viu a invasão dos tanques soviéticos oprimindo a nação, que tentava se sublevar. Tornou-se ainda mais avesso aos burocratas, mas não arredou pé do sonho de igualitarismo, pelo qual também pagou muito caro.
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Em 1967 foi expulso do PCB. Criou o PCBR. Em 1970 foi preso e condenado a cumprir pena de dois anos. Como tantos outros, foi torturado. Durante o encarceramento, conseguiu manter uma atividade profissional regular, que permaneceu em segredo até muito recentemente. De dentro de sua cela na prisão, atuou como consultor e tradutor das coleções Os Pensadores e Os Economistas, então publicadas pela Abril Cultural, cujo diretor era Pedro Paulo Poppovic. Dona Idealina, esposa de Gorender, servia de intermediária. Ela saía do presídio, após visitar o marido, carregando uma dessas sacolas que as donas de casa usavam para ir à feira, cheia de laudas. Eram textos traduzidos do alemão ou do francês que, depois, em páginas de livro, abasteceriam a cabeça e a imaginação dos leitores. Naturalmente, aquele trabalho, embora remunerado, não teve crédito, posto que era feito na clandestinidade, mas uma das edições de O capital da Abril Cultural, esta com o selo da coleção Os Economistas, teve a (longa) introdução assinada por Jacob Gorender.
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Quando frequentava a redação de Teoria & Debate, ainda se dizia comunista, sem a menor hesitação, mas não pactuava com qualquer forma de opressão do pensamento. Seguiu seu destino, em sua linha reta. Seu livro Combate nas Trevas, de 1987, que reconstitui a saga das organizações de esquerda se esfacelando e se reagrupando em siglas intermináveis durante os anos de repressão mais sangrenta, inscreve-se como um marco inaugural na tentativa, ainda inconclusa, de desvelar uma história sombria: a história das torturas e dos assassinatos praticados por agentes públicos contra cidadãos desarmados, imobilizados e indefesos.
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Gorender encarou trevas espessas: as do stalinismo, as da ditadura militar e as do fanatismo, do mais comezinho ao mais totalizante. Deixa uma herança de luz. Foi generoso e acolhedor com aqueles que eram menores, muito menores do que ele. Foi uma prova de que a humanidade pode ser melhor do que é. Venceu seu combate, embora ainda haja trevas a combater.
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* Artigo publicado hoje, 13 de junho, no jornal O Estado de São Paulo.
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Maioridade?


'Foi revolta', diz professora que virou ícone da redução de salário no CE

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O choro da orientadora educacional Antônia Lucimeire Oliveira, 41, na última quinta-feira (6), foi o retrato fiel da indignação dos professores e servidores da rede municipal de Juazeiro do Norte (a 548 km de Fortaleza), que terão seus vencimentos reduzidos em até 40%.
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Na tarde da última quinta-feira, a orientadora da escola municipal Izabel da Luz foi até a Câmara de Vereadores para pressionar os parlamentares a não aprovarem o projeto da prefeitura que previa mudanças no PCCR (Plano de Cargos, Carreira e Remuneração). Mas não segurou o choro antes mesmo da votação. Ela considera que o choro é um desabafo da 'revolta' dos professores.
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"Na verdade, aquele choro veio depois de um grito e foi antes da votação. Foi uma forma de desabafar o que estava sentido e via naquele momento. Estávamos passando uma pressão muto grande. A polícia já tinha soltado spray de pimenta, e eu tinha de desabafar de algum jeito. Nunca tinha participado de algo daquele tipo, só via na televisão. Não havia necessidade de haver policiais armados com pistolas, fuzis", comentou, em entrevista nesta quarta-feira (12) ao UOL.
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Nessa terça-feira (11), os servidores entraram em greve para protestar contra a aprovação do projeto.
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Choro antes e depois
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Oliveira disse que apesar de só ser fotografada antes da sessão, após a aprovação, chorou novamente. "A indignação foi a mesma. O caráter de revolta foi o mesmo. Chorei por tudo: pela humilhação, pela decepção. Fiquei muito mal. Passei dois dias aérea. Toda vez que a gente lembra, sofre de novo ", disse.
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A orientadora disse, que no momento em que foi anunciada a aprovação, se sentiu "péssima." "Foi como se a gente, como se a voz do povo, de uma sociedade organizada em grupo, não tivesse valor algum. Aquela sessão não tinha condições de aprovar nada, até por conta do que houve, do barulho. Ninguém conseguia se expressar para o outro. Creio que foi um desmando, uma desconsideração com a nossa classe, já tão sofrida", contou.
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A professora lembra que a conquista do PCCR veio após longa luta da categoria no ano passado. "Quando a gente pensa que está tranquilo, depois de tanta luta, vê que não está. A gente não sabe nem como chamar isso. É um absurdo, principalmente a forma como feito. Vimos que aqueles representantes do povo, não são: são representantes deles próprios. Isso foi muito ruim para a população, para nós, professores. É incrível como eles não ligam em ter uma imagem de uma Câmara tão negativa"
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Histórico e foto
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Oliveira começou como professora da educação infantil em 1993. Aprovada em concurso público como orientadora educacional em 1997, foi contratada pela prefeitura de Juazeiro do Norte em 2001, onde está desde aquela época. A orientadora diz que não sabe quanto vai perder de rendimento com a decisão da Câmara. "Não tenho ideia, uma amiga ficou de ver isso", afirmou, sem citar o salário.
A orientadora disse que, desde a quinta-feira, por conta da repercussão da foto, ficou mais reservada. Ela não esconde, porém, que a imagem do seu choro é um retrato fiel de um sentimento que tomou conta da categoria. "Aquela foto expressou a revolta da gente. Não só pela aprovação, mas principalmente pela violência. Estou procurando me manter mais afastada, minha imagem já rodou demais. Se a foto está para ajudar a nossa causa, os professores, ótimo! Mas não vou permitir charge", disse Oliveira, citando que já foi alvo de dois desenhos que foram colocados nas redes sociais e pediu para que fossem excluído.
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Oliveira ainda disse que tem esperança de que a aprovação da Câmara seja revertida. "Tenho esperança que eles caiam em si, que isso não é bom para população. Há outros meios para resolver a situação. A gente espera que a lei não seja sancionada, que Deus toque o coração deles", finalizou.
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A redução
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Em nota oficial, a prefeitura de Juazeiro informou que a reformulação do PCCR teve de ser feita para que as contas municipais pudessem fechar sem débitos e que atualmente para manter o pagamento dos professores como está "extrapola o limite de 60% dos recursos do Fundeb e deixa apenas 13% para investimentos no setor ao invés dos 40% definidos em lei". O prefeito Raimundo Macedo (PMDB) disse, em nota, que sua preocupação é pagar os salários dos servidores em dia e afirma que a gestão anterior deixou um débito de R$ 5 milhões para serem arcados pela sua administração.
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A nota destaca ainda que a reforma do PCCR "em nada alteram a condição dos professores de Juazeiro em continuarem recebendo um dos maiores salários do magistério em nível de Ceará e desafia comparações. Nenhum professor terá seu salário reduzido, conforme garantia dada pelo próprio município." A procuradoria do município afirmou que "na realidade o que aconteceu foi a incorporação de 10% da gratificação ao salário base." 
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terça-feira, 11 de junho de 2013

Democracia? Sim, já ouvi falar.

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Pablo Capistrano*
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Cansei de repetir para meus alunos, durante os sete anos que lecionei no curso de Direito da FARN (hoje UNI-RN) o velho brocado romano que dizia: “nem tudo que é legal é honesto”.
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E uma das honestidades que muitas vezes não combina com a ordem legal é a verdade. Isso porque, como muita gente já percebeu, todo poder é uma performance. O poderoso não tem o poder. Como um ator, ele interpreta o poder de uma ordem da qual ele é o representante. Por isso dois acontecimentos bastante sintomáticos nos ajudam a pensar sobre a realidade da ordem democrática brasileira.
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O primeiro foi a fala do presidente do STF, Joaquim Barbosa, para alunos do Instituto Superior de Educação em Brasília. O ministro disse que no Brasil os partidos políticos eram “de mentirinha”, que não tinham consistência programática e que nosso Legislativo era historicamente submetido ao Poder Executivo. Ora, o que o ministro disse foi uma obviedade que qualquer calouro do curso de Ciências Sociais da UFRN aprende logo no primeiro semestre.
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Não é necessária nenhuma exegese filosófica mais sofisticada ou pesquisa profunda sobre as catacumbas políticas do país para saber que o ministro não mentiu; apenas constatou uma verdade que paira na superfície da consciência nacional. Mas não foi a fala do ministro para os estudantes que realmente trouxe algo de significativo para entender a natureza ideológica da nossa ordem democrática. O mais interessante foi a justificativa feita em nota oficial do presidente do STF. A nota explica que o ministro falou em um contexto acadêmico, marcado pela liberdade de reflexão teórica que o permitiria tecer comentários sobre a ordem política nacional. Ali não falava o presidente do STF, mas o professor Joaquim Barbosa, o jurista Joaquim Barbosa, o bacharel em Ciências Jurídicas Joaquim Barbosa, cidadão brasileiro.
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A nota foi muito mais revolucionária do que a fala do ministro porque aponta para o fato de que a verdade sobre a política brasileira se diz em um contexto acadêmico e a mentira ideológica da ordem democrática se mantém no discurso oficial no meio das falas decoradas para ornar as liturgias dos cargos da nossa República.
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A ironia da nota é que ela mostra aquilo que procura esconder justificando que o ministro, presidente do STF, estava em uma zona de exclusão ideológica que o permitiria dizer a verdade para seus pares. Tal qual um Trasímaco que interrompe o diálogo de Sócrates com seus amigos, no livro I da República, Joaquim Barbosa passou o bizu aos alunos do curso de Direito. Ele quebrou o protocolo e a performance do poder para dizer aquilo que todos sabem mas que não podem saber que sabem.
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O outro fato ocorreu aqui em Natal, na nossa província ensolarada, balneário tropical deste Atlântico de Copa do Mundo. Enquanto o Falcão da banda O Rapa, (patrocinado pela Fiat) chama os cidadãos brasileiros a ocupar as ruas para torcer pela seleção na Copa das Confederações, os estudantes natalenses fecham mais uma vez a BR-101 para protestar contra o aumento das passagens de ônibus.
Qual a reação do Estado, em suas instâncias oficiais? Ato 1: jogou a polícia sobre os estudantes, baixando a porrada na rapaziada acuada embaixo do Viaduto do Quarto Centenário. Ato 2: infiltrou essa mesma polícia em uma plenária na UFRN, realizada para discutir o movimento, marcando sua presença na tal “zona de exclusão acadêmica”, que em tese deveria ser um espaço livre para que as verdades escondidas pela ideologia hegemônica (o que é uma redundância) pudessem ser ditas. Ato 3: por seu braço judiciário, emitiu uma ordem de prisão a qualquer manifestante que interrompesse o tráfego na BR-101.
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Como na nota do STF, esse comando judicial é muito interessante, porque depõe contra a ordem que busca justificar. Como um ato falho de um paciente em uma sessão de psicanálise, o Poder Judiciário ajudou a população a entender a natureza fajuta da ordem democrática que diz proteger. O argumento é mais ou menos esse: “todos têm o direito de demonstrar seu descontentamento e protestar, contanto que não perturbem a ordem nem prejudiquem os outros”.
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O que essa frase diz na verdade é: “todos tem direito de demonstrar descontentamento e protestar, contanto que seu protesto seja inofensivo e não surta efeito”. Como um pai autocrático, a ordem instituída diz ao povo: “vocês são livres para fazer o que quiserem, contanto que não façam aquilo que eu desaprovo”.
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Com a desculpa de proteger o direito dos outros contra uma minoria, o mesmo Poder Judiciário que deixa quadrilhas de corruptos soltas por aí (uma minoria que perturba o direito dos outros) ameaça com a espada da Justiça setores da população que, como o cidadão Joaquim Barbosa, não acreditam mais nas instâncias partidárias tradicionais e nos caminhos institucionais.
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Amigo velho, por mais bem construído que seja, o discurso que esconde o autoritarismo de uma sociedade controlada pelo Estado e pelo mercado tem suas brechas. É preciso ficar esperto quando essas brechas se tornam evidentes, porque, como dizia o velho e totalitário camarada Mao, “há uma grande desordem sob o céu; a situação é excelente”.
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* Filósofo, professor do IFRN
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Publicado em 4 de junho de 2013 - Fonte: Educação Pública: http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/cidadania/0156.html
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